Combate entre navios holandeses e portugueses.
(Detalhe de uma iluminura de Franz Post) |
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Memória da Justiça Brasileira -
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Capítulo 11
O Conflito
Iminente |
A chegada da nova turma de desembargadores
coincidia com o fim da trégua de dez anos que Felipe III assinara com a
Holanda. Menos político do que seu pai, Felipe IV não soube renovar o
pacto, e a criação da Companhia das Índias Ocidentais colocou todas as
colônias hispano-portuguesas da América na rota da expansão holandesa. O
conflito iminente foi a marca da nova Relação desde o momento mesmo em que
"antes que entrasse em casa e se desenjoasse e descansasse da
viagem", o governador Mendonça Furtado resolveu inspecionar "o
almazém das armas e da pólvora que estava na sua loge", dando,
simbolicamente, uma amostra da sua disposição para a defesa da cidade.
Pedro Casqueiro da Rocha, ouvidor geral e auditor da gente de guerra, foi
transitoriamente incumbido da função de inspetor das fortificações e
enviado a Pernambuco para aplicar o mesmo imposto que tanto trabalho
daria, no Rio, a Sousa Cardenas. O imposto, criado pelo governador, foi
aprovado por carta régia de 20 de julho de 1623, que confirmou a missão de
Casqueiro, e mandou advertir às autoridades de Olinda para lhe dar todo
apoio. Que a advertência demorou a chegar fica claro ao ler-se outra
carta, de 26 de novembro, que requer explicações de por que Matias de
Albuquerque, capitão de Pernambuco, não foi avisado da missão. Mais tarde
ainda, em 17 de julho de 1624 - a Bahia já estava em poder dos holandeses
- a Coroa dispunha que parte do dinheiro arrecadado "se hade deixar
n’aquella Capitania para sua fortificação, levando-se o restante á Bahia
para se gastar na obra do forte novo da Lagem". Trata-se,
evidentemente, do reduto triangular que, mesmo inconcluso, ofereceu uma
desesperada resistência aos invasores. A mesma carta informa que Casqueiro
já voltou de Pernambuco e encomenda a Matias de Albuquerque e à câmara de
Olinda terminar com a arrecadação e remessa do dinheiro.
A mesma fortificação coloca em evidência um
outro personagem de grande relevo: o bispo Marcos Teixeira, que, "sendo
rogado que quisesse ir benzer a primeira pedra que se lançou no cimento do
forte, não quis ir, dizendo que se lá fôsse seria antes amaldiçoá-la, pois
fazendo-se o dito forte cessaria a obra da sé, que se fazia do dinheiro da
imposição". Na verdade, Frei Vicente, insuspeito nesta matéria,
garante que o governador já reservara "seis mil cruzados para correr a
obra da sé".
O conflito entre ambas autoridades era já
antigo. Chegava o bispo à Bahia, em 8 de dezembro de 1622 - data
particularmente solene por ser a festa da Imaculada Conceição -, quando
aconteceu o desentendimento inicial. Enquanto Teixeira se achava no dever
de "ir revestido da capa de asperges, mitra e báculo, lançando bênçãos
ao povo, como manda o cerimonial romano", Mendonça Furtado fazia
questão de "ir debaixo do pálio praticando com êle". Não tendo
chegado a nenhum acordo, o governador optou por não assistir à recepção,
fazendo-se representar pelo chanceler e outros desembargadores da Relação.
A meia-solução não evitou que logo aparecessem novas dúvidas, desta vez
sobre o precedência de ambas as autoridades nos ofícios religiosos. A
Coroa determinou "que o governador se assente à parte da epístola, e
primeiro se incensasse o bispo e depois o governador". Ainda
insatisfeito, Mendonça requereu a precedência nas solenidades oficiais. A
uma consulta do Desembargo do Paço, o rei respondeu, em 3 de julho de
1624, "que, nos actos públicos em que concorrerem, ha de preceder o
Bispo". Nenhum dos litigantes estava já em posição de participar de
solenidades. Mendonça Furtado estava preso pelos holandeses e Marcos
Teixeira lutava na clandestinidade.
Mas não só contra o governador digladiava
Marcos Teixeira. Logo que tomou conta da diocese, requisitou e obteve da
Coroa a restituição da prelazia de Pernambuco, que, anos antes, fora
separada do bispado. Obteve também, embora não conste que ele o tivesse
pedido, o cargo de Inquisidor do Estado do Brasil. De fato, ele havia
ocupado já essa função em Évora, era formado em Direito Canônico e
exercitara a docência em Coimbra. Com estes antecedentes e o caráter
combativo do bispo, o choque com a Relação era inevitável. Se a
delimitação entre a Justiça e as outras funções de governo era imprecisa,
entre a Justiça civil e a eclesiástica existia uma verdadeira linha de
fogo. O conflito estourou quando Teixeira mandou embarcar para o reino
dois portugueses casados, que viviam amancebados na Bahia. O procurador da
Coroa, Francisco Mendes Marrecos, apoiado por outros membros do tribunal,
se opôs à medida, considerando que o bispo não tinha alçada para tanto.
Como era de se esperar, o bispo respondeu com a excomunhão do procurador e
o recurso à Lisboa. Foi uma das poucas derrotas do seu breve episcopado. O
rei estranhou o bispo "haver excomungado o Procurador da Corôa por
requerer o direito della, como parte", admitindo, no entanto, que, se
o próprio Mendes Marrecos houvesse cometido algum excesso, "seja logo
reprehendido".
À semelhança do período anterior, pouco ou
nada sabemos da rotina do tribunal nessa segunda etapa. Apenas algumas
resoluções, que repercutiram em Lisboa, nos chegaram por meio dos arquivos
portugueses. Uma delas, de particular interesse, é uma carta régia de 17
de janeiro de 1624 "sobre os sovas e negros livres, que João Corrêa de
Sousa, Governador que foi de Angola, enviou ao Brasil, por respeito da
guerra de Casange", os que deveriam "tornar a Angola, a custa de
João Corrêa". O episódio joga luz sobre um aspecto pouco considerado
da história da escravidão. Independentemente da inumanidade intrínseca
dessa instituição, na época era uma atividade regulamentada e sujeita a
normas de direito claramente estabelecidas.
Algumas disposições gerais viriam ainda a
modificar a rotina do tribunal baiano. Uma delas, de 18 de janeiro, proibia
mandar presos a Portugal, sem prévia autorização da Coroa, "pela grande
vexação e moléstia que se ficará dando as partes, e grande risco que correm
na viagem". A outra, de 5 de abril, dispunha que fossem considerados
como automaticamente prorrogados os prazos de validade - normalmente,
três anos - dos cargos oficiais providos nos "logares ultramarinos",
se antes não fossem designados os sucessores. A medida apenas estabelecia,
de direito, o que, de fato, era já uma prática constante. Os próprios
membros da Relação ficaram nos seus cargos muito além do prazo estabelecido.

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