Entre outros, D. Henrique, o Navegador, e o rei D. Afonso V, o Africano.
Entre outros, o Infante D. Henrique, o Navegador, e o rei D. Afonso V, cognominado "o Africano".
(Detalhe do Políptico de São Vicente, de Nuno Gonçalves)
  Memória
da Justiça Brasileira - 1
Capítulo 1

"Senhor,
Falta Cumprir-se Portugal"

O Condado Portucalense, origem do atual Portugal, começou a ganhar força própria em 1080, sob o comando de dom Henrique de Borgonha. Era, na época, um simples feudo, subordinado ao reino de Leão, mas a luta contra os mouros permitiu a D. Henrique ganhar a liderança dos territórios vizinhos, aumentando a sua autonomia de decisão diante da Coroa. Não era alheio a este crescimento o reconhecimento papal, diante da sua atividade militar contra os infiéis. Em 1143, D. Afonso VII, de Leão, admitiu, pelo tratado de Zamora, a independência do novo reino, conduzido pelo, até então, duque de Portugal, dom Afonso Henriques, que conseguiu também, em 1179, o reconhecimento e a proteção oficial da Santa Sé. Mesmo assim, a jovem monarquia portuguesa sofreria ainda diversos avanços e recuos diante das ambições dos seus vizinhos.

Muito mais que aos espanhóis, cabia aos portugueses o direito ao descobrimento dos novos mundos. Não era em outra tarefa que eles se aprimoravam desde vários séculos atrás. Os mouros, progressivamente isolados no sul da Espanha, não constituíam para eles um perigo tão grande como os seus vizinhos leoneses e castelhanos, aliás, tão ibéricos e católicos quanto os portugueses. Raça e religião não eram bandeiras tão úteis para Portugal. Por outro lado, os interesses da Coroa estavam intimamente vinculados aos da classe comercial, fortemente entremesclada de mouros e judeus, o que contribuía a criar um clima mais tolerante e pragmático.

Não eram os portugueses grandes navegantes. Literalmente molhados pelas ondas do Atlântico, limitavam-se a comprar e distribuir o que os mercadores italianos traziam do Mediterrâneo e do Oriente. Assim viram passar os irmãos Vivaldi que, cansados de comerciar com os árabes, resolveram procurar, contornando a África, uma rota marítima livre para as Índias. Era maio de 1291 e, apesar do seu visionarismo, acertaram no fim, mas erraram nos meios. Os navios genoveses, tão úteis no Mediterrâneo, revelaram-se incapazes de suportar as duras condições do Atlântico. Outras expedições se seguiram. Algumas, à procura dos Vivaldi; outras, imitando-os com a esperança de ter mais sorte. Aos poucos foram compreendendo que as naves e instrumentos deviam ser adaptados e, para isso, nada melhor que uma aliança com os portugueses, que, donos dos melhores portos atlânticos, começavam a fortalecer-se no comércio. Genoveses e venezianos partilharam com os portugueses as primeiras explorações fora do estreito de Gibraltar. Aos poucos, os portugueses aprenderam o ofício, e não tardaram em superar seus professores. Se o século XIV foi, principalmente, de aprendizado, o seguinte seria, por excelência, o do mestrado.

Quase na virada do século, em 1394, nascia o príncipe Henrique, chamado "o navegador" apesar de poucas vezes ter abandonado as praias de Portugal. Quinto filho de D. João I, sem expectativas de reinar, estabeleceu, no castelo de Sagres, o centro de uma enorme rede de pesquisa e desenvolvimento tecnológico que chegaria a reunir, sempre atualizado, todo o conhecimento geográfico de sua época. Deitou mão no antigo projeto dos italianos e concentrou os esforços nacionais no desenvolvimento do comércio de ultramar e na procura do caminho até as Índias. A "Escola de Sagres" desenvolveu, entre outras coisas, a nau e a caravela, os primeiros veículos capazes de afrontar, com segurança, as longas e acidentadas travessias atlânticas. Os seus discípulos chegaram às ilhas da Madeira, às Açores, ao norte da África. Aos poucos, reconheceram e ocuparam o litoral africano, estabelecendo feitorias, sempre acompanhando a costa, à procura das Índias. Fora esse objetivo prioritário, o príncipe encorajava quaisquer outras explorações. Sobrinho do rei Erik, da Dinamarca, estimulou o seu tio a sair atrás das pegadas dos antigos vikings. Já ambos falecidos, em 1476, é o sucessor de Erik, Christian I, quem organizou a expedição que teria colocado Colombo, pela primeira vez, diante do continente americano. A viagem, baseada em mapas e informações antigas, passou pela Islândia e continuou "ultra Tile, 100 milhas" (citado por Frei BARTOLOMÉ DE LAS CASAS em "Historia de las Indias"), o que colocaria, praticamente, à vista o continente. Colombo teria participado dela como piloto, a serviço de Portugal e, verdade ou não, o certo é que, nessa época, ele aparece, comprovadamente, na corte portuguesa, tentando convencer D. João II a fretar uma nova expedição para encontrar as terras que ele, até à morte, confundiria com as Índias.

Mas não havia mais nenhum príncipe navegante para apoiar o seu pedido. Dom João, preocupado com outras prioridades e certo de que, mais tarde ou mais cedo, a cabotagem do litoral africano o conduziria à meta desejada, preferiu não arriscar e, sem perceber, entregou o desconhecido continente americano aos seus vizinhos espanhóis. Foi a primeira grande frustração do destino imperial português.

Enquanto Colombo procurava em Castela o apoio negado, Portugal insistia no projeto original. Em 1487, Bartolomeu Dias conseguiu, enfim, virar o temido cabo da Boa Esperança. Em 1494, já ciente da viagem de Colombo e da bula papal que dividira o mundo por uma linha no meio do Atlântico, Portugal conseguia ainda negociar com Castela e deslocar a linha 270 léguas a oeste, garantindo o seu direito a uma parte da América. Em 1498, chegando a Calicute, Vasco da Gama concretizou um sonho de três séculos. A Índia era portuguesa! Finalmente, sobre a virada do novo século, Pedro Alvares Cabral, deliberada ou involuntariamente, encontrava um Porto Seguro, numa terra ainda desconhecida, mas que, evidentemente, pertencia ao novo continente.

Apesar da oportunidade perdida, o século XVI foi, ainda, próspero para Portugal. Não teve a sorte de achar, nas suas possessões americanas, tesouros comparáveis aos que a Espanha conseguira no México e no Peru, mas a posse de Goa e da costa africana junto com a ainda nascente exploração do Brasil lhe garantiam uma atividade econômica ágil. O país conheceu o seu apogeu econômico e cultural durante o reinado de João III. Foi um período de estabilidade, que favoreceu a consolidação da burocracia administrativa e a centralização do poder real. Também a igreja realizou os seus avanços, desenvolvendo o trabalho missionário, nas colônias, e aumentando o seu controle da metrópole com a instalação do Santo Ofício, em Lisboa, em 1536. A autoridade real viu-se fortalecida pela incorporação à Coroa do mestrado das três principais ordens militares-religiosas, as que lhe garantiriam o apoio da nobreza. O monopólio da produção asiática e do tráfico de escravos parecia indicar que a perda da América - aliás, ainda pouco lucrativa se excetuarmos o ouro e a prata que os espanhóis tiraram dos índios - não tinha sido um golpe tão grande. Até as cruzadas constituíam, fora a origem e justificação religiosas, novas tentativas de expansão do império mercantil. Foi numa destas tentativas que D. Sebastião, ultimo rei da dinastia de Avis, caiu às portas de Alcácer-Quibir, levando com ele boa parte do seu exército e as últimas ilusões de Portugal. Este já não era o mesmo dos tempos de João III. Epidemias, guerras e outras catástrofes tinham enfraquecido a sua economia e reduzido a sua população nos últimos anos. Mas o golpe de Alcácer-Quibir foi fatal. De um país ainda em franca expansão política e econômica, Portugal transformou-se, bruscamente, num estado empobrecido e acéfalo. Até a própria independência, bravamente defendida durante séculos, foi perdida. O estupor cederia lugar, apenas, à esperança em soluções mágicas. Durante muito tempo, o povo português esperou que dom Sebastião - que, segundo a lenda, afundou no mar com sua espada e sua coroa - voltasse dentre os mortos para redimir o seu reino.

 
  SUMÁRIO