O papa
Inocêncio IV preside o Concílio de 1245, em Lyon.
(Óleo de autor desconhecido) |
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Memória
da Justiça Brasileira - 2 |
Capítulo 9
A Justiça Eclesiástica
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O estudo dos órgãos e procedimentos judiciais
da Igreja colonial assume uma importância dificilmente encontrada em períodos
mais recentes. A íntima relação - que chegava a beirar à identidade -
entre poder político e religião, tornava quase impossível distinguir as
respectivas jurisdições. Durante vários séculos, a Igreja, decidida, no
espiritual, a impor urbi et orbi o que considerava uma verdade
única e exclusiva, precisara dos nascentes estados monárquicos para levar
adiante as suas expectativas missionárias, envolvendo-se, voluntariamente
ou não, numa densa malha de interesses mundanos. Por sua vez, os reis,
precariamente equilibrados em acordos e privilégios concedidos desde épocas
remotas e renovados a cada nova crise que ameaçasse a sua estabilidade,
dependiam estreitamente da confirmação do clero para fundamentar o seu
direito divino às respectivas coroas.
Fácil resulta entender que, nesse contexto,
a religião regulasse a vida diária até nos atos mais intranscendentes,
e que qualquer agressão ou questionamento à sua autoridade afrontasse
automaticamente o Estado e o próprio rei. Por outra parte, grandes áreas
da administração pública, como a educação e a saúde, estavam nas mãos
do clero e parecia até natural que isso acontecesse. De fato, a consciência
de que o Estado devia prover a essas necessidades da população só veio
a tornar-se pública no século XVIII, quando, expulsos os jesuítas do território
português, o vazio resultante forçou a adoção de medidas oficiais nesse
sentido.
No cotidiano, a religião acompanhava cada
ato da vida das pessoas. Nascendo, eram imediatamente batizadas, único
registro que iria atestar a sua existência civil. O mesmo acontecia com
o casamento, válido apenas se realizado por autoridade eclesiástica. Na
morte, além de registrar o óbito, os próprios templos serviam de túmulo
provisório, sendo os corpos depositados em compartimentos especiais, sob
o piso de madeira, e, passado um certo tempo, retirados para os ossuários.
Mesmo quando a insalubridade desse costume ficou provada, a Igreja foi
incumbida não apenas de consagrar mas, também, de administrar os novos
cemitérios.
Toda ação de beneficência ou do que hoje seria
chamado de "serviço social" supunha a intervenção da Igreja secular,
das ordens religiosas ou, principalmente, da Santa Casa da Misericórdia.
Elas mantinham hospitais e asilos, assistiam os despossuídos e alimentavam
os presos, que não recebiam qualquer sustento da Coroa. Não existia sistema
previdenciário ou mutualista, a não ser o representado pelas "irmandades"
e "ordens terceiras", associações leigas vinculadas às igrejas
e conventos.
A relação entre Igreja e Estado tornava-se
ainda mais estreita nas colônias, porque, sendo a Coroa portuguesa, desde
1522, possuidora do grão-mestrado da Ordem de Cristo, adquiria também
a jurisdição espiritual sobre as terras conquistadas, que a essa Ordem
fora concedida pelo papas Calixto III e Xisto IV. Assim, os reis portugueses
estavam habilitados a criar e prover os novos bispados, delimitar as jurisdições
territoriais e autorizar a construção de igrejas e conventos. Economicamente,
recolhiam e administravam os dízimos, responsabilizando-se, em compensação,
pela manutenção do clero, que passava, dessa maneira, a ser assalariado
da Coroa.
Compreende-se, então, que a Justiça eclesiástica,
hoje limitada a um âmbito reduzido e quase incapaz de aplicar sanções
que não as chamadas "de foro interno", desfrutasse de um enorme
poder, que alcançava não apenas às causas entre religiosos, mas quaisquer
outras em que pelo menos uma das partes estivesse amparada por foros eclesiásticos.
Por outro lado, o direito eclesiástico reclamava competência sobre toda
causa que envolvesse matéria de consciência ou pecado, o que, automaticamente,
colocava o quase todo direito penal na sua área de influência.
Estrutura Jurídica da Igreja
Como toda agrupação humana, a Igreja enfrentou,
através do tempo, a necessidade de estabelecer regras para seu crescimento
e conservação. Assim, a própria palavra "Igreja" assume duas acepções.
Em sentido religioso, chamamos Igreja à sociedade dos fiéis cristãos ou,
numa denominação mais restrita, a cada uma das sociedades que partilham
dos mesmos dogmas e rituais (católicos, luteranos, anglicanos etc.). Já
no sentido jurídico, entendemos por Igreja a organização jurídica especial
que essas diversas sociedades construíram.
A estrutura jurídica da Igreja Católica está
baseada no sacerdote ou presbítero, que exerce o "poder de ordem",
sendo a única pessoa habilitada a celebrar a missa e o batismo, sacramentos
através dos quais o resto dos fiéis se comunica com a divindade. Acima
dele, já como um elemento de governo, está o "bispo", que exerce
o chamado "poder de jurisdição" sobre um território predeterminado,
conhecido como "diocese". Atendendo a esse poder de jurisdição,
o bispo é também chamado de "ordinário" por ser quem, por direito,
o exerce habitualmente. Por cima de todos, o papa ou "sumo pontífice"
legisla, governa e julga, como autoridade máxima e representante de Deus
na terra. Essa situação, conforme o sistema papal, que é o dogma católico
romano, lhe dá o "primado de jurisdição", atribuição discutida
durante vários séculos e só consolidada mediante um processo de concentração
que poderia ser comparado ao surgimento das monarquias absolutas. Antigamente,
o sistema episcopal dava grandes poderes à reunião dos bispos e, em especial,
aos chamados "concílios ecumênicos", que podiam ser considerados
como expressão da vontade divina e obrigar até mesmo o papa. Somente no
século XIX, Pio IX chegaria a estabelecer o dogma da infalibilidade dos
papas e reduzir os concílios ecumênicos a uma função auxiliar.
Na medida em que o universo da Igreja se tornava
maior e mais complexo, outros cargos foram aparecendo nessa estrutura.
Para simplificar o controle, vários bispados ou dioceses foram reunidos
numa "província eclesiástica", sob a autoridade de um "arcebispo"
ou "metropolita". Em sentido inverso, cada diocese foi subdividida
em "paróquias", a cargo de um "cura" ou "pároco"
e, quando necessário, várias paróquias foram subordinadas a um preposto
do bispo, chamado "vigário da vara", sendo nele delegado, parcialmente,
o poder de jurisdição para facilitar o controle da diocese. Outra forma
de governo eclesiástico territorial - inferior à diocese mas assemelhando-se
a ela por ser criada pelo papa e possuir jurisdição própria e não delegada
- era a "prelazia". Estava a cargo de um prelado sem categoria
de bispo e possuía uma relativa independência administrativa.
Outra decorrência da crescente complexidade
da administração eclesiástica foi a aparição, junto a esses cargos básicos,
de estruturas auxiliares colegiadas. No caso das dioceses, o cabido,
constituído por diversos dignatários genericamente conhecidos como cônegos.
Além de assessorar e auxiliar o bispo ou arcebispo, os cabidos podem designar,
em caso de vacância da diocese, um substituto temporário, chamado vigário
capitular. Fora o cabido, cada bispado possui um corpo auxiliar com
diversas funções que, em conjunto, recebem o nome de curia diocesana.
Também o papa tem colaboradores diretos, chamados cardeais, e uma
curia, constituída por congregações, tribunais e ofícios,
com uma estrutura bastante complexa.
Fora a autoridade puramente tutelar que é
conferida aos párocos, o poder judicial eclesiástico começa nos bispos
e seus prepostos, que constituem, por assim dizer, a primeira instância.
Para revisar as suas decisões foram criados, a nível das arquidioceses,
os "auditórios eclesiásticos" que, por sua vez, reconhecem, como
terceira instância, os tribunais de Roma, diretamente vinculados ao papa.
No entanto, essa classificação é bastante relativa, posto que tanto os
auditórios como os tribunais romanos podem julgar em primeira instância
nas matérias que lhes são especificamente reservadas.
À margem dessa estrutura, que pode ser definida
como "clero secular", existem as "religiões", associações
de indivíduos ligados por votos públicos para realizar atividades tendentes
à perfeição evangélica. Podem ser "congregações", ligadas por votos
simples, ou "ordens", baseadas em votos solenes. No período em
estudo, existiam também, com particular transcendência, as chamadas "ordens
militares", constituídas em braço armado da Igreja, para facilitar
a propagação da Fé. Conforme sua complexidade e expansão geográfica, cada
uma dessas "religiões" pode estar organizada em jurisdições menores
e possuir seus próprios mecanismos de controle, embora subordinados à
autoridade papal e episcopal.
Existem, ainda, associações de leigos, ou
seja, pessoas que, a partir de uma devoção em comum ou da afinidade com
uma determinada ordem ou congregação, se reúnem sem fazer votos, compartilhando
apenas rituais ou atividades mutualistas e beneficentes. Também elas têm
os seus mecanismos de controle mas, apesar da importância que tiveram
na estrutura da sociedade colonial, a sua influência ficava restrita às
próprias comunidades, não abrangendo judicialmente a sociedade como um
todo.
O Direito Eclesiástico
Como não podia ser de outra maneira, a primeira
fonte do Direito Canônico é a própria Biblia, principalmente
na sua versão latina, chamada "Vulgata", ratificada pelo
Concílio de Trento, cuja interpretação a Igreja Católica se reserva. Isso
constitui um dos pontos de conflito com outras igrejas cristãs, que reivindicam
uma maior liberdade de interpretação. A essa fonte básica agrega-se a
"tradição", dita "divina", quando registra sentenças orais
de Jesus Cristo, ou "apostólica", quando deriva dos ensinamentos
dos apóstolos ou dos seus seguidores imediatos.
Fontes propriamente legislativas são os "cânones"
dos concílios, não apenas dos ecumênicos ou universais como de alguns
particulares ou regionais que, por falta de maior universalidade, são
reconhecidos como produção legal do cristianismo dos primeiros séculos.
Já nesses tempos remotos foram compiladas coleções não oficialmente autorizadas,
como a Didaké ou Doutrina dos XII Apóstolos,
as Constituições Apostólicas e os Cânones Apostólicos.
Ao lado dessas coleções, pretensamente universais, abundam as compilações
regionais: gregas, africanas, itálicas, irlandesas, visigóticas etc.
Na medida em que o poder pontifício se sobrepõe
ao dos concílios, aumenta o valor das suas "cartas decretais",
geralmente chamadas "decretais" ou "constituições". Pela
primeira vez aparecem formando parte de coleções canônicas na elaborada
por Dionísio, o Exíguo, no século V. No século IX já eram objeto de coleções
específicas, atribuídas a Benito Levita ou Isidoro Mercator, e começava
a prática de ordenar as normas por assunto, em contraste com as compilações
anteriores, que utilizavam a ordem cronológica, fazendo apenas distinção
entre concílios e decretais. Assim surgiram coleções mais organizadas,
como as de Regino, abade de Prunn, de Burcardo de Worms, de Ivo de Chartres,
de Alger de Lieja etc.
A Graciano, monje de São Félix, na cidade
de Bolonha, deve-se a primeira reunião didaticamente organizada dessas
compilações. Essa coleção, tradicionalmente conhecida como Decreto
de Graciano, passou a constituir matéria de estudo em todas as
universidades e se transformou em ponto de referência obrigatório do Direito
Canônico. Não foi compilada como código legislativo mas como coleção privada,
de intenção exclusivamente didática. Entretanto, o predicamento adquirido
- ligado ao surgimento da própria Universidade de Bolonha - foi tanto
que as coleções posteriores passaram a ser chamadas de "extravagantes".
Cinco dessas coleções conservam singular importância, principalmente a
terceira, encaminhada à Universidade de Bolonha pelo papa Inocêncio III,
o que a constitui, pela primeira vez, em código oficial da Igreja. Similar
sorte teve a quinta, enviada a Tancredo, professor da mesma Universidade,
pelo papa Honório III.
A primeira compilação oficialmente iniciada
pela Igreja foi encomendada por Gregório IX ao dominicano São Raymundo
de Penyafort, antigo colegial de Bolonha. Baseada em Graciano e nas cinco
coleções posteriores, foi enviada, em 1234, às universidades de Paris
e Bolonha, sendo oficialmente apresentada como Código da Igreja, com expressa
indicação de, em diante, ensinar apenas a coleção de Graciano e a de São
Raymundo, que passou a ser chamada de Decretais de Gregório IX
ou, simplesmente, Decretais.
Outras compilações foram ordenadas por Bonifácio
VIII, em 1298, e por Clemente V, em 1314. Em 1317, João XXII remeteu essa
última coleção às mesmas universidades com o nome de Decretais Clementinas.
As três coleções receberam, no Concílio de Basilea, o nome coletivo de
Corpus Juridicis Canonici, cuja publicação oficial chegou
a ser impressa em Roma, em 1582. Com essa publicação adquiriu maior relevo
a ciência do Direito Canônico, cujos cultuadores passaram a receber o
nome de "decretalistas". Quanto aos cânones propriamente ditos
- ou seja, aquelas disposições originadas nos concílios - os mais importantes
são os derivados do Concílio de Trento, realizado entre
1545 e 1563.
Além dessas normas gerais, estabelecidas ao
nível da Santa Sé e que obrigam a todas as dioceses, existem disposições
particulares, emanadas dos bispos e arcebispos e válidas apenas para suas
respectivas dioceses ou arquidioceses. Essas disposições também podem
ser, eventualmente, reunidas em "constituições" e conservadas como
códigos, com força legal dentro dos territórios correspondentes.
A Igreja no Brasil Colonial
A primeira jurisdição eclesiástica no Brasil
corresponde, provavelmente, à Ordem de Cristo, cuja bandeira presidiu
toda a expansão hispano-portuguesa. As bulas Inter cætera quæ,
de 13 de março de 1455, e Æternia regis clementia, de 21
de junho de 1481, concediam a ela a jurisdição sobre as terras ultramarinas
que não pertencessem ainda a nenhuma diocese. Essa situação foi parcialmente
modificada pela criação da diocese de Funchal, nas Ilhas da Madeira, a
primeira a ter efetiva jurisdição no território brasileiro. A bula Pro
excellenti, assinada por Leão X em 12 de junho de 1514, estabelecia
um duplo padroado, concedendo à Coroa o "benefício episcopal"-
ou seja, a apresentação dos bispos a serem designados - e conservando
para a Ordem de Cristo a provisão dos "benefícios menores".
Esses dois padroados foram reunidos em mãos
da Coroa em 1522, quando o papa Adriano VI conferiu a D. João III o grão-mestrado
da Ordem. Já D. Manoel tinha sido administrador dela, mas D. João, juntando
às prerrogativas próprias da Coroa esse grau de grão-mestre, conseguiu
adquirir o completo controle do governo eclesiástico, controle que se
veria ainda reforçado, anos depois, com o estabelecimento do Santo Ofício.
Finalmente, com a morte de D. Jorge, grão-mestre das ordens de São Tiago
da Espada e São Bento de Avis, o papa Júlio III lhe concedeu a mesma dignidade,
pela bula Præclara charissimi, de 30 de dezembro de 1551,
concentrando na Coroa portuguesa o completo controle das três ordens militares.
Para assessorar à Coroa no despacho dos cada
vez mais complexos assuntos eclesiásticos - que, na linguagem da época,
importavam à "consciência" do rei - D. João III estabeleceu, em
1532, o tribunal da Mesa da Consciência, formado por um presidente
e cinco juízes, entre clérigos e letrados leigos. Além de revisar as sentenças
da Justiça eclesiástica - atribuição exclusiva dos papas que fora delegada
na Coroa - esse órgão recebeu competência para propor os benefícios eclesiásticos,
recolher o dízimo, pagar o resgate dos cativos, administrar os bens dos
que faleciam sem testamento e, em geral, zelar pelo estado de consciência
do monarca, aconselhando-o em decisões difíceis como as que diziam respeito
ao cativeiro e escravidão de índios e negros ou à declaração de "guerra
justa".
Ficando as três ordens militares sob o grão-mestrado
da Coroa, o tribunal teve ampliada a sua competência, passando a tratar
dos assuntos a elas relacionados e constituindo-se em revisor das decisões
dos "juízes dos cavalheiros", que eram magistrados especiais com
jurisdição exclusiva sobre os membros dessas ordens. Em razão dessa mudança,
a sua denominação foi alterada para Mesa da Consciência e Ordens.
Igualmente, a Mesa podia revisar as decisões do juiz conservador da Universidade
de Coimbra, cujos membros contavam também com foro especial.
A primeira diocese a ser criada em território
brasileiro foi a de Salvador, concedida também pelo papa Júlio III, através
da bula Super specula militantis Ecclesiæ, de 25 de fevereiro
de 1551. A sua criação, numa cidade ainda precariamente estabelecida e
rodeada de indígenas não completamente pacificados, somente se explica
no contexto do projeto centralizador que guiava D. João III a estabelecer
o governo geral. Condizente com esse projeto, o novo bispado recebeu como
diocese todo o território brasileiro. A sede do bispado foi provisoriamente
estabelecida na Igreja da Ajuda, uma rústica capela que, ao ser construida
a Sé definitiva, continuaria a ser lembrada por muito tempo como "a
Sé de palha".
Quanto ao primeiro bispo, D. Pedro Fernandes
Sardinha, que fora colega de São Inácio de Loyola, professor de Teologia
nas universidades de Paris e Salamanca e visitador em Goa, mostrou-se
incapaz de compreender a situação ainda missionária da diocese que lhe
tocara em sorte. Era culto, eloqüente e dedicado, mas não conseguia perceber
a enorme diferença que separava a mentalidade indígena da européia, e
a sua intolerância não tardou em entrar em contradição com o gradualismo
dos jesuítas, mais experientes no trato com os aborígenes. A mesma intolerância
lhe colocaria, depois, em sério conflito com o governador Duarte da Costa,
cujo filho Álvaro unia aos brios de militar vitorioso contra os índios
uma extremada afeição pelas aventuras galantes. A disputa chegou a incluir
prisões, destituição de autoridades e dividiu a cidade em dois bandos
contrários, até que o bispo, não mais podendo controlar a situação, se
viu forçado a abandonar a cidade. Morreu em 16 de junho de 1556, devorado
pelos caetés após o naufrágio do navio que devia conduzi-lo de volta a
Portugal.
Já num território mais consolidado, em 1575
foi estabelecida uma prelazia no Rio de Janeiro, com autoridade sobre
as capitanias de São Vicente, Espírito Santo e Porto Seguro. Uma segunda
prelazia chegou a ser estabelecida em Pernambuco, em 1614, mas foi revogada
dez anos depois, voltando seu território a formar parte da diocese de
Salvador. Essas prelazias funcionavam de maneira independente, nos aspectos
pastorais e administrativos, mas continuavam subordinadas judicialmente
ao bispado de Salvador.
Novas dioceses foram criadas em Olinda e Rio
de Janeiro, em 22 de novembro de 1676. Simultaneamente, através da bula
Inter pastoralis officii, Salvador era elevada à categoria
de arquidiocese e passava a contar com um auditório eclesiástico, ficando-lhe
subordinadas não apenas Olinda e Rio de Janeiro, como também as dioceses
africanas de Luanda e São Tomé. Independentemente, mais um bispado foi
instalado, em 30 de agosto de 1677, em São Luis do Maranhão, mas, condizendo
com a divisão administrativa já existente nas colônias portuguesas, não
foi vinculado ao Arcebispado da Bahia, mas ao de Lisboa, ao que se considerava
que podia comunicar-se com maior facilidade. Com a mesma vinculação foi
criado, em 1719, o bispado do Grão Pará. Já completando as sufragâneas
da arquidiocese da Bahia, foram estabelecidas, em 1745, as dioceses de
São Paulo e Mariana e as prelazias de Goiás e Cuiabá.
O Auditório Eclesiástico da Bahia
O governo eclesiástico, no Brasil, não contou,
inicialmente, com normas particulares codificadas. Estabelecidos os bispados
de Funchal e Salvador, vigoravam, por direito, as Constituições
do Arcebispado de Lisboa, do qual ambas as dioceses eram sufragâneas.
Criados, porém a Arquidiocese e o Auditório Eclesiástico, impunha-se a
adoção de constituições e regimento próprios, o que não aconteceu até
os inícios do século XVIII, durante o arcebispado de D. Sebastião Monteiro
da Vide. Essa situação atípica é registrada pelo arcebispo ao declarar
que "havia nesta Diocese muitas duvidas, e difficuldades sobre os estilos
da Justiça, Auditorio, ordem do Juizo, e Regimento dos ditos Officiaes,
e Ministros da Justiça, porque de alguns não havia noticia alguma, e a
que havia de outros não era bastante, nem estavam em fórma conveniente,
e accommodada a este tempo, de que assim no espiritual, como no temporal
se seguião muitos inconvenientes contra o serviço de Deos, e bem commum,
e se occasionavão novas demandas, e se dilatavão outras em inquietação
das consciencias, perturbação da paz, despezas, e gastos".
A elaboração começou pelas Constituições,
mas, "por attendermos que poderá ter mais dilação que a que permite
a falta de Regimento, nos pareceo ser serviço de Deos ordenarmos logo
os Regimentos", que foram publicados em 8 de dezembro de 1704. Assim,
deu-se início a um trabalho árduo, adaptando-se, dentro do possível, "aos
estilos até aqui practicados neste Auditorio, e aos que não reprova,
antes manda conservar o direito, e desterrando os que julgamos por abusos,
e corruptelas". A preparação das constituições levaria ainda três
anos, e seriam aprovadas em 1707, como parte das atividades do primeiro
sínodo celebrado no Brasil. Ambas as codificações permaneceriam em vigor
até o período imperial.
A primeira instância começava pelo Vigário
da Vara, autorizado a "tirar devassas [...] receber denunciações
e fazer summarios", e remete-los ao Vigario Geral "para os pronunciar
como for justiça". Podia, também "passar monitorios e dar sentenças
em causas summarias", dando sempre apelação à Relação Eclesiástica.
As causas devassadas pelo Vigário da Vara
eram encaminhadas para serem julgadas, ainda em primeira instância, pelo
bispo e sua Câmara Episcopal. Na jurisdição direta do Arcebispado, a própria
Relação Eclesiástica cumpria essa função, através do Vigário Geral,
a quem pertencia "o conhecimento de todas as causas crime, e civeis
do foro contencioso", as que, depois de serem "processadas perante
elle até final", deviam ser distribuídas aos desembargadores e sentenciadas
em Relação. Esse tribunal possuía, também, jurisdição de primeira instância,
em causas onde fizessem parte os bispos ou membros do juízo eclesiástico.
A segunda instância cabia sempre ao Auditório Eclesiástico e a terceira
à Mesa da Consciência e Ordens.
A ordem do juízo era minuciosamente determinada.
Nos feitos cíveis começava-se por definir o juízo como "um acto legitimo
em que se requerem tres pessoas por direito, Juiz que julgue, Autor que
demande, e Réo que se defenda". "Como as demandas são causa de
grandes males, e odios entre as partes, e dellas nascem muitas vezes grandes
desordens nas Republicas", o Regimento instruía o Vigário a "concordar
as partes, advertindo-lhes os damnos espirituaes, e temporaes que lhe
resultão, admoestando-os não gastem suas fazendas, por ser sempre duvidoso
o vencimento da causa".
Não havendo conciliação, seria aplicado, sempre
que possível, o procedimento sumário, enquadrando-se nele "todas as
causas beneficiaes e as tocantes a ellas; as matrimoniaes, [...] as
dizimaes, as de usura, simonia, blasfemia, forças; as sobre estipendio,
salarios, alimentos, e depositos, alugueres de casas e rendas dos patrimonios,
e todas as execuções de sentenças tiradas do processo". Também se
aplicava o procedimento sumário a todas as causas inferiores a dois mil
reis e àquelas que estivessem provadas por escritura ou outro documento
assinado pessoalmente pelo réu.
Admitia-se como prova, nos julgamentos sumários,
o juramento "em sua alma", instrumento que, atualmente, pode parecer
ineficaz mas que, no seu momento e considerando a mentalidade da época,
resultava altamente confiável. Sendo a pessoa "de tal qualidade"
ou com "tão justo impedimento" que não pudesse ser exigida a sua
presença, era admissível, ainda, o juramento por procurador. Mesmo no
procedimento ordinário, onde o juramento não constituía prova suficiente,
era aceito supletoriamente, se a parte apresentasse, apenas, "meia
prova". Dado, com a vênia do juiz, "em ajuda da prova", resultava
em que ficasse "a prova inteira". Já nas causas crimes, era explicitamente
proibido tomar juramento ao réu, devendo-se "escrever tudo o que elle
depuzer a ellas livremente"
O procedimento ordinário é determinado com
uma minúcia que não cabe dentro dos limites deste capítulo, incluindo
"suspeições", "excepções dilatórias", "excepções peremptorias",
"contestação da demanda", "opposições, assistencias, e autorías",
"reconvenções", "depoimentos", "dilações que se dão ás
partes para fazerem suas provas", "testemunhas que hão de ser perguntadas"
"lançamento da prova, embargos, contradictas e reprovas", "sentenças
interlocutorias e definitivas", e "condemnação nas custas".
Quanto à legislação a ser aplicada, indica-se, em primeiro lugar "o
direito e o que fica disposto em nossas Constituições". Nos casos
que não se achassem previstos, recomenda-se ao Vigário Geral "que com
discrição, e diligencia siga o que achar determinado pelo direito Canonico,
e onde elle faltar, recorra ao direito civil, e estilos recebidos".
Os Desembargadores eram três e tinham
alçada para "sentenciar todas as causas crimes, e civeis, tanto as
que perante nosso Vigario Geral se processão, como as que vem por appellação
a esta Metropoli". As apelações eram admitidas até dez dias depois
da publicação da sentença e deviam ser apresentadas por escrito. Distribuído
o processo, o desembargador escolhido como relator ficava "obrigado,
antes que o relate, ver tudo que nelle ha; assim como libello, contrariedade,
e mais artigos, provas, assim de testemunhas, como de papeis oferecidos
em prova, termos, despachos, razões, e allegações, tanto de uma parte,
como da outra, e tudo bem visto, relatará com brevidade, e clareza, e
na verdade, como está feito, sem tirar, diminuir, ou accrescentar, córar,
ou descórar cousa alguma". Enquanto isso, os outros desembargadores
deveriam "ver, e examinar com muita diligencia, e curiosidade"
e fazer "suas lembranças, e apontamentos do que notarem, não se fiando
sómente da memoria".
Tal como os tribunais diretamente dependentes
da Coroa, o Auditório Eclesiástico contava com um Chanceler, a
quem estava reservado o conhecimento de certas matérias especiais. Esse
cargo não existia no Auditório, tal como ele foi originalmente estabelecido,
e Monteiro da Vide diz tê-lo "feito presente a S. Magestade", aparentemente
sem resultado positivo, posto que ainda não havia "lugar para elle
consignado com salario, como tem os mais Desembargadores". Contudo
"para que se não falte á recta administração da Justiça das partes,
e se não confundam as jurisdições dos mais Ministros, e cada um conheça
só do que lhe pertence a seu officio", o próprio arcebispo assumira
a responsabilidade de criar e regimentar o cargo. Junto do Chanceler existia,
ainda, o Provisor, com diversas funções especificas no governo
da arquidiocese, mais a de substituir o arcebispo na presidência das sessões,
assemelhando-se, nesse ponto, ao regedor da Casa da Suplicação.
Esse tribunal era auxiliado por uma estrutura
bastante complexa, que incluía um Promotor da Justiça, vários Advogados
do Auditório, Juízes dos Casamentos, das Justificações de Genere e dos
Resíduos, Visitadores, Vigários da Vara, Solicitador da Justiça e Resíduos,
Inquiridor, Distribuidor, Contador, Depositário, Meirinho, diversos Escrivães,
um Porteiro etc. Considerando "a grande distancia, e o muito incommodo,
que experimentarão as partes, [...] se em todas as causas houverem
de vir pleitear a esta Cidade da Bahia", o regimento criava também
o cargo de Vigário Geral de Sergipe d’El-Rei, com maior alçada
e maiores atribuições que os Vigários da Vara mas sem chegar a equiparar
às do Vigário Geral de Salvador.
O regimento não faz relação detalhada das
penas aplicadas mas, em diversas passagens, alude a penas pecuniárias,
reclusão (havia uma prisão especial, conhecida como "Aljube") e
degredo. Não há menção a castigos corporais nem pena de morte e não é
provável que fossem praticadas por serem rejeitadas pelo Direito Canônico.
Pelo contrário, é certo que, conforme o mesmo direito, seriam largamente
empregadas as penas de "foro interno", entre as que destacava a
da "excomunhão", consistente, se "menor", na privação dos
sacramentos. A "excomunhão maior", pena especialmente rigorosa,
na época, representava a exclusão do sentenciado da comunidade dos fiéis,
o que envolvia, implicitamente, a sua marginalização social.
As Duas Justiças
Com tamanho poder e tão larga área de competência,
difícil seria que a Justiça eclesiástica não entrasse em conflito com
a jurisdição estatal, que o Direito Canônico denomina "poder de império".
De fato, essa é uma das grandes controvérsias que o catolicismo manteve
com os legisladores e os governos das mais diversas épocas. A Igreja reivindica
para si a completa jurisdição sobre os clérigos, julgando-se competente
mesmo em controvérsias em que apenas uma das partes o seja. Mais ainda,
reivindica jurisdição sobre tudo aquilo que represente pecado, o que inclui,
de fato, a grande maioria dos delitos tipificados criminalmente. O Estado
responde a isso que os "fiéis" também são "súditos", submetidos,
portanto, ao "poder de império", e reivindica, por isso, a jurisdição
que considera imprescindível à manutenção da ordem.
Não é raro encontrar, na história, exemplos
de concordância e até de identidade de ambos os poderes. Quase todas as
monarquias européias passaram por períodos em que os dois direitos se
confundiam, influenciando-se um ao outro e até uma justiça agindo em nome
da outra, emprestando a dos reis o "braço secular" para o cumprimento
das sentenças eclesiásticas; mas mesmo Sehling, fervoroso defensor da
jurisdição da Igreja, reconhece que "cabría demostrar que el Poder
seglar guardaba esta atención a la Iglesia solamente cuando esos actos
de ella convenían a la política de los Príncipes respectivos".
Mais intrincada ainda era a situação em Portugal,
onde, a partir de D. João III, o mesmo rei era a cabeça de ambas as justiças.
A história do Brasil colonial está cheia de casos em que governadores,
ouvidores e relações se enfrentam com bispos e tribunais eclesiásticos.
Não é improvável que os reis tirassem proveito dessas rixas. Como em outras
áreas da administração colonial, ali também essa imprecisa delimitação
de jurisdições estimulava uma mútua fiscalização, que transformava os
funcionários de ambas as áreas em espiões do seu próprio comportamento
e valiosos informantes da Coroa. Mas tudo tem seu limite, e algumas definições
precisavam ser dadas para que a maquinaria administrativa pudesse funcionar
adequadamente.
As Ordenações Filipinas atacam
esse problema no livro 2º. Ali fica estabelecido que "hão de responder
perante as Justiças seculares": "Os Arcebispos, Bispos, Abbades,
Priores, Clerigos, e outras pessoas Religiosas, que em nossos Reinos não
tem Superior ordinario, em qualquer feito civel, que pertença a bens patrimoniaes,
que elles hajão, ou devam haver, ou elles tenhão, e outrem lhos quizer
demandar, ou por dividas, que elles devão por razão de suas pessoas e
bens patrimoniaes, que per alguma maneira tenhão e lhes pertenção, que
não são das Igrejas, nem pertenção a ellas". E assim continua enumerando
situações, das quais, em geral, se conclui que não poucas causas cíveis
- fossem os clérigos demandantes ou demandados - podiam ser ventiladas
diante da justiça real.
Muito diferente era o tratamento das causas
criminais, posto que a Igreja gozava de imunidades que não podiam ser
violadas. Todo crime cometido por clérigo secular, religioso ou membro
das ordens militares, devia ser julgado por autoridade eclesiástica. Pairava,
no entanto, o perigo certo de que o espírito de corpo dos juízes poupasse
os delinqüentes da sua justa condenação ou, ao menos, se contentasse com
punições leves, inferiores ao castigo realmente merecido. Para esses casos,
a ordenação recua, cautelosamente, a "Dom Affonso, o Quinto", que
"com acordo de alguns de seu Conselho e Desembargo, determinou e ordenou
(não para que se publicasse por Lei, mas para usar de tal determinação,
em quanto a achasse boa e proveitosa)" que se os eclesiásticos não
fossem adequadamente punidos por seus tribunais "os lançaria de seus
moradores, e tiraria as Terras, Jurisdições, Castellos, Officios, Vassallagens,
Privilegios, Tenças e Moradias, que delle, ou de seus antecessores de
graça, ou em quanto fosse sua mercê tivessem". Isto é, seriam punidos
indiretamente, através da retirada de tudo aquilo que receberam da Coroa,
o que seria feito "não por via de jurisdição, nem de juizo, mas por
usar bem de suas cousas, e afastar de si os malfeitores".
Apesar dessas reservas, o "braço secular"
deveria ajudar à Justiça eclesiástica, não apenas no caso da Inquisição
como em diversas penalidades impostas pelos bispos e visitadores, efetivando
prisões, executando sanções pecuniárias etc. Até no caso das penas especificamente
eclesiásticas, como a excomunhão, o "braço secular" reforçava a
punição com reclusão e penas pecuniárias "pelo tempo que na excommunhão
stiver, até que seja absoluto", o que não se aplicaria, apenas, sendo
os excomungados "Juizes nossos, nem Officiaes alguns outros da nossa
Justiça".
Existiam, ainda, casos em que as jurisdições
eram explicitamente concorrentes. Eram os chamados "mixti fori",
incluindo: "Quando se procede contra publicos adulteros, barregueiros,
concubinarios, alcoviteiros, e os que consentem as mulheres fazerem mal
de si em suas casas, incestuosos, feiticeiros, benzedeiros, sacrilegos,
blasphemos, perjuros, onzeneiros, simoniacos" etc. Conforme o caso,
as soluções eram diversas, desde "queixar e demmandar sua injuria,
emenda e satisfação perante o Juiz Ecclesiastico, ou secular, qual mais
quizer", em cujo caso "tanto que perante hum delles requerer, não
poderá variar, nem tornar a requerer perante o outro", até o recurso
a ambos os tribunais para que cada um cuidasse do caso dentro de sua área
de competência específica.
Merece ser feita, finalmente, uma breve referência
ao direito de asilo "em qualquer Igreja, ainda que não seja Sagrada;
com tanto que seja edificada per auctoridade do Papa, ou Prelado, para
nella se celebrar o Officio Divino". O refúgio nos locais de culto
era, de longa data, a salvação dos perseguidos, mas a ordenação estabelece
limites. Só poderia ser protegido pela Igreja "o malfeitor, que tem
feito tal maleficio, por que merece haver morte natural, ou civil, ou
cortamento de membro, ou qualquer outra pena de sangue", ou seja,
o refúgio era lícito somente se fosse para impedir um dano físico.
Também não seria defeso pela Igreja um judeu,
mouro ou qualquer outro infiel que procurasse ajuda, mas "se elle se
quizer logo tornar Christão, e de feito for tornado á Sancta Fé de nosso
Senhor JESU CHRISTO, antes que parta da Igreja, poderá gozar da immunidade
della".
Existiam, ainda, diversas outras exceções
ao direito de asilo, entre as quais a de quem "de proposito, ou insidiosamente"
e com o propósito consciente de "offender outrem" houvesse cometido
a culpa a cujo castigo tentava escapar. Dava lugar essa ressalva a uma
complexa série de exemplos, conforme os quais era reconhecido o direito
de asilo "no ladrão, que furta, e no que commette adulterio com molher
casada" porque "sua intenção não foi principalmente fazer offensa
a algum, mas o proposito principal do ladrão foi haver o alheio, e o do
adultero satisfazer ao carnal desejo", mas não era dado "se algum
homem de proposito roubasse outro forçosamente do seu, ou lhe tomasse
forçosamente sua molher".
Cabe registrar, por fim, o caso do escravo
que, fugindo do seu senhor, procurasse refúgio na Igreja. Nada mais justo,
aos nossos olhos, que dar proteção a quem nenhum delito cometeu e apenas
procurava fugir a um cativeiro que lhe foi imposto, mas isso iria contra
as estruturas básicas da sociedade, e a ordenação, atalhando-o, adverte
que "se o scravo (ainda que seja Christão) fugir a seu senhor para
a Igreja, acoutando-se a ella [...] não será por ella defendido,
mas será por força tirado della". Mais ainda, "se de sua tirada
se lhe seguir a morte, por de outra maneira não o poderem tirar, não haverá
seu senhor, ou quem assi o tirar (sendo seu criado, ou fazendo-o per seu
mandado), pena alguma".

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