Isabel, princesa de Portugal e rainha da Espanha.
Isabel, princesa de Portugal e rainha da Espanha, esposa de Carlos V e mãe de Felipe II. (Detalhe de um óleo de Tiziano) 
  Memória
da Justiça Brasileira - 1
Capítulo 2

"De Hespanha,
nem Vento nem Casamento"

Embora os portugueses relutassem em aceitar a idéia, o direito que levou Felipe II de Espanha ao trono de Portugal era, na época, não apenas legítimo mas costumeiro. Casamento e herança determinavam as fronteiras com mais freqüência que a política e a guerra. Não foi de outra maneira que Fernando V, de Aragão, e Isabel I, de Castela, uniram seus reinos e possibilitaram a consolidação da Espanha.

O casamento de Isabel e Fernando representou uma verdadeira revolução para a Europa do século XV. Uniram-se com ele não apenas Aragão e Castela, mas, também, Leão, Valência, Andalucia, Catalunha, e ainda, um pouco mais longe, a Sardenha e a Sicília, todas elas já vinculadas a esses dois reinos por anteriores conquistas e matrimônios. Os aragoneses, exímios navegantes, possuíam vários entrepostos comerciais na costa oriental do Mediterrâneo. Já casados, os dinâmicos soberanos dedicaram-se a ampliar esse patrimônio pelas vias militar e diplomática, anexando aos seus domínios o reino de Nápoles e os últimos territórios que restavam em poder dos árabes. Conseguiram, ainda, por bula papal, o domínio sobre todas as terras americanas, descobertas e por descobrir.

Essa geopolítica de base matrimonial era essencialmente instável. Morta Isabel, Leão e Castela ficaram como herança para a princesa Juana, filha única do casal, passando com ela ao domínio do seu marido, Felipe de Habsburgo, chamado "el Hermoso". Esta divisão, que poderia ter sido definitiva, alterando imprevisivelmente a face da Europa, não chegou a ser consolidada. Felipe faleceu prematuramente, em 1506, provocando a demência da sua esposa e retornando, numa via hereditária inversa, os reinos perdidos a Fernando V. Preparavam-se, assim, as transformações mais surpreendentes. Carlos, filho de Juana e Felipe, herdaria não apenas as imensas possessões do avô mas, também, a Áustria e os Países Baixos. Em 1519, foi eleito imperador do Sacro Império Romano-Germânico, que dominava a Alemanha e outros países centro-europeus. Enquanto os seus "adelantados" realizavam a conquista efetiva da América, ele mesmo conduzia as guerras que lhe dariam o controle da Itália. Nas suas próprias palavras, o sol "não se punha" nos seus domínios.

E o casamento? Não fugiu à regra. Carlos V casou com a princesa Isabel de Portugal, filha de Dom Manoel I - sim, aquele das Ordenações Manoelinas - que viria, afinal, a ser a mãe do segundo Felipe, protagonista inicial da nossa história.

Embora o interesse em consolidar alianças tivesse uma influência destacada, não era apenas a ambição territorial que motivava tais casamentos. Subjazia neles a crença na origem divina do poder real. O sangue de um monarca teocrático era precioso demais para ser misturado com o dos plebeus ou mesmo com o dos nobres de menor grau. As bodas de príncipes e princesas, romanticamente evocadas nos contos de fadas, serviam, na verdade, para conservar o isolamento e os privilégios de uma classe que se considerava escolhida por Deus para governar o mundo. Resulta interessante, neste aspecto, consultar a Collecção Chronologica da Legislação Portugueza, compilada por Andrade e Silva, onde aparece transcrito, elevado ao nível das leis do reino, o contrato de matrimônio entre D. Theodósio, Duque de Bragança e Barcelos, e uma donzela espanhola, sobrinha do rei. O contrato, escrito em 1603, começa, como era de se esperar, com a necessária dispensa papal, posto que, dentro de uma classe tão restrita, era quase inevitável a união conjugal entre parentes consangüíneos. Determinava-se, depois, o rito da boda, que seria realizada em Castela, sem a presença do noivo, representado na cerimônia pelo Duque de Lerma, personagem principal da corte espanhola. Informado da realização do matrimônio, o noivo, ainda em Portugal, ratificaria o casamento, após cuja comunicação, a donzela seria solenemente conduzida até a fronteira entre os dois países, onde ele iria esperá-la. Esse encontro deveria ser realizado "pela manhã, e a ora que possam chegar, antes de comer, a algum logar ou sitio dentro de Portugal, em cuja Igreja possam ouvir missa e receber as bençãos e velações nupciais". Toda esta programação ocupava apenas as três primeiras cláusulas do contrato. As 20 restantes foram destinadas exclusivamente a regular os direitos patrimoniais dos nubentes e de suas famílias. As condições foram negociadas em Valladolid, entre o Duque de Lerma, procurador do interessado, e o pai da noiva, resultando em escritura de capitulação traduzida e publicada por ordem do rei. Se os noivos se conheciam, ou não, antes da boda é um aspecto que não fica claro e não parece ser de interesse das partes contratantes.

Mas esses acordos de cavalheiros não garantiam a união dos povos. Navarra resistiu à integração até 1612. Catalunha manteve, durante 11 anos, uma revolta contra a Coroa. Um estado coeso só poderia ser construído com a união de todas as classes, e os "reis católicos" logo perceberam a necessidade de uma bandeira comum, baseada nas confluências principais dos vários reinos, entre as que se destacavam a raça e, principalmente, a religião. Abandeirados da fé católica, erigiram em "guerra santa" a expulsão definitiva dos muçulmanos que, durante sete séculos, dominaram vastas áreas da península. Essa campanha, que já isolara os invasores no extremo sul, culminou com a reconquista de Granada, em 1492. No mesmo ano, 170.000 judeus, que recusavam o batismo, foram expulsos da Espanha recém-consolidada. Era mais um capítulo de um outro conflito que já provocara muitas mortes e que também não iria terminar com esta medida. Por outra parte, já em 1478 fora instalado, à instância de Fernando e Isabel, o Tribunal do Santo Ofício. Ganhavam, assim, além do cartaz de lutadores contra os inimigos comuns, uma forte arma para lutar contra esses e outros inimigos e consolidar o seu poder.

A unidade assim obtida cambaleou, no entanto, quando o jovem Carlos, nascido e criado em Gante, subiu ao trono, rodeado de conselheiros borguinhões e sem falar uma palavra de castelhano. As comunas se rebelaram contra as suas decisões. Os nobres, cuja influência também diminuíra com a chegada dos estrangeiros, apoiaram, inicialmente, o movimento, mas desistiram quando o medo da ação dos "comuneros" contra os seus próprios privilégios superou as suas reivindicações nacionalistas. Já no âmbito europeu, Carlos I (mais conhecido como Carlos V, pela sua posição na sucessão do Sacro Império) contou com um novo inimigo, capaz de aglutinar as suas dispersas possessões sob a bandeira de que os seus avós já se haviam utilizado. Católicos e protestantes se digladiavam no centro da Europa, e Carlos, "soberano pela graça de Deus", ergueu-se em paladino da Contra-reforma. Na Espanha, mesmo após a conclusão das guerras de reconquista, as tensões raciais e religiosas continuavam. Os descendentes de mouros viraram "mouriscos" e os de judeus, "cristãos novos". Embora a perseguição não fosse já tão violenta, a segregação permanecia, constituindo um potencial inimigo interno de periculosidade suficiente para garantir, na defesa, a união dos "cristãos velhos" em torno da Coroa.

No entanto essa união tinha um alto custo. A expulsão de mouros e judeus privara a Espanha da sua população economicamente mais ativa e a marginalização dos seus descendentes continuava a imobilizar o crescimento. Os nobres espanhóis estavam alheios ao capitalismo mercantil que nascia no resto da Europa. Desprezavam o comércio, considerado atividade parasitária, porque não gerava novos bens, e valorizavam o trabalho da terra, enquanto fosse feito pelos seus servos. Apenas o governo e a guerra eram ocupações dignas da nobreza. Enquanto isso, a aristocracia menor dos "hijos d’algo" (origem do vocábulo "fidalgo") estudava nas universidades e preenchia os cargos administrativos e eclesiásticos. A única atividade medianamente produtiva era a criação de ovelhas, que abastecia a industria têxtil flamenga, mas o país dependia mesmo era da prata e do ouro obtidos das colônias americanas. Enquanto Carlos I se regozijava da extensão do seu poder e Felipe II se rodeava de um luxo severo e contido, mas não menos dispendioso, Espanha importava quase tudo que consumia e deixava os metais preciosos atravessarem o seu território para gerar, no seu destino final, o poderio industrial e financeiro dos países centro-europeus.


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