Aclamação do imperador D. Pedro
I
(gravura de J. B Debret)
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Memória
da Justiça Brasileira - 3 |
Capítulo 10
O Judiciário na Regência
e na Constituinte
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"Estas repartições
foram creadas pelo almanaque alegava, nas Cortes, o
deputado carioca Fagundes Varella he justo que pelo almanaque
sejam tambem acabadas".
Embora, falando assim,
ferisse os brios e os anelos independentistas dos seus patrícios, não
estava o deputado carioca por completo desprovido de fundamentos. "A
extincção destes tribunaes é muito precisa acrescentava he
necessario acabarmos com essas sanguexugas, que tanto têm arruinado
aquella provincia". Externava, mais uma vez, a tradicional
insatisfação dos brasileiros com o alto custo e a escassa utilidade
dos tribunais reinóis, mas também refletia a versão possivelmente
inventada pela imprensa segundo a qual D. João VI, ao chegar
ao Rio de Janeiro, abrira o almanaque da cidade de Lisboa e copiara,
literalmente, as instituições ali existentes.
Gracejos à parte, é indiscutível
que D. João VI, então príncipe regente, bem pouco fez para modernizar
ou adaptar à realidade brasileira as instituições importadas de Portugal.
Fora o seu caráter pouco empreendedor, encontrava-se na condição de
regente de uma Coroa no exílio, o que não lhe dava muita margem para
inovações. Já o seu filho, também na condição de regente, porém mais
jovem, com uma personalidade mais ativa e um entorno favorável, aproveitaria
o retorno do pai a Lisboa para, na sua ausência, publicar um decreto
de fundamental importância. O texto é o seguinte:
"Vendo que nem
a Constituição da Monarchia Portugueza, nem as disposições expressas
na Ordenação do Reino, nem mesmo a Lei da Reformação da Justiça
de 1582, com todos os outros Alvarás, Cartas Regias e Decretos
de meus Augustos Avós, tem podido affirmar de um modo inalteravel,
como é de Direito Natural, a segurança das pessoas;
E constando-me que
alguns Governadores, Juizes Criminaes e Magistrados, violando o
sagrado deposito da jurisdicção que se lhes confiou, mandam prender
por mero arbitrio, e antes de culpa formada, pretextando denuncias
em segredo, suspeitas vehementes e outros motivos horrorosos á humanidade,
para impunemente conservar em masmorras, vergados com o peso de
ferros, homens que se congregaram por os bens que lhes offerecêra
a instituição das sociedades civis, o primeiro dos quaes é sem
duvida a segurança individual;
E sendo do meu primeiro
dever e desempenho de minha palavra o promover o mais austero respeito á lei,
e antecipar quanto ser possa os beneficios de uma constituição
liberal:
Hei por bem excitar
pela maneira mais efficaz e rigorosa a observancia da sobremencionada
legislação ampliando-a, e ordenando, como por este Decreto ordeno;
1º Que desde
a sua data em diante nenhuma pessoa livre no Brasil possa jamais
ser presa sem ordem por escripto do juiz ou magistrado criminal
do territorio, excepto sómente o caso de flagrante delicto, em
que qualquer do povo deve prender o delinquente.
2º Que nenhum
juiz ou magistrado criminal possa expedir ordem de prisão sem preceder
culpa formada por inquirição summaria de tres testemunhas, duas
das quaes jurem contestes, assim o facto que em lei expressa seja
declarado culposo, como a designação individual do culpado; escrevendo
sempre sentença interlocutoria que o obrigue á prisão e livramento,
a qual se guardará em segredo até que possa verificar-se a prisão
do que assim tiver sido pronunciado o delinquente;
3º Que quando
se acharem presos os que assim forem indicados criminosos, se lhes
faça immediata e successivamente o processo que deve findar dentro
de quarenta e oito horas peremptorias, improrogaveis, e contadas
do momento da prisão, principiando-se sempre que possa ser, por
a confrontação dos réos com as testemunhas que os culparem, e ficando
abertas e publicas todas as provas que houverem, para assim facilitar
os meios de justa defeza, que a ninguem se deve difficultar ou
tolher, exceptuando-se por ora das disposições deste paragrapho
os casos que, provados, merecerem por as Leis dos §§ 1º e 2º do
Alvará de 31 de Março de 1742;
4º Que, em
caso nenhum, possa alguem ser lançado em segredo ou masmorra estreita,
escura, ou infecta, pois que para as adoecer e flagellar: ficando
implicitamente abolido para a sempre o uso de corrente, algemas,
grilhões outros quaesquer ferros inventados para martyrizar homens
ainda não julgados a sofrer qualquer pena afflictiva por sentença
final, entendendo se todavia, que os juizes e magistrados criminaes
poderão conservar por algum tempo em casos gravissimos incommmunicaveis
os delinquentes, comtanto que seja em casas arejadas e commodas
e nunca manietados ou soffrendo qualquer especie de tormento:
Determino, finalmente,
que a contravenção, legalmente provada, das disposições do presente
Decreto, seja irremissivelmente punida com o perdimento do emprego
e inhabilidade perpetua para qualquer outro em que haja exercicio
de jurisdicção".
O decreto reproduzido
constitui, por si, uma sorte de declaração de direitos e já prefigura
várias das garantias que, dois anos depois, seriam inseridas no artigo
179 da Constituição.
Revalidação das Leis
Dentre as leis ordinárias
elaboradas pela Assembléia Geral, especialmente uma estava revestida
de caráter emergencial, sendo sem dúvida imprescindível para evitar
a anarquia.
Fora a carência de uma
Constituição, ressentia-se o Império da falta de Códigos e Leis ordinárias
reconhecidamente em vigor. Excetuando as normas publicadas por D. Pedro
após a Independência, toda a legislação disponível era de origem portuguesa
e, em conseqüência, tinha a sua validade questionada. Entretanto, nenhuma
sociedade pode viver sem uma legislação básica que regule as relações
interpessoais e de governo. Não sendo possível elaborar integralmente
a nova legislação de imediato, a única solução viável era, temporariamente,
colocar em vigor as Ordenações Filipinas e toda a legislação
extravagante herdada da península.
Assim, em 27 de setembro
foi votada pela Assembléia e, em 20 de outubro, sancionada pelo imperador,
uma lei com o seguinte conteúdo:
"Art. 1.º As
Ordenações, Leis, Regimento com que o Brazil se governava até o
dia 25 de Abril de 1821, em que Sua Magestade Fidelissima, actual
Rei de Portugal, e Algarves, se ausentou desta Côrte; e todas as
que foram promulgadas daquella data em diante pelo Senhor D. Pedro
de Alcantara, como Regente do Brazil, em quanto Reino, e como Imperador
Constitucional delle, desde que se erigiu em Imperio, ficam em
inteiro vigor na parte, em que não tiverem sido revogadas, para
por ellas se regularem os negocios do interior deste Império, emquanto
se não organizar um novo Codigo, ou não forem especialmente alteradas.
Art. 2.º Todos os
Decretos publicados pelas Côrtes de Portugal, que vão especificados
na Tabella junta, ficam igualmente valiosos, emquanto não forem
expressamente revogados".
Embora atinada, essa solução
de emergência deveria ter durado, escassamente, até a elaboração das
novas codificações. Entretanto, a crise que, em 1831, culminara com
a abdicação do imperador, viria interromper esse processo. As Ordenações
Filipinas atravessaram todas as Regências, o Segundo
Império e, já bem entrado o período republicano, ainda constituíam,
em certas matérias, a única base legal para os julgamentos.
O Judiciário no Projeto
da Constituinte
Interrompidas que foram
as deliberações da Constituinte na consideração do artigo 24, o título
referente ao Poder Judiciário não chegou a ser analisado. Foi, no entanto,
apresentado à Assembléia, na sessão de 1º de setembro de 1823. O texto
então proposto é o seguinte:
"Art. 187 O
Poder Judicial compõe-se de juizes, e jurados. Estes por emquanto
têm só logar, em materias crimes na fórma do art. 13.
Art. 188 Uma
lei regulará a composição de conselho de jurados e a fórma do seu
procedimento.
Art. 189 Os
jurados pronunciarão sobre o facto e os juizes applicarão a lei.
Art. 190 Uma
lei nomeará as differentes especies de juizes de direito, suas
graduações, attribuições, obrigações e competencia.
Art. 191 Os
juizes de direito letrados são inamoviveis e não podem ser privados
do seu cargo sem sentença proferida em razão de delicto, ou apresentação
com causa provada e conforme a lei.
Art. 192 A
inamovibilidade não se oppõe á mudança dos juizes letrados de primeira
instancia de uns para outros logares, como no tempo que a lei determinar.
Art. 193 Todos
os juizes de direito e officiaes de justiça são responsaveis pelos
abusos de poder e erros que commetterem no exercicio dos seus empregos.
Art. 194 Por
suborno, peita, e conluio haverá contra elles acção popular.
Art. 195 Por
qualquer outra prevaricação punivel pela lei, não sendo mera infracção
da ordem do processo, só pode accusar a parte interessada.
Art. 196 Toda
a creação de tribunaes, toda a suspensão ou obviação das fórmas,
excepção do caso mencionado no art. 27, são actos inconstitucionaes
e criminosos.
Art. 197 O
Concurso dos poderes constitucionaes não legitima taes actos.
Art. 198 No
processo civil a inquirição de testemunhas e tudo mais será publico;
igualmente no processo crime, porém só depois da pronuncia.
Art. 199 O
codigo será uniforme e o mesmo para todo o Imperio.
Art. 200 As
penas não passarão da pessoa dos delinquentes e serão só as precisas
para estorvar os crimes.
Art. 201 A
Constituição proibe a tortura, a marca de ferro quente, o baraço
e pregão, a infamia, a confiscação dos bens, e emfim todas as penas
cruéis e infamantes.
Art. 202 Toda
especie de rigor, além do necessario, para a bôa ordem e socego
das prisões, fica prohibido e a lei punirá a sua contravenção.
Art. 203 As
casas de prisão serão seguras, mas commodas que não sirvam de tormento.
Art. 204 Serão
visitadas todos os annos por uma commissão de tres pessoas, as
quaes inquirirão sobre a legalidade ou ilegalidade da prisão e
sobre o rigor supérfluo praticado com os presos.
Art. 205 Para
este effeito se nomearão em cada comarca seis pessoas de probidade,
que formem alternadamente a commissão dos visitantes.
Art. 206 Serão
eleitos pelas mesmas pessoas a maneira porque se elegem os deputados,
e durarão em actividade o mesmo tempo que as legislaturas.
Art. 207 A
commissão de visita dará conta ás salas da Assembléa, em um relatorio
impresso, do resultado das suas.visitas periodicas e solemnes.
Art. 208 A
apresentação do preso nunca será negada aos parentes e amigos,
salvo estando incommunicavel por ordem do juiz na fórma da lei".
Embora possam reconhecer-se,
no texto acima, algumas das normas consagradas posteriormente na Constituição,
trata-se, a todas as luzes, de um rascunho ainda imperfeito. Boa parte
dos artigos trata de minúcias mais adequadas a uma regulamentação por
lei ordinária, a definição dos órgãos é incipiente e não há menção
alguma aos tribunais superiores. 
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