A vitória de Guararapes iniciou a recuperação do nordeste brasileiro.
(Detalhe de um óleo de Victor Meirelles) |
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Memória da Justiça Brasileira -
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Capítulo 17
Restauração e
Tréguas |
O apogeu dos "rebeldes" holandeses
coincidia com o ocaso do poderio espanhol. O império, edificado
durante os séculos XV e XVI, ingressou fragilmente no XVII. Arcaico,
carente de uma estrutura de produção adequada, limitava-se a
repassar os lucros das suas colônias às economias mais ativas da
Europa central, indo, indiretamente, boa parte deles, aos cofres de
Amsterdã. Hipertrofiada, a Espanha costurava, trabalhosamente, a
união das sua diversas etnias, dificultada pela enorme extensão
territorial e pela precariedade das comunicações.
Felipe III, numa atitude negociadora,
muito distante da altiva autoridade exibida por seu pai e seu avó,
conseguiu manter, até 1621, um delicado equilíbrio que, embora não
recuperasse o terreno já perdido, ao menos congelara as fronteiras,
evitando o avanço dos rebeldes. Morto ele e decorrido o tempo da
trégua por ele assinada, a conflagração atingiu volume
intercontinental. Poderosas esquadras, ditas holandesas, mas
constituídas também por mercenários franceses e alemães e apoiadas
mais ou menos explicitamente pelas grandes monarquias que
rivalizavam com Espanha, lutavam em todos os mares com forças
espanholas, napolitanas e portuguesas.
Portugal, involuntariamente envolvido
na guerra, perdeu grande parte das suas colônias da América, Ásia e
África. Nas áreas que ainda controlava, o esforço de guerra
obstaculizava o desenvolvimento, impedia o comércio e submetia à
população a uma carga tributária incompatível com a já empobrecida
economia. Em 1637, violentos distúrbios se espalharam desde Évora a
todo o sul de Portugal. Ainda que brutalmente reprimidos - com a
vênia da aristocracia portuguesa - estes tumultos evidenciaram a
fragilidade do controle espanhol. Essa fragilidade viu-se cruamente
exposta, em 1640, com a revolta da Catalunha. O recrutamento de
portugueses para combater os catalães exacerbou os ânimos. A
aristocracia, cansada de resignar os seus privilégios e temerosa dos
desbordes populares, resolveu sair na frente. Lembrando a existência
de D. João, duque de Bragança, quem, como tataraneto de D. Manoel I,
poderia invocar direitos hereditários, resolveu repintar antigos
brasões, aclamando-o por rei de Portugal. Difícil foi interessar o
herdeiro, que, contrariando toda a corrente nacionalista, se
manifestava fiel partidário e vassalo submisso de Felipe IV.
Finalmente, convencido pelos conspiradores, foi entronizado, sem
encontrar grande resistência.
O reinado de dom João IV foi tão
tímido quanto as suas pretensões ao trono. Todos os cargos e
privilégios concedidos pelos monarcas espanhóis foram mantidos. A
defesa foi confiada a um conselho de guerra, a que foram conferidas
atribuições judiciais, mas nenhuma das estruturas permanentes de
poder e governo foi alterada em profundidade. As leis permaneceram e
até as Ordenações Filipinas conservaram-se em vigor. Nas
questões de fronteiras, D. João adotou a posição de evitar novos
conflitos, mesmo que isso o forçasse a admitir a perda dos
territórios que se achavam invadidos, limitando-se a procurar uma
trégua que lhe permitisse consolidar a ordem interna. Despachou para
tal fim a Tristão de Mendonça Furtado, encarregado de negociar, em
Amsterdam, os termos do acordo.
As condições pactuadas pelo embaixador
foram, essencialmente, as seguintes: Seis meses após a ratificação
pelo rei de Portugal, iniciariam os dois países uma trégua de dez
anos, durante os quais seriam amigos e solidários na sua luta contra
os reis de Castela. Ambos os países continuariam "na posse das
cousas ganhas e possuidas". Os territórios situados "entre as
fortalezas fronteiriças" seriam divididos ao meio, "para que,
desta maneira, constem para os holandeses e portugueses os limites
do seu império e defesa". Todos os bens abandonados pelos donos
durante a guerra seriam considerados perdidos, sem direito à
reclamação. Pelo contrário, os que houvessem sido "sempre
ocupados e cultivados por êles ou seus administradores",
permaneceriam sob o seu domínio, independendo esse direito da
nacionalidade dos proprietários, "sendo competente o foro do seu
distrito para as questões a eles relativas". Em linhas gerais,
cada habitante teria "direito à posse e gôzo dos bens que provar
ter possuido desde a publicação das tréguas".
As conseqüências do período filipino
resistiam à delimitação. Os holandeses, que, de fato e de direito,
ainda estavam em guerra com Portugal, aproveitaram a demora na
aprovação das tréguas para conquistar o Maranhão e deslocar as suas
fronteiras na África. Portugal, maniatado pelos conflitos internos e
externos, aceitava passivamente. Mas os holandeses enfraqueciam.
Afastado o perigo espanhol, a manutenção de uma grande força militar
parecia pouco rentável para a Companhia. Embora bem aceita pelos
moradores de ambas as nacionalidades, a gestão de Nassau parecia
dispendiosa às autoridades que, dos seus escritórios em Amsterdam,
viam o crescimento das despesas como um problema fora de controle.
Em 1640, os diretores ordenaram "que reduzisse as forças
militares a 18 companhias e que suprimisse para os ministros de
justiça e do culto os emolumentos de casa e mesa". Já
anteriormente, lhe fora ordenado "demitir os oficiais mais
graduados e reduzir o número dos militares". Inconformado com
essas limitações e com as acusações de enriquecimento ilícito,
Nassau pediu a sua remoção do governo da colônia, não sem advertir,
reiteradamente, sobre os perigos de uma conduta tão imprudente.
Apesar dos esforços desenvolvidos para sua integração e do virtual
abandono por parte de Lisboa, os moradores continuavam
considerando-se cidadão portugueses, e não deixariam passar uma
oportunidade de reconstruir as suas próprias instituições de
governo. Efetivamente, entre 1644 e 1654, portugueses-brasileiros
reconquistaram, praticamente sem ajuda peninsular, não apenas o seu
próprio território, como também Angola e São Tomé, unidas, como
sempre, ao Brasil, pela sua interdependência econômica.
Com a pacificação, os moradores da
Bahia recomeçaram a sua mobilização para o melhoramento da Justiça.
Durante mais de uma década, Salvador transformara-se numa cidade
ocupada pelo seu próprio exército. Além de arcar com o sustento da
tropa, os habitantes deviam suportar toda sorte de arbitrariedades,
que, durante o breve governo do conde da Torre, chegaram ao
cúmulo.
Ao mando da esquadra, que
definitivamente deveria expulsar aos holandeses dos territórios
hispano-portugueses, o conde passou em frente ao Recife, em 10 de
janeiro de 1639, sem ousar disparar um só tiro. Debilitado por uma
epidemia que dizimara as suas forças no Cabo Verde, Mascarenhas
passou ao largo com seus 46 navios, demoradamente preparados em
Lisboa, e preferiu buscar refúgio em Salvador. "Por muito
enfraquecido que o inimigo se achasse - escreveu Nassau - nós
não tínhamos fôrças bastantes para impedir-lhe o desembarque, ou
para resistir-lhe em parte alguma". Já na Bahia, o conde lotou
de doentes o hospital e os conventos e tomou, virtualmente, posse
das vidas e fazendas dos habitantes. "Não é homem prático de
guerra - continuava Nassau o seu informe aos Estados Gerais -
e em matéria de governo encaminha tudo para o seu proveito
particular, ao qual sacrifica o principal, nenhuma disciplina
mantendo entre a sua gente, e antes, deixando-a cometer insolências
e cair em dissolução; de sorte que, na Bahia, as mulheres honestas
tiveram de abster-se de freqüentar a igreja, onde costumavam ir de
madrugada, porquanto eram acometidas em plena rua por êsses
fidalgos; arrebatavam as donzelas dos braços de seus pais, as
restituiam violadas e praticavam outras queijandas atrocidades sem o
menor castigo". Se é verdade que Nassau, como inimigo de
Mascarenhas, não estaria, provavelmente, inclinado à indulgência,
também é certo que nada teria a ganhar desacreditando-o diante dos
Estados Gerais.
A armada ficou na Bahia até 19 de
novembro, refazendo-se dos prejuízos sofridos, porém dando tempo aos
holandeses de preparar-se para o combate. Os prejuízos foram
desastrosos. A armada derrotada se dispersou completamente. "Uns
navios foram à Índia, e outros a outras partes" e D. Fernando
voltou "à Bahia, sem fazer nada". Coroa mandou devassar, para
esclarecer "os desacertos e culpas que houve em um caso tão
lamentável e desacreditado". A esse efeito foi designado Gaspar
Cardoso, desembargador da Relação e Casa do Porto, que deveria
viajar "com posse tomada de um lugar da casa de suplicação".
Aproveitando a viagem, o desembargador deveria "sindicar dos
governadores e ouvidores imediatos naquele estado, a quem se não
tiver tomado residência", como também de Pedro Cadena e do
próprio conde. Considerando que algumas das pessoas sob investigação
eram membros de ordens militares-religiosas, conferia-se, também, ao
sindicante o hábito da Ordem de Cristo, o que representava,
implicitamente, a sua investidura da função de juiz dos
cavalheiros.
Mas não bastava uma sindicância para
satisfazer os desejos de justiça que renasciam na população
brasileira. Diminuídas, se não eliminadas, as despesas bélicas,
desaparecia a razão explícita da extinção da Relação da Bahia. Em
1642, a câmara de Salvador requisitou a reinstalação do tribunal,
que seria efetivada dez anos depois, quase simultaneamente com a
reconquista dos últimos territórios. Encerrava-se uma época de
conflitos e incertezas e começava o período áureo do Brasil
colonial.
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