A cidade do Salvador, sitiada por
terra e mar pelas tropas -hispano-luso-napolitanas.
(Detalhe de um mapa de João Teixeira Albernaz) |
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Memória da Justiça Brasileira -
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Capítulo 12
Invasão e
Resistência |
Dois membros da Relação do Brasil
destacaram-se durante a invasão da Bahia. À vista da armada holandesa,
Mendonça Furtado "proibiu aos habitantes o transporte para fóra da
cidade dos seus haveres, e o auditor geral Pedro Casqueiro [...]
foi encarregado de castigar os que transgredissem as ordens das
autoridades, sendo para isto armada uma forca". Casqueiro acompanhou
até o fim a desesperada resistência do governador. Ficou ao seu lado,
apesar da maciça deserção das tropas e da população, que fugiam nas
sombras da noite, e salvou a sua vida quando, já vencido, tentava pôr fogo
na pólvora, dizendo "que não queria ser cumplice de tão vergonhosa fuga
e nem infiel a seu rei". Militar até o fim, Mendonça deve ter pensado
no dano que faria aos invasores, evitando que tomassem a munição que lhe
restava e até levando consigo os soldados que entrassem para prendê-lo.
Casqueiro, talvez considerando que esse dano não valia tão grande
sacrifício, tirou das suas mãos a tocha e o acompanhou no seu cativeiro
até Amsterdã.
Antão de Mesquita, mais medroso ou mais
político, tal vez prevendo, com o mesmo senso prático que demonstrara em
outras ocasiões, a inutilidade da resistência, acompanhou a fuga dos
habitantes da cidade. Desde o ano anterior ocupava, em razão do
falecimento de Manoel Pinto da Rocha, o cargo de chanceler da Relação, o
que o convertia em substituto lógico do governador. Abertas as vias
sucessórias, o nome indicado foi o de Matias de Albuquerque, que ainda se
encontrava em Olinda. Enquanto o aviso era encaminhado, Mesquita assumiu
interinamente, auxiliado por um grupo de militares, a tarefa de
reorganizar a resistência portuguesa, mas a sua autoridade foi logo
contestada pelos partidários do bispo, que, mudando sua posição inicial,
assumiu a liderança da luta.
Não faltaram supostas influências
sobrenaturais durante o ano em que os holandeses dominaram a Bahia. Mesmo
antes da sua chegada, um jesuíta viu "a Christo Senhor nosso com uma
espada desembainhada contra a cidade da Bahia, como que a ameaçava, e a
outro apparecceu o mesmo Senhor com tres lanças, com que parecia atirava
para o corpo da Igreja", visões que foram interpretadas como sinais de
"algum grande castigo". À continuação, súbita e misteriosamente,
arruinaram-se as "casas de el-rei, em que o governador morava, de tal
maneira que, se as não sustentaram com espeques, se vieram todas ao
chão". Sinais divinos aconteceram, também, durante a ocupação. O
próprio Marcos Teixeira, já líder da resistência, viu "no ar uma
bandeira com Christo crucificado de uma parte e da outra S. Antonio, cuja
festa n’aquelle dia celebrava a Igreja".
Perigoso rival para Antão de Mesquita era
aquele bispo. Entendendo "que a tomada da cidade fora castigo do céu
por vícios e peccados [...] se castigava a si mesmo, e fazia tão
áspera penitência que nunca mais fêz a barba nem vestiu camisa, senão uma
sotana de burel, dormia mui pouco e jejuava muito, pregava e exortava a
todos à emenda de suas culpas pera que aplacassem a divina ira". Que
argumentos acharia, contra esses, um simples magistrado? Exemplos recentes
e bem documentados, como o de Antônio Conselheiro, ilustram a
vulnerabilidade das massas a essa pregação. O que não poderia acontecer
numa época em que a Igreja, praticamente, dominava o mundo? Por outra
parte, não era tão incomum que um eclesiástico assumisse interinamente o
governo. A mesma coisa estava acontecendo, nesse momento, em Angola, onde
o bispo governava em substituição de João Correa de Sousa.
Do curto período em que Antão de Mesquita
liderou a resistência baiana, fica hoje o testemunho do padre Vieira, mais
próximo, provavelmente, do bispo que do desembargador. Mesmo assim, ele
deixou um juízo favorável ao escrever que o magistrado "fez tudo que
poude, mas impossibilitado do estado das cousas, não poude chegar ao muito
que pretendeu". A Coroa, por sua parte, reconheceu, implicitamente,
seus serviços, ao confirmar a sua autoridade para devassar da perda e
recuperação da cidade e, mais especificamente, ao prorrogar a sua
permanência no cargo, mesmo após a extinção da Relação do
Brasil.

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