Capitão-do-mato conduzindo um escravo recapturado.
(Detalhe de uma gravura de Jean Baptiste Debret) |
|
Memória da Justiça Brasileira -
1 |
Capítulo 18
As Outras
Justiças |
Além da Linha de
Tordesilhas
Valha a referência, antes de terminar esta
síntese, às outras formas de justiça que imperavam, durante o período
estudado, no atual território brasileiro. Em primeiro lugar, não podemos
esquecer que boa parte dele, em virtude do tratado de Tordesilhas, estava
sob o domínio direto de Espanha, embora deva ser feita a ressalva de que
esse domínio era tão teórico quanto o que os portugueses mantinham sobre o
setor que lhes correspondera.
Não estava a Espanha tão limitada quanto
Portugal à exploração das regiões litorâneas. Uma natureza mais acessível,
a presença de civilizações já estabelecidas e, principalmente, a tentação
irresistível do ouro e da prata, levaram os conquistadores à penetração
dos sertões e, em conseqüência dela, vastas extensões dos planaltos
andinos foram logo sujeitas à sua autoridade. Restava, no entanto, uma
enorme região praticamente virgem. Desde o norte da Argentina até as
costas do Caribe, a selva era um mundo hostil e misterioso, que
transformava em terra-de-ninguém as fronteiras entre ambos os impérios.
Apenas os rios ofereciam vias transitáveis através das quais, vez por
outra, autoridades espanholas chegavam a atingir a linha divisória.
Existem, nesse sentido, menções à presença, na foz do Amazonas, de
autoridades judiciárias vinculadas à Real Audiência de Quito.
A estrutura judiciária espanhola não diferia
muito da portuguesa. Os cargos de "corregidor" e "oidor" lembram-nos
figuras já conhecidas, embora o último seja mais facilmente comparável ao
de desembargador que ao de ouvidor. Os tribunais estavam baseados na
estrutura da Real Audiencia o Tribunal de la Corte del Rey, criado
por São Fernando, rei de Castela, e regulamentada por seu sucessor,
Alfonso X, chamado "el Sabio". Como a Casa da Suplicação, a Real Audiencia
era um canal institucionalizado de solicitação. Nela, o rei, juiz único e
supremo, ouvia as queixas dos seus súditos e administrava justiça. A
partir do ano 1387, a Real Audiencia ficou autorizada a reunir-se e julgar
sem a presença do rei, passando a constituir um tribunal com certa
autonomia de decisão.
A diversidade étnica e cultural,
característica da nação espanhola, exigia uma atenção equilibrada às
diversas regiões. A sede do tribunal foi várias vezes mudada e chegou-se a
tentar um cronograma anual rotativo, que revezava o despacho em períodos
de três meses entre as cidades de Olmedo, Madrid, Alcalá e Medina del
Campo. Em 1452, Juan II determinou que a Real Audiencia ficasse
definitivamente estabelecida em Valladolid. As outras regiões passaram a
ser atendidas por tribunais específicos, também com sedes permanentes. Ao
tempo da conquista da América existiam cortes judiciais em Barcelona,
Galícia, Granada, Valência, Sevilha e Palma de Mallorca.
A primeira Real Audiencia em
território americano foi instalada em 5 de outubro de 1511, na ilha de
Santo Domingo. Depois viriam México, Panamá e, já em território
sulamericano, Santa Fé, Quito, Lima, Charcas e Concepción. Esta última,
instalada no Chile, teve vida curta. Criada em 1567, foi extinta em 1573
por falta de recursos, e até mesmo, de pleitos para julgar. A terra era
ainda pobre e os conflitos, simples e escassos. As outras, sediadas
respectivamente na Colômbia, no Equador, Peru e Bolívia, estendiam a sua
jurisdição - sempre em teoria - até o limite determinado pela linha de
Tordesilhas. Em conseqüência, mais de dois terços da superfície atual do
Brasil obedeciam, ao menos potencialmente, à jurisdição dos tribunais
espanhóis.
A Efêmera França
Antártica
Embora fosse já uma potência digna de
consideração, a França ficou de fora da partilha do Novo Mundo.
Inconformada, optou por desconhecer a legitimidade da divisão, chegando a
inquirir por que sorte de "testamento de Adão" os soberanos
ibéricos se erigiam em herdeiros do mundo. Carentes de poderio militar
para enfrentar os impérios peninsulares, os franceses limitaram-se,
durante várias décadas, ao tráfico clandestino de pau brasil, oficialmente
atribuído a particulares mas, ocultamente, tolerado e estimulado pela
própria Coroa.
Essas atividades, que motivaram a instalação
do Governo Geral, viram-se ameaçadas pela centralização da administração
colonial portuguesa. Próxima de perder definitivamente a sua possibilidade
de intervir na exploração da América, a França resolveu tentar uma
aventura mais ousada, em 1556, invadindo o Rio de Janeiro. A conquista não
foi duradoura. Em 1560, o governador Mem de Sá conseguiu recuperar a
praça, expulsando Nicolas Durand de Villegaignon e fundando a cidade de
São Sebastião. Apesar disso, navios franceses continuaram a traficar, nos
pontos menos policiados da costa brasileira.
Nova tentativa de estabelecimento permanente
foi feita em 1612, quando Daniel de la Touche e François de Rasilly
invadiram a costa norte e fundaram a cidade de St. Louis, hoje, São
Luiz do Maranhão. A permanência foi, também, efêmera. Em 1615, forças
portuguesas, enviadas desde Pernambuco, expulsaram os invasores e deram
início à colonização definitiva da região.
Nenhuma dessas colônias durou
suficientemente para constituir estruturas complexas de governo civil ou
deixar rastos da sua organização juridica. Deixaram, sim, valiosas obras
descritivas, redigidas por André Thevet, Jean de Lery, Yves d’Évreux e
Claude d’Abbeville. Deste último, vale considerar, a título ilustrativo,
as "Leis fundamentais decretadas na Ilha do Maranhão", assinadas por
Daniel de la Touche e Francisco de Rasilly, em 1º de novembro de 1612 e
reproduzidas na História da missão dos padres capuchinos na ilha do
Maranhão e terras circunvizinhas.
Paternalismo e
Exploração
Estudando qualquer das estruturas
judiciárias até aqui apontadas, faz-se necessário distinguir decisões, e
até leis específicas, conforme a qualidade das partes. Já foi anotada, a
respeito da legislação portuguesa, a consideração dispensada às "pessoas
de mór qualidade", as que estavam isentas de certas formas de punição e
interrogatório, permitidas apenas para os plebéus. Existe, no entanto, um
caso mais particular ainda: É o das pessoas de outras raças e credos que,
em virtude das relações de poder e da ideologia da época, se encontravam
submetidas à tutela dos europeus. Os conceitos podiam variar e, em
correlação com eles, o tratamento dispensado. Redução, escravidão,
encomenda, missão, eram instituições claramente diferenciadas, na lei e na
prática. Tinham, entretanto, um fundo comum. Todas elas se baseavam na
crença - mais ou menos sincera, conforme o caso - da incapacidade de o
tutelado alcançar a plenitude de sua autonomia jurídica. Seja por
desconhecimento da fé cristã - considerada pelos europeus como a única
verdadeira e válida -, seja por falta de formação cívica - julgada, é
claro, sobre os parâmetros da civilização imposta -, seja por simples
incapacidade intelectual - é frequente a comparação de índios e negros com
crianças adultas, eternamente irresponsáveis -, as populações indígenas da
Ásia, da África e da América eram consideradas diferentes dos homens
normais, inimputáveis, incapazes de se governar por si e, por isso,
necessitadas de uma tutela paternal que, em última instância, justificava
até mesmo a sua escravidão.
Esta instituição não era nova. Desde o
começo da expansão portuguesa, o tráfico dos cativos foi um dos maiores
lucros oferecidos pela costa africana. Ao tempo do descobrimento da
América, Portugal dependia já, em medida considerável, do trabalho
escravo. Essa atividade se multiplicou quando, já estabelecido o Governo
Geral, o crescimento da produção e das necessidades de mão de obra entrou
em contradição com a defesa intransigente da liberdade dos índios por
parte dos jesuítas. Em 1584, com apenas trinta e cinco anos de criada, a
Bahia tinha já "três mil vizinhos portugueses, oito mil índios cristãos
e três ou quatro mil escravos da Guiné".
Resulta evidente que esta população extra
não poderia ser governada pelas mesmas leis que regulavam a vida dos
cidadãos livres. Fora as justificações intelectuais e morais, o escravo
era uma mercadoria e, como tal, estava sujeito ao direito de propriedade.
Seus direitos eram restritos e até sua imputabilidade jurídica era
limitada. Qualquer punição que o inabilitasse para o trabalho lesaria não
apenas ao escravo mas também ao seu dono. A ausência de punição, por outra
parte, estimularia a comissão de delitos e os próprios amos seriam os
primeiros a aproveitar a brecha, mandando seus escravos executar as ações
que eles mesmos estavam impedidos de realizar. A solução foi
responsabilizar os amos pelos feitos dos seus escravos, o que daria lugar
- se, por falta de provas, acreditarmos no que a tradição popular dá como
certo - ao caso mais pitoresco da história judiciária brasileira: A
condenação de uma imagem de Santo Antônio ao confisco de seus bens por
causa de um delito cometido por um escravo seu recebido em doação. Não há
documentação que comprove o traslado da imagem de Queimadas e a sua
presença no julgamento em Água Fria, termo de Cachoeira, mas o fato é que
o confisco existiu e o santo perdeu todas as suas posses.
Casos como esse, que, tendo sido lesados
direitos de terceiros, passavam à competência da justiça formal, eram
raros. Muito mais comum era que as faltas dos escravos prejudicassem,
apenas, aos seus amos, ou que, mesmo tendo prejudicado a terceiros, fosse
o próprio amo quem as castigasse, em virtude de entendimentos
extra-judiciais com as partes ofendidas. Essas ações não precisavam de
juiz. O escravo podia ser castigado pelo seu dono, sem mediar sentença de
ninguém, e estas punições, executadas a portas fechadas, dentro das casas
ou fazendas, fugiam a todo limite ou regulação estabelecidos pela Coroa.
Os limites existiam. Não era dado ao proprietário de um escravo dispor da
vida dele, mas, não raro, os castigos excessivos acabavam com a morte, e
nem sempre os donos eram responsabilizados. Esses excessos, no entanto,
estavam definidos como tais, sendo a ocasional impunidade produto da
ineficácia e má aplicação, e não da inexistência da lei.
Mas os castigos eram permitidos, desde que
não ocasionassem a morte, e este repertório de punições, autorizado pela
lei e legitimado pelo costume, constituía - apesar da sua intrínseca
injustiça - uma sorte de justiça informal e doméstica, que tinha sua
dinâmica própria e até suas regras tácitas que, suprindo ou complementando
as leis específicas, definiam os padrões que podiam ser socialmente
considerados normais no relacionamento entre amos e escravos.
O castigo mais freqüente era a flagelação
que, conforme o caso, era aplicada com requintes de crueldade. Às vezes,
"a pele, toda rasgada de golpes, era untada com vinagre e com sal"
e "segundo a gravidade da falta, este castigo, ou, melhor, esta
tortura, era repetida dois ou três dias consecutivos". Piedosamente, o
jesuíta Jorge Benci aconselhava: "Os açoites são medicina da culpa; e
se os merecerem os escravos em maior número do que de ordinário se lhes
devem dar, dêem-se-lhes por partes, isto é, trinta ou quarenta hoje,
outros tantos daqui a dois dias, daqui a outros dois dias outros tantos; e
assim dando-se-lhes por partes, e divididos, poderão receber todo aquele
número que, se os receberem por junto em um dia, chegariam a ponto ou de
desfalecer sangrados, ou de acabar a vida".
Outra forma de castigo era o tronco, onde os
escravos eram presos pelos tornozelos, punhos ou pescoço e mantidos
durante horas ou dias, às vezes em posições forçadas e dolorosas para
aumentar o sofrimento. Principalmente quando se tratava de faltas leves,
este castigo era aconselhado, em substituição ao chicote, porque "pune
e não maltrata" e ainda "é mais natural e não grava a consciência,
nem cria remorsos"157.
A Utopia
Missionária
Mais protegidos do que os negros - pelo
menos, na letra das leis -, os índios eram objeto de uma organização
bastante mais complexa. Já apontamos, num capítulo anterior, as
providências adotadas pela Coroa portuguesa entre 1609 e 1611. Do lado
espanhol, a matéria estava regulamentada nas chamadas Leyes
de Indias e nas Ordenanzas promulgadas
pelo vice-rei do Peru, dom Francisco de Toledo. Elas determinavam que os
índios fossem agrupados em aldeias, escolhendo dentre eles as autoridades
que os governassem. Assim, haveria "alcaldes, regidores, alguacil mayor
y menor, pregoneros, verdugo, alcaide y alcalde de campo, procurador,
fiscal, sacristán, cantor, maestro..." Reproduzia-se, assim, em
escala, a estrutura administrativa espanhola, tentando educar aos índios
para integrar-se a ela. Mas essas autoridades não eram, no fundo,
reconhecidas por seus governados e mesmo os espanhóis, que as instituíram,
se sentiam no direito de desrespeitá-las, tornando ainda mais difícil a
sua aceitação pelos índios. O cronista inca Guamán Poma de Ayala escreveu
que "si reñían entre dos alcaldes, los prendía el pregonero y los
azotaba en público rollo y hacía traer su asiento el pregonero y hacía
otras necedades y chapetoneces". Também os padres, chamados de
"doctrineros", abusavam dos índios, tomando suas propriedades,
possuindo suas mulheres e filhas e mostrando-se, publicamente, à cabeça de
uma corte de "mesticillos". Dentre a corrupção geral, Poma ressalva
duas ordens religiosas, os franciscanos e os jesuítas, aos que considera
"santos y cristianísimos", destacando que se "estos santos de
Dios anduviesen en los pueblos de los indios confesando a todos los pobres
indios, sin temor se allegarían y les buscarían y no se
huirían".
Jesuítas e franciscanas foram, efetivamente,
as grandes missões estabelecidas na América, seguidas depois pelas
salesianas, que hoje desenvolvem um trabalho digno de consideração. O
contato entre jesuítas e índios existia desde o começo da colonização. Em
1609, já conhecedores da língua e da cultura dos guaranis, iniciaram o seu
projeto mais ambiçoso com a fundação de San Ignacio Guazú, a primeira das
trinta missões estabelecidas no Guairá. O projeto consistia, em certa
forma, em levar a sério leis que já existiam mas poucos respeitavam. Fora
as atividades especificamente evangelizadoras, deram-se à tarefa de
capacitar os índios para o trabalho produtivo e o bom governo, conforme os
padrões europeus. A organização administrativa das comunidades não diferia
muito da estabelecida nas Ordenanzas. "En cada pueblo hay un
Corregidor indio, un Teniente, un Alférez Real, dos Alcaldes, mayor y
menor, 4 Regidores, 2 Alguaciles, mayor y menor, un Alcalde de la
Hermandad y un Procurador, todos indios".
Mais do que verdadeiras autoridades, estes
funcionários eram atores de uma sorte de role playing encenado com
fins didáticos, estando todos eles subordinados aos padres da missão.
Todos os detalhes eram minuciosamente reproduzidos, tendo todos eles
"sus insignias: el Corregidor, bastón con su puño de plata, y los
demás, varas, y las que les corresponden, como en las poblaciones de
españoles". Na sua eleição "les hace el Cura una plática en que les
explica las obligaciones de sus oficios; les pondera la cuenta que han de
dar a Dios de ellos, cómo su principal cuidado debe ser celar sobre que
todos guarden la lei de Dios, y después las leyes y órdenes del Rey, etc.
Acabada la plática, saca el papel, nombra el nuevo Corregidor. Tocan los
músicos, clarineros y cajeros sus chirimías, clarines y flautas y cajas; y
con gran sumisión viene el nuevo Corregidor, toma el bastón de manos del
Cura; bésale la mano con gran reverencia, y se sienta en el primer lugar
de los bancos del Cabildo que estaban vacíos y prevenidos. Nombra al
Alférez Real. Tocan y toma sus insignias con la misma reverencia y
ceremonia. Luego los Alcaldes y todos los demás, que con las mismas
ceremonias y música toman sus varas, que son bien gordas: y como es
menester dejar que toquen, etc., a cada uno, es función larga. Electos ya
los Cabildantes, se envía la elección al Gobernador para que la confirme;
y como los Gobernadores saben el orden y prudencia con que se hacen estas
cosas, nunca mudan cosa alguna".
Tanto o respeito à autoridade como a
disciplina no trabalho - tudo nos moldes europeus - eram coisas difíceis
de ensinar às libérrimas populações da floresta. As anotações dos
missioneiros definem aos seu tutelados como carentes de entendimento e
raciocício, preguiçosos, lúdicos e inconstantes, precisados de constante
tutela e, às vezes, de punição rigorosa. Castigava-se a bebedeira e outras
infrações semelhantes com a privação de "todo oficio en cabildo"
acrescida de "cadeia, cepo, correntes e açoites, na medida da desordem
em que houvesse incorrido". Porém, "no es el Padre, sino el primer
indio que venga, quien toma el látigo -aquí no tenemos azotes de abedul o
semejantes- y no castiga al delincuente de otro modo que como un padre
suele azotar a su hijo o un maestro a su aprendiz en Europa. De esta
manera son azotados grandes y pequeños y también las
mujeres".
Estranho castigo era este. Se acreditarmos
na versão do padre Parras, os punidos até gostavam. "No hay indio a
quien si el cura manda castigar con azotes, que es la pena ordinaria,
pregunte por qué, o por qué no, ni replique una palabra, ni jamás el padre
defiende al hijo, ni a la mujer, ni al amigo; y han concebido con tanta
tenacidad esto de que el castigo es una señal de amor, que sucede cada
instante llegar un indio al cura con grandes quejas porque no le mandaba
castigar, y que era señal que no le quería". Mas outro jesuíta, o
padre Antonio Sepp, põe em evidência a ritualidade desta conduta,
evidentemente predeterminada. "A lo sumo invocan los santísimos nombres
de Jesús, María, reciben el azote con la mayor paciencia y hasta
agradecimiento. Una vez que fueron castigados se dirigen de inmediato
hacia el Padre, le besan la mano sacerdotal y agradecen con las siguientes
palabras: `Cherubá, Padre mío, aguyebete, aguyebete, yebi,
yebi, diez mil gracias y todavía más te sean dadas, que por
medio de tu castigo paternal hayas abierto mi entendimiento y hayas hecho
de mí un hombre, lo que antes no he sido’". Do lado
contrário, Miguel de Lastarria afirmava que os padres "procuraron hacer
de los indios cuanto se les antojó entreteniéndoles la imaginación,
mientras aletargaban su razón. Los embelesaban como a niños: les ponían
cadenas invisibles, y les sofocaban las luces del entendimiento y los
sentimientos de su corazón. En una palabra, se propusieron criar
estúpidos, mansos y útiles; no hombres civiles y virtuosos, ni menos
religiosos".
Nem tanto, nem tão pouco. Entre os exageros,
de um e outro lado, é preciso procurar um certo equilíbrio. Os jesuítas
não enriqueceram, como seus inimigos propalavam. O ouro de suas igrejas,
único luxo demonstrado por eles, era para Deus, e não para os padres que,
à diferença de outras congregações, continuavam levando uma vida austera.
Ninguém até agora encontrou a mítica Mbororé, a cidade de ouro, sem
portas nem janelas, onde, expulsos das suas missões, teriam escondido a
sua fortuna. Sóbrios e determinados, os padres da Companhia de Jesus
defenderam a sua utopia por mais de dois séculos, construindo, no meio da
selva, una sociedade mais organizada do que os próprios modelos em que se
baseava, enfrentando bandeirantes, políticos e até eclesiásticos, que, não
raro, entravam em conflito com eles. Os seus ensinamentos, no entanto, não
duraram muito além da sua presença física nas missões. Interrompida a sua
tutela, os povos se dispersaram, e quem conseguiu fugir à cobiça dos
espanhóis e dos portugueses preferiu voltar à vida selvagem.
A Justiça mais Antiga da
América
Fora os aldeamentos, missões e outras formas
do controle europeu, os índios continuavam ocupando vastas regiões do
continente americano. É verdade que grande parte deles vivia em condições
muito primitivas mas, à época do descobrimento, existia, na América do
Sul, pelo menos um grande estado juridicamente organizado. O
Tahuantisuyu, conjunto de regiões sujeitas ao domínio dos incas,
possuía uma estrutura político-religiosa rigidamente estabelecida e
controlada. Mancio Sierra de Leguisamo, que na conquista de Cuzco jogara
aos dados o disco de ouro do templo do sol, deixou, ao morrer, "por el
descargo de mi conciencia y por hallarme culpado en ello", a sua
visão, entre admirada e arrependida, da ordem que reinara no império
destruído. Em todo o Perú, declara ele, "no había un ladrón, ni hombre
vicioso, ni holgazán, ni había mujer adúltera ni mala, ni se permitía
entre ellos, [...] tanto que el que tenía cien mil pesos de oro y
plata en su casa [..] la dejaba abierta, puesta una escoba o un
palo pequeño atravesado en la puerta para seña que no estaba allí su dueño
y con esto, según su costumbre, no podía entrar nadie dentro, ni tomar
cosa de lo que allí había, [...] y así cuando vieronque había entre
nosotros ladrones y hombres que incitaban a pecar a sus mujeres e hijas,
nos tuvieron en poco".
Uma ordem tão perfeita entre etnias
diversas, espalhadas desde o Chile até a Colômbia, só podia ser garantida
por uma disciplina rigorosa. A administração do império estava organizada
a partir das famílias, agrupando-se os pais de dez em dez sob o controle
de um deles que, por sua vez, integrava um grupo maior, e assim por
diante. Isso gerava uma relação escalonada, onde cada administrador ou
curaca era responsável pelos atos próprios e pelos de seus
subordinados. Estes curacas oficiavam também como juízes, mas estavam
impedidos de arbitrar - ou julgar, no sentido mais profundo, - porque as
leis, sendo determinadas pelo Inca, que era considerado divino e
infalível, não podiam ser interpretadas nem adaptadas. A sua atividade
limitava-se a constatar a culpabilidade ou a inocência, aplicando-se, em
conseqüência, as sanções previstas na lei. Caso a lei não contemplasse uma
certa situação, aplicava-se o direito consuetudinário, sendo o único caso
em que o curaca gozava de uma certa autonomia nos julgamentos. Não
existindo, em geral, o livre arbítrio nas decisões, também não existia
apelação. Um erro ou omissão por parte do julgador constituiria,
simplesmente, uma falta que seria nele punida por seu superior, existindo
um controle mensal que percorria, em sentido descendente, toda a pirâmide
administrativa.
Não existia propriedade privada. As
comunidades distribuíam a terra e os meios de produção entre seus membros,
os que poderiam usá-los enquanto integrassem a população economicamente
ativa, mas sem adquirir sobre eles direitos permanentes ou transferíveis.
Assim, dificilmente os casos cíveis chegariam a gerar grandes pleitos.
Casos especialmente difíceis, tais como as disputas territoriais entre
comunidades, eram investigados por enviados especiais do Inca, os que, não
encontrando uma solução, podiam submetê-los a um tribunal de 12 juízes que
ficava na capital. Por cima deles, o próprio Inca julgava os nobres, as
principais autoridades, e cuidava, pessoalmente, dos crimes de particular
gravidade.
A justiça penal era especialmente rigorosa.
Sendo o Inca um ser divino, qualquer infração às suas leis constituía
implícitamente um sacrilégio. Punia-se delitos sexuais, como o adultério,
o estupro e a sodomia, delitos contra a comunidade, como a preguiça e o
furto, e, principalmente, delitos contra o império ou contra a pessoa do
Inca, entre os que se contavam a traição, a destruição de pontes e
estradas e a sedução de uma aclla ou "virgem del sol". As
penas iam da tortura até à morte, às vezes com extrema crueldade, como a
de pendurar os condenados em árvores, amarrados pelos cabelos ou pelos
orgãos sexuais. Nos crimes graves, as condenações alcançavam também às
famílias dos culpados. Os suspeitos podiam ser torturados e, às vezes,
eram trancados em grutas cheias de animais selvagens, sendo inocentados se
sobrevivessem a um certo período de prova. As punições variavam conforme à
condição social dos delinqüentes, não por respeito a privilégios, como na
justiça europeia, mas por se considerar que os homens respondem
diversamente aos mesmos castigos. Penalidades tais como o corte de cabelos
ou a repreensão pública seriam absolutamente inócuas para os delinqüentes
comuns mas teriam um poderoso efeito disuassório entre os
nobres.
Resulta difícil determinar se essa justiça
chegou a ter alguma influência no Brasil pre-colombiano. A presença dos
incas no Antisuyu, a região nordeste do império, era ainda
incipiente quando os espanhóis interromperam a sua expansão. Apenas quatro
cidades - Calca, Ollantaytambo, Macchu Picchu e Vitcos - criavam a partir
do Cuzco, uma espécie de seta projetada na direção do Amazonas. As duas
primeiras já existiam em tempos pre-hispânicos mas Macchu Picchu e Vitcos
fazem parte, até hoje, da legendária categoria das "cidades perdidas", de
origens imprecisas e controversas. É provável que, mais do que avançadas
ou entrepostos de uma aparente expansão amazônica, fossem os últimos
refúgios, úteis, por inacessíveis, que os incas escolheram para manter,
fora da visão e da cobiça dos conquistadores, as últimas células
independentes do antigo império. As relações de domínio, tributação ou
comércio com as populações selváticas permanecem. até agora, num terreno
tão mítico quanto o das próprias amazonas que deram nome à
região.
Mais concretamente relacionado ao Brasil é o
estudo das populações tribais espalhadas nas áreas baixas e,
principalmente, nas florestas da América do Sul. Menos civilizadas e mais
pobres que os incas, não motivaram descrições tão detalhadas da sua
organização política e judiciária. As descrições dos primeiros cronistas
concentram-se no seu primitivismo, sua licenciosidade sexual e,
principalmente, nos rituais antropofágicos que tanto escandalizaram a
portugueses e espanhóis. Nenhuma destas populações chegou a ter um corpo
organizado de leis e práticas jurídicas. Claude D’Abbeville chega a
afirmar que "jamais tiveram lei, nem policiamento fora da lei
natural". Todavia, não existe sociedade tão primitiva que não tenha um
mínimo de regras e mecanismos de controle da sua vida comunitária. O
estudo dessas regras poderia esclarecer não apenas como eles se
organizavam antes da conquista, mas também como interpretaram as leis e
procedimentos dos conquistadores e, conseqüentemente, como influenciaram a
miscigenação cultural geradora da nacionalidade brasileira. Não cabe nos
limites deste trabalho um estudo aprofundado desta matéria, mas fique
consignado o registro de sua necessidade, que obras mais específicas
deverão contemplar algum dia.
Diferentemente do observado nas organizações
jurídicas de Portugal, Espanha, ou até mesmo do império incáico, os atos
de governo dos grupos indígenas brasileiros - e, em conseqüência, também a
sua justiça - não são verticalmente impostos, com magnificência
exemplarizadora, mas exercitados por consenso, como um mecanismo de defesa
da comunidade. Normalmente, duas autoridades distintas polarizam as
decisões. A primeira, misturando funções religiosas, medicinais, e
asumindo, não raro, atribuições políticas e judiciárias, é exercida
pelo xamã, que, dependendo das diversas línguas e culturas, pode
receber nomes diferentes, mas conserva um mínimo de características
distintivas que definem o seu rol na tribo. É um personagem misterioso,
representante do conhecimento tradicional, ciosamente conservado como um
instrumento de poder. Intermediário entre o homem e as forças do além,
mistura funções de feiticeiro, médico, líder político e juiz. Às vezes,
assume características messiânicas, quiando às comunidades em longas
peregrinações em direção à "terra sem mal". A sua autoridade é
inversamente proporcional à sua integração na comunidade. Deliberadamente
diferenciado, costuma impor-se pelo respeito e o temor e se expõe a
vinganças terríveis caso venha a perder o prestígio em que se ampara. O
outro, encomendado das coisas terrenas, é uma autoridade essencialmente
democrática, escolhida e conservada, consensualmente, pela comunidade.
Governa pela experiência e pela persuasão e dificilmente impõe uma idéia.
Antes, aconselha paternalmente, sendo para isto orientado pelos membros
mais velhos da comunidade, habitualmente organizada por categorias de
idade. Em suas alocuções, é mais advogado do que juiz, sempre deixando aos
outros a explicitação das decisões. Assim como o xamã foi
substituído pelo missionário, este chefe civil - mal chamado
cacique, por transposição de uma palavra originária da América Central
- foi, em muitos casos, substituído por fucionários impostos externamente,
a exemplo dos "capitães das aldeias", os que, além de violentarem a
autonomia dos índios, distorciam os seus padrões de relacionamento pela
sobreposição de um governo verticalista, de estilo europeu.
Resulta difícil descrever e, principalmente,
generalizar as leis indígenas. Embora apresentem, estudados em conjunto,
certas características em comum, os índios brasileiros constituem uma
multiplicidade de grupos dispersos e, em muitos casos, inimigos
irreconciliáveis. Sem uma língua em comum, sem instituições que
canalizassem o mútuo entendimento, cada grupo evoluiu isoladamente, sendo
bastante reduzidas a interação e a influência de uma tribo sobre outra.
Uma característica comum, observada desde os
primeiros tempos da conquista, é o caráter vingativo dos índios
brasileiros. Apesar da sua boa disposição ao relacionamento, não perdoavam
uma ofensa e alimentavam guerras intermináveis baseadas no mútuo rancor.
"Por menos ultrajado que seja, - escreveu Thevet - jamais se
conseguirá reconciliar o ofendido com o ofensor. Essa obstinação adquirem
e conservam os índios, de pais a filhos. [...] E daí a razão porque
tanto escarnecem e censuram acremente aos franceses quando estes resgatam
com dinheiro, ou por outros meios, os seus inimigos. Reputam este costume
indigno de guerreiros". Claude d’Abbeville acrescenta que "Não
fazem a guerra para conservar ou estender os limites de seu país, nem para
enriquecer-se com os despojos de seus inimigos, mas unicamente pela honra
e pela vingança". Revela-se, nesta atitude, a lei do talião, levada
pelos índios às suas últimas conseqüências. Di-lo Thevet, ao afirmar que
"se alquém bate em outro ou fere, deve o ofensor receber, sem demora,
golpe por golpe". D’Abbeville confirma, dizendo que "uma bofetada é
paga com outra; se alguém quebra um braço ou qualquer outro membro de um
companheiro, terá também a mesma pena". Cadogan, que, já no século XX,
estudou os costumes dos guaranis do Paraguai, acrescenta que, na
execução das sentenças de morte, deve-se "inferir al reo las mismas
heridas recibidas por la víctima".
Mas não é a vingança, no sentido individual,
o que domina tais execuções. É a comunidade que deve ser protegida. Mesmo
quando, por direito da parte ofendida, são a vítima ou seus parentes os
encarregados de executar a sentença, é a comunidade quem julga, sentencia
e entrega o condenado a seus executores. Existe, entretanto, uma nítida
divisão entre os conflitos sociais e os que pertencem à esfera privada. O
adultério, dependendo dos costumes de cada região, pode dar ao marido
direito de repudiar, espancar ou até matar à mulher, mas não constitui
problema da comunidade. D’Abeville é claro a este respeito ao dizer que:
"A mulher achada em adultério deve morrer, a menos de ser vendida como
escrava; mas não praticam a justiça com formalidades e autoridade pública,
porém tão somente de fato e na própria intimidade". O estupro, pelo
contrário, é uma violência que pode ser repetida contra outras vítimas,
constituindo, por essa causa, um problema da sociedade. Assim o expressa
Cadogan: "Aquel que se haya apoderado violentamente de una niña al lado
del camino recibirá numerosos azotes. En caso contrário, compensará a la
víctima. Si su víctima muriera, es indispensable que el agresor
muera". O roubo é, também, um problema social, mas o castigo pode, às
vezes, ser evitado, devolvendo o valor roubado ou indenizando à vítima
pelo dano causado. Esta compensação pode, também, ser exigida pela vítima,
sendo o ladrão coagido pela comunidade a efetivizar a
reparação.
Estas leis, não escritas, ficam retidas na
memória coletiva através de estórias ou mitos que, baseados na narração de
casos tidos como reais, exemplificam as condutas aprovadas ou censuradas
pela comunidade e o prêmio ou punição que merecem. Conservados na memória,
são transmitidos de geração em geração. Também nos mitos encontramos
advertências de punição sobrenatural para certos crimes. Esta punição não
acontece no além, como na concepção cristã, mas na realidade presente,
através de entidades míticas como o Curupira ou Caapora.
Divindades protetoras da fauna e da flora, permitem a caça, enquanto
atividade de subsistência, mas punem rigorosamente a quem fere os animais
por prazer ou mata fêmeas grávidas. "O Curupira transmuta-se em caça,
que o homem persegue inutilmente até desgarrar-se, desorientado, do
verdadeiro caminho. Outras vezes, a Embiara deixa-se apanhar, mas o
frecheiro, aterrorizado, verifica que não alvejou nenhum animal senão seu
próprio filho, ou mulher, ou companheiro". Completa este exemplo uma
visão da justiça que parece estar dividida em três áreas: Problemas entre
as pessoas, sem interesse para a comunidade, delitos que atingem a vida da
comunidade, devendo ser julgados e punidos por ela, e ofensas ao meio
ambiente - essencial na vida do índio - que, hipoteticamente, a própria
natureza se encarrega de policiar.
A Herança Africana
Resta, por último, especular sobre as formas
de justiça usadas pelas comunidades negras do Brasil colonial. Mais de
quatro milhões de africanos foram transportados para o Brasil até 1889. E
eles não foram, como os índios, expulsos para o interior ou reclusos em
missões e reduções. Eles foram incorporados - mesmo a contragosto - à
economia local, à vida social e até à estrutura familiar da colônia. Não
apenas a formação étnica mas também a própria identidade cultural do
brasileiro de hoje estão profundamente impregnadas de elementos
africanos.
Mas não resulta fácil resgatar essa herança.
Desprezados, reduzidos à categoria de simples mercadorias, eles não
motivaram estudos de seus captores nem, muito menos, tiveram a
oportunidade de escrever a sua própria história. Antes de exercer a
justiça, eles a sofreram. Antes de sujeito foram objeto, antes de juízes,
acusados, antes de algozes, vítimas.
Mas, como já foi dito, não há sociedade que
não tenha um mínimo de normas reguladoras e mecanismos internos que
garantam o seu cumprimento. Agora... Constituíam os negros um grupo social
ou eram apenas um apêndice da sociedade branca escravagista, sem nada que
lhes fosse próprio? Não há dúvida que, do ponto de vista dos brancos,
nenhuma organização jurídica própria podia ser permitida aos negros. Nào
se esqueça, entretanto, que, mesmo vivendo em regime de escravidão, eles
constituíam grandes grupos, potencialmente iguais entre si e diferentes
dos seus amos. Um engenho de porte médio concentrava entre 150 e 200
escravos e as senzalas eram um território semi-privado onde, malgrado os
senhores e seus prepostos, eles regulavam a sua interrelação pelas suas
próprias leis. Citam-se casos de reis ou caudilhos africanos que
conseguiram reconstituir verdadeiras cortes no exilio das
senzalas.
A integração entre os negros e seus
descendentes podia adotar diversas formas, sendo a religião uma das
principais. Aos cultos africanos - tolerados ou clandestinos -, somaram-se
as irmandades e confrarias, constituídas sobre moldes católicos e
aproveitadas para revestir os agrupamentos de um certo reconhecimento
social e jurídico. Também os grêmios artesanais eram formas de associação
que, conforme os ofícios, podiam ter uma composição predominante de negros
e mulatos. Mais recentemente, entidades de tipo filantrópico como a
Sociedade Protetora dos Desvalidos assumiram explicitamente a missão de
lutar contra a escravidão e facilitar aos seus associados os meios para
sua alforria.
Não eram poucos os negros alforriados,
especialmente, nos séculos XVIII e XIX. Seja como prêmio ou dádiva de seus
senhores, seja comprando sua liberdade com dinheiro obtido em atividades
"de ganho" ou emprestados por associações, amigos ou familiares, seja por
terem já nascido de pais forros, muitos negros obtiveram o direito de ir e
vir e, em conseqüência dele, de agrupar-se em bairros ou povoações
relativamente independentes. Não havia, certamente, uma vontade deliberada
de isolamento racial. O agrupamento seletivo derivava da coincidência com
que as populações pobres são empurradas em direção às terras menos
valorizadas. O fato é que, em geral, as famílias mais miseráveis eram,
quase sempre, negras e mulatas, o que conduzia ao virtual isolamento
étnico que ainda hoje caracteriza certos bairros brasileiros.
Não interessa, para os efeitos deste estudo,
aprofundar nestas formas de associação, próprias de um Brasil mais
recente. Existiam, entretanto, no período mencionado, diversos
agrupamentos de negros que são de nosso interesse. Fora a forçada
convivência nas senzalas, as guerras levaram a formar bandos ou batalhões
de negros, armados em auxílio de holandeses ou portugueses, que, em
conseqüência disso, desfrutavam de uma liberdade de ação e organização
muito superior à que lhes seria permitida em condições normais. Por outra
parte, os conflitos armados facilitavam a fuga. O escravo que conseguisse
chegar até o bando contrário podia, sem muita dificuldade, virar
soldado.
Esses agrupamentos não representam,
necessariamente, uma garantia de sobrevivência das suas normas culturais.
Antes, pelo contrário, para gozar dessa meia-liberdade, eles deviam
aderir, pelo menos exteriormente, às regras dos seus superiores, ora
portugueses, ora holandeses, mas sempre brancos. Mais livre era a situação
dos negros alçados que, fugindo para o mato, agrupavam-se em
quilombos, à revelia da população branca. A sua independência
inspirou, na literatura e no cinema, românticas evocações de reinos
africanos, reconstruídos na América com todas as características próprias
da raça.
Não é isso o que evidenciam os documentos da
época. Falando de Palmares, Barlaeus diz que seus habitantes "imitam a
religião dos portugueses, assim como o seu modo de governar". Blaer,
que esteve na capital, relatou que "as casas eram em número de 220 e no
meio delas erguia-se uma igreja, quatro forjas e uma grande casa de
conselho", acrescentando que "havia entre os habitantes toda sorte
de artífices e o seu rei os governava com severa justiça, não permitindo
feiticeiros entre sua gente".
Palmares consistia num conjunto de
mocambos ou povoados relativamente independentes, dentre os quais se
destacava o chamado "do Macaco" ou "Cerca Real", onde morava
o Ganga Zumba, chamado pelos portugueses de rei. O seu cargo
não era hereditário e nem sequer vitalício. Ele foi entronizado com
grandes poderes mas foi prontamente destituído logo que perdeu a confiança
dos seus governados. O seu reino era uma curiosa mistura de influências
africanas e portuguesas. Cada mocambo tinha seu líder, eleito
popularmente. Em caso de guerra ou questão de similar gravidade, esses
líderes se reuniam em conselho, na Cerca Real, sob a presidência do Ganga
Zumba. O nome de quilombo era dado não a uma mas ao conjunto das aldeias,
unidas numa sorte de juramento de defesa mútua. É possível que justamente
essa fosse a origem da denominação, pois fontes contemporâneas indicam que
o juramento ou ordália pelo fogo era chamado de
quilumbo.
A falta de documentos escritos pelos negros
nos obriga a seguir as descrições, duvidosamente fiéis, de holandeses e
portugueses. Por elas sabemos que o Ganga Zumba tinha "ministros de
justiça, assim como de querra, para as execuções necessárias" e
funcionários subalternos, descritos como "fâmulos". Nas ocasiões de
particular gravidade, reunia-se o conselho, composto pelos chefes
político-administrativos ("maiorais") e pelos chefes militares
("cabos de guerra") dos mocambos. Oliveira Martins, escritor
português versado em assuntos jurídicos, afirma a existência de leis
"escritas" por um legislador palmarino sem citar a fonte da sua
afirmação. Outros autores falam na existência de punição capital para os
casos de adultério, homicídio e deserção, mas não conhecemos documentos
que atestem a sua aplicação. Antes, sabe-se que existia em Palmares o
matrimônio poliândrico, isto é, o compartilhamento da mulher por vários
homens, recurso adotado para compensar o desequilíbrio sexual da
população.
A escravidão, causa principal da existência
de Palmares, não era rejeitada em essência. Escravos fugidos que se
incorporassem ao bando eram aceitos como homens livres - prévio julgamento
"por conselho de justiça" para determinar se eram espiões dos
brancos - mas os apanhados nas incursões sobre engenhos e fazendas
continuavam sendo escravos e eram considerados como parte dos lucros
derivados da ação guerreira. No entanto, qualquer desses escravos podia
ganhar a sua liberdade, capturando outro para ficar em seu lugar, o que
põe em descoberto uma forma de direito essencialmente reparatório,
característico das populações africanas. Também de origem africana devia
ser o sistema de parentesco simbólico que regulava as relações
comunitárias. Os ministros eram chamados de "filhos" do Ganga Zumba; os
chefes militares de "irmãos", os chefes dos mocambos de "sobrinhos", os
funcionários e oficiais subalternos de "netos" e as mulheres idosas de
"mães".
A reduzida influência dos costumes africanos
na vida do quilombo pode ser atribuída ao fato de que muitos dos
palmarinos fossem já nascidos no Brasil, mas a razão principal é que os
escravos não possuíam uma unidade cultural. Arrastados de seus lares, sem
ordem nem consideração, eram separados de seus conacionais e até das suas
próprias famílias e misturados, conforme as necessidades dos traficantes e
seus clientes. O resultado era uma babel de línguas e culturas que, apesar
do cativeiro comum, tornava muito difícil o agrupamento em torno de um
corpo de crenças e procedimentos socialmente aceitos. Francisco de Brito
Freire, governador de Pernambuco, informava que "falam uma língua toda
sua, às vezes parecendo da Guiné ou da Angola, outras parecendo português
e tupi, mas não é nenhuma dessas e sim outra nova".
Até a religião, tida habitualmente como laço
de união entre os africanos e seus descendentes e como baluarte da sua
identidade cultural, era mais um estímulo à divisão. Cada grupo de
procedência ou nação tinha a sua própria religião e, embora já
existisse na África um princípio do jogo de correspondências que daria
lugar ao fenômeno hoje chamado de sincretismo, as diferenças eram
demasiadamente grandes para permitirem a coincidência num culto comum. Os
próprios portugueses eram conscientes dessas diferenças e delas se
aproveitavam. O Conde dos Arcos, já no século XIX, aconselhava,
explícitamente, a tolerância das religiões africanas, observando que o dia
em que uma religião unificasse aos negros, o domínio dos brancos estaria
perdido. A julgar pelas testemunhas, a união de Palmares, foi processada
sobre a adesão ao catolicismo. Mesmo aceitando que esse catolicismo fosse
bem diferente do que os portugueses praticavam, é inegável que
representava uma opção oposta aos cultos tradicionais, reforçada essa
constatação pela perseguição aos feiticeiros. Em que medida essa atitude
foi uma aceitação dos valores da cultura dominante ou uma astuta decisão
política do Ganga Zumba, para reunir o seu povo em volta de um credo novo,
é um assunto difícil de esclarecer.
Que influências gravitavam nos conceitos
jurídicos dos negros brasileiros? Mesmo remontando-nos às origens
africanas, a resposta não é simples. Não poucos seguiam a tradição
islâmica do norte do continente. Tanto ou mais intolerantes do que os
católicos, rejeitavam toda crença diferente das suas, o que dificultaria a
sua integração com os demais grupos de procedência. A sua própria
intolerância os manteria isolados e a sua condição, minoritária no Brasil,
os impediria de deixar a marca das suas idéias às gerações
posteriores.
Mais visível do que a muçulmana é a
influência das comunidades tribais do centro e sul da África. Menos
civilizadas - entendendo esta palavra no seu mais exato sentido,
etimologicamente ligado ao grau de complexidade da vida urbana -, não
chegaram a desenvolver uma grande religião ou uma língua geral. O seu
pensamento jurídico, como o dos índios brasileiros, deve ser buscado no
direito consuetudinário e varia consideravelmente de uma comunidade a
outra.
Em linhas gerais, a justiça dos povos
africanos parece estar baseada num princípio retributivo, próprio, também,
da lei do talião, mas, diferentemente dos índios, que foram
descritos como profundamente vingativos e ciosos da punição dos culpados,
o negro parece pouco preocupado com o conceito de culpa. A sua justiça,
mais atenta a considerações externas, baseia-se na reparação do dano
causado. Resultam interessantes, neste ponto, as observações do jurista
espanhol Francisco Elías de Tejada que, em fins do século XIX, teve
oportunidade de estudar o pensamento de diversas comunidades africanas,
ainda em fase tribal. Ele cita o exemplo de um menino de Nairóbi que,
brincando com seus colegas, foi atingido por uma pedra jogada por um
deles, o que lhe ocasionou a perda de vários dentes. Considerando-se que o
acidente "lhe prejudicava o físico, para quando chegasse a oportunidade
de encontrar mulher, reunidos os representandes dos dois setores tribais,
não se preocuparam em apurar a bondade ou maldade das intenções do autor
do dano, senão em avaliar a quantia do prejuízo, isto é, a possível
dificuldade em achar esposa senão mediasse forte pagamento na compra dela;
cinqüenta camelos foram achados suficientes para o remédio da
justiça".
Outra amostra dessa lei das compensações
podia ser apreciada do outro lado da África, em Moçambique. "Caso a
mulher considere que o filho que vai ter é seu, a sogra vai comunicar ao
pai. Caso contrário, a mensageira é a cunhada, a qual, sem fazer
referência ao parto, limita-se a se aproximar do marido da sua irmã,
brindando-se-lhe a todos os efeitos para que, ao
gozá-la, esqueça a afronta recebida".
É preciso distinguir que a reciprocidade se
processava, principalmente, entre homens, sendo a mulher olhada com um
critério utilitário, bastante generalizado. "A mulher é uma cabaça, da
qual podes beber mas não levá-la", costumava-se dizer no Congo.
Diversas comunidades africanas consideravam de bom tom oferecer ao
visitante os favores da esposa ou a filha do anfitrião. "Mas esse dever
leva implícito o de reciprocidade, em caso semelhante; se o lomú que
aproveitou a oportunidade primeira não praticar o dever moral da
hospitalidade com cesão de esposa, poderá ser morto impunemente por
qualquer um". Entre os Shillak do alto Nilo, antes de dar à luz o
primeiro filho, a mulher devia confessar com quantos homens tinha se
relacionado durante o período da fecundação. Sendo menos de dez, cada um
dos possíveis pais devia entregar ao marido uma vaca, como ajuda de custo
para a criação do filho. Sendo mais, é o pai da moça quem devia indenizar
ao marido "por ter dado a sua filha mais liberdade do que devia".
Essas regras de reciprocidade estavam
fortemente enraizadas na tradição. "Para o banto
- escrevia Tejada - o mal é assunto social, inscrito em regras e em
usos comunais diante dos quais a opinião do indivíduo ou de Deus nada
contam. É bom o que traçaram os ancestrais, é mau o que eles proibiram,
posto que eles marcaram o rumo da vida. Às normas vitais há que
sujeitar-se simplesmente, sem que o indivíduo ouse opor o seu espírito
individual, o seu eu pensante, à linha fixada por eles na condição de
trilha segura da energia vital".
Mas essa tradição não era um conjunto rígido
de normas predeterminadas e inamovíveis. "Para o banto - continuava
Tejada, talvez envolvendo, numa generalizaçao exagerada, diversas etnias
numa mesma denominação - a justiça é a expressão das coordenadas vitais
do cosmos. É um equilíbrio entre forças indissoluvelmente encadeadas.
[...] A responsabilidade e o eu tem muita menor importância que o
impacto que os fatos possam exercer sobre a complicada mecânica das forças
em tensão. [...] Uma contenda jurídica é, antes que assunto
judicial, um problema de restabelecimento da harmonia do universo e de
reajuste da ordem das essências vitais, [...] harmonia que depende
dos mortos tanto como dos vivos, porque os mortos serão também partes em
julgar, e partes relevantes. [...] O direito é tal, para os bantos,
simplesmente porque representa a vontade dos que se foram, porque supõe
verificar o que os maiores já falecidos teriam feito em semelhante
circunstância. [...] Isso explica que as contendas negras não
tenham mais do que duas soluções: a violência armada, que entrega a
decisão ao brio que os mortos impulsionam [...] ou o acordo, para
que eles decidam sem necessidade de violências, deixando ouvir sua voz
através do mistério de uma ordália ou mediante seus agentes, os
feiticeiros".
Já por volta de 1600, frei João dos Santos
descreveu a lucasse, ou ordália do veneno e a xoqua, ou
ordália do fogo. Cadornega, por sua parte, representou uma prova
consistente em introduzir a mão num caldeirão de água fervente com a
sugestiva legenda: "Juramento do fogo, à que chamão
Quilumbo". O mesmo Tejada cita, entre as ordálias mais
comuns, "aquelas consistentes em juramentos sobre objeto de determinado
poder mágico", destacando entre eles "o
Kithitu, usado pelos uakamba nos
seus processos. É um objeto sagrado, de qualidades diversas, geralmente
uma presa de elefante onde foram encravados objetos muito variados.
Propriedade de uma família determinada, o dono cobra uma taxa cada vez que
o cede para a prova decisiva num juramento judicial. [...] O
Kithitu possui poderes tais que quem jurasse em falso sobre ele veria a
sua família abalada por enormes desgraças e, finalmente, haveria de morrer
de forma violenta".
Complementando, conduzindo ou, simplesmente,
substituindo a ordália, o feiticeiro era o juiz. "O rabo de leão ou a
varinha de espinhos sobre a testa dos desgraçados suspeitos é infalível
condena a morte, bastando a palavra do feiticeiro, sem precisar de mais
indagações, e mesmo que os fatos proclamem a inocéncia do que ele definiu
como culpado. É que, mais uma vez, o negro não se interessa pela verdade
senão por restabelecer a harmonia mística da vida. O indivíduo não conta,
pois, mesmo sendo inocente, pode ser condenado se cair nas suas costas a
ira de uma divindade"180.
Não pretendemos, com estas poucas linhas,
esgotar um tema tão amplo. Apenas tentamos despertar, na medida do
possível, o interesse para assuntos pouco considerados, que apresentam uma
grande importância para a compreensão da mentalidade coletiva do povo
brasileiro. Não apenas sangues se misturaram. Índios, negros, portugueses,
espanhóis e, mais recentemente, imigrantes dos diversos países,
enfrentaram suas concepções, muitas vezes encontradas, do que fosse
direito ou justiça. Se umas venceram às outras, nem por isso as vencidas
desapareceram totalmente. Por baixo da cultura dominante, e apesar das
leis e dos tratados, a ciência do bem e do mal é patrimônio de cada
sociedade, insensivelmente sedimentado através dos séculos.

|