Felipe II, rei da Espanha, reinou também sobre Portugal com o nome
de Filipe I.
(Detalhe de um óleo de Tiziano) |
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Memória
da Justiça Brasileira - 1 |
Capítulo 3
"Lo Heredé,
lo Compré y lo Conquisté"
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Reinava na Espanha, desde 1556, Felipe II,
neto, como já foi apontado, de D. Manoel I. Interrompida, em Portugal,
a linha sucessória, Felipe era o herdeiro com direitos mais sólidos. Da
linhagem direta restara apenas um velho cardeal, D. Henrique, filho de
Dom Manoel e tio de D. Sebastião, que assumiu a regência. Impedido, por
idade e profissão, de deixar descendência, ocupou seus ultimos anos em
preparar a transição. Não duvidava o velho cardeal dos legítimos direitos
de Felipe à coroa, e nisso era secundado pela maior parte do clero e da
nobreza. Não pouca influência tiveram, nesse apoio, as riquezas da Espanha,
generosamente despejadas nas mãos de aristocratas empobrecidos, muitos
dos quais precisavam desse dinheiro para resgatar os seus parentes, cativos
dos mouros.
Dos outros candidatos, o mais cotado, ardorosamente
defendido pelos setores populares, era D. Antônio, prior da Ordem de Crato,
também neto de D. Manoel, mas com direitos inferiores, por ser bastardo.
As suas pretensões não resistiram às forças espanholas que, ao comando
do duque de Alba, invadiram Portugal, em 1580, garantindo, finalmente,
pela força das armas, a conquista iniciada pela herança e consolidada
pelo dinheiro.
Dito seja, em descargo de D. Henrique, que
a sua intervenção no processo sucessório, embora inconclusa, pode ter
sido a melhor opção dentro das possibilidades. Felipe II tinha, realmente,
todas as condições para ganhar e melhor do que resistir, heróica e inutilmente,
era negociar com ele, tentando resguardar a maior parcela possível de
autonomia para Portugal. Não foi outro o sentido das cortes de Tomar que,
em 1581, estabeleceram as condições segundo as quais o soberano espanhol
reinaria em Portugal: respeito à língua, às leis e às tradições do país,
preenchimento de cargos exclusivamente com portugueses, manutenção dos
privilégios comerciais com a África e a Índia, entre outras. Felipe, agora
I pela sucessão portuguesa, aceitou as condições e as confirmou pela carta
de lei assinada em 12 de novembro de 1582.
Mas existia um antecedente mais remoto. Andrade
e Silva registra uma carta régia assinada pelo próprio D. Manoel em 1499.
Já nessa época o rei planejava a união das duas coroas.
Na verdade, essa união tinha raízes muito
antigas. Em 1383, D. João I, de Castela, casou com Beatriz, filha única
de Fernando I, de Portugal, e só não herdou a coroa porque a população
das principais cidades se sublevou e um partido nacionalista, formado
por setores populares e de comerciantes, aclamou D. João I, mestre da
Ordem de Avis, inaugurando a dinastia desse nome.
Uma nova crise aconteceria em 1474, quando,
morto Henrique IV, rei de Castela, as pretensões da sua filha única, Juana,
chamada "la Beltraneja", foram desconhecidas por sua tia, Isabel, depois
conhecida como "la Católica", irmã do rei, que contestava a legitimidade
de sua filiação. Afonso V, rei de Portugal e tio de Juana, apoiou as pretensões
da sobrinha, iniciando contra Isabel uma guerra que só terminaria em 1479,
com a vitória desta na batalha de Toro.
Parece ter sido D. João II, filho de Afonso
V, quem concebeu mais claramente a idéia de uma coroa pan-ibérica. O território
português estava, praticamente, consolidado. O espanhol, que demorara
mais tempo, consolidava-se com a união de Castela e Aragão e a conquista
dos reinos árabes. Fiel aos costumes da época, D. João II providenciou
o casamento do seu filho Afonso com a primogênita de Isabel e Fernando.
A herança, dada como certa, frustrou-se pelo prematuro falecimento do
príncipe. Sem perder as esperanças, D. Manoel, o sucessor, casou com a
viúva, mas ela também veio a falecer em 1498, seis anos antes que sua
mãe. A sucessão de Castela, morta Isabel em 1504, foi às mãos de Felipe,
"el Hermoso", marido da segunda filha de Isabel.
Mas D. Manoel não desistia. Morta a princesa
Isabel, casou com a sua irmã, Maria, quarta filha de "la Católica". Catalina,
a restante, era já mulher de Henrique VIII, da Inglaterra. As possibilidades
de herança eram menores mas, mesmo assim, quase se concretizaram pela
morte de Felipe, em 1506, unida à demência da rainha Juana. Fernando,
"el Católico", ainda vivo, assumiu a regência até a maioridade do seu
neto Carlos, filho de Juana e Felipe, frustrando, mais uma vez, as expectativas
portuguesas. Sem perder as esperanças, D. Manoel, novamente viúvo, casou
pela terceira vez, agora com a princesa Leonor, filha de Juana e irmã
de Carlos. Não alcançando ainda o seu objetivo, casou o seu filho, o futuro
rei João III, com sua cunhada Catalina, filha também de Juana e Felipe.
Mas seria pela via contrária que as duas coroas, finalmente, acabariam
se unindo: Carlos I, casando com Isabel, filha de D. Manoel e D. Maria,
abririria o caminho do seu filho, Felipe, ao trono de Portugal.
Ficaria incompleta esta complexa história
sem mencionar mais um personagem: Miguel, filho de D. Manoel e da princesa
Isabel, que deveria ser o herdeiro do sonho de seu pai. Foi para regulamentar
o seu reinado que o soberano mandou escrever e assinou, com "força
e vigor de lei", a carta de 18 de janeiro de 1499. Português de nascimento
e criação, começou a preocupar-se com o modo em que os dois países seriam
governados por um mesmo rei e, principalmente, com a possibilidade de
que seu filho resolvesse abandonar Portugal para residir na agora poderosa
Castela. Procurava, assim, garantir que "todalas cousas sejam encomendadas
a Officiaes naturaes delles [referia-se aos reinos de Portugal e Algarve],
e por elles feitas, e não por estrangeiros, que não sabem os costumes
da terra".
Contrariando o costume segundo o qual a Casa
de Suplicação, o mais alto tribunal da época, acompanhava sempre ao soberano,
D. Manoel dispunha que, mesmo o rei residindo no exterior, "nunca seja
tirada fóra destes Reinos, antes sempre esté residente nelles." Todos
os seus membros, assim como os da Casa do Cível e os Corregedores, Meirinhos,
Escrivães, Tabeliães e outros ofícios de Justiça deveriam ser portugueses.
Não se menciona explicitamente o Desembargo do Paço, ainda inexistente,
mas está implícito no espírito do texto. Todos os cargos administrativos,
militares e de governo deveriam ser destinados a portugueses.
Caso o seu filho resolvesse mesmo morar em
Castela, poderia nomear "um Logar-Tenente, ou Viso-Rei ou Governador,
ou Assistente, ou Adiantado", que o representasse, devendo também
esse funcionário ser português. Sempre que o soberano visitasse o reino
"todos os Officiaes de Castella e de Aragão que trouxer, deixem as
Varas da Justiça que trouxerem, e as tomem os Officiaes portuguezes -
e nenhum outro Official estrangeiro tenha jurisdicção em cousa alguma,
em quanto em Portugal estiver; salvo que os do seu Conselho, e Officiaes
de Castella, possam intender nos negocios e cousas que dos ditos Reinos
vierem".
Até mesmo o Conselho de Portugal, que orientaria,
na sua área específica, as decisões do período filipino, estava já prefigurado
ao dispor que, quando os reis "estiverem em Castella, ou em Aragão,
ou em qualquer outra parte dos ditos Reinos, e Senhorios delles, ou onde
quer que seja, fóra de Portugal, sempre tragam consigo Chanceller-mór,
e Desembargadores de Petições, e Escrivão da Puridade, e Escrivães da
Camara, e algum Védor da Fazenda, e Escrivães della, que sejam portuguezes,
para que por elles e com elles, se despachem todos os negocios de Portugal,
em que lá se houver de intender - e todos os despachos que a Portugal
se enviarem, e todas as Cartas, Doações, Privilegios e Sentenças, e quaesquer
outras Escripturas, ou Alvarás, que se houverem de enviar, ou fazer, de
cousas destes Reinos, tudo se faça em linguagem portugueza".
Todas as possessões portuguesas ficavam garantidas.
Apenas a portugueses poderiam ser feitas doações ou outorgados cargos
de governo e administração. Toda a produção das colônias deveria passar
por Portugal e em moeda portuguesa seria lavrada a produção das minas.
O Brasil, ainda oficialmente desconhecido, está implícito na frase "assim
do ganhado como do que está por ganhar".
A intensidade da preocupação de Dom Manoel
fica evidente no dramático apelo que encerra o documento. Ele manda seu
filho e todos os posteriores descendentes ou herdeiros "cumprir e guardar
e manter façam todo o acima conteudo, sem minguar cousa alguma - e fazendo-o
assim, como delle e de seus successores esperamos, sejam bentos da benção
de Deus Padre, Filho e Espirito Santo, e da Virgem Gloriosa Maria, e dos
Bemaventurados Apostolos S. Pedro e S. Paulo, e de toda a Còrte Celestial,
e da minha - e fazendo elles, ou cada um de seus successores, o contrario
(o que não crèmos, nem esperamos) sejam malditos da maldição de Deus,
e da Virgem Gloriosa Maria, e dos Apostolos, e Còrte Celestial, e da minha,
que nunca cresçam, prosperem, nem vão adiante".
Não teve Dom Manoel, chamado "o Venturoso",
a ventura de ver a sua ilusão realizada. O príncipe Miguel morreu menino
e todas as outras tentativas, como já vimos, resultaram infrutíferas.
A influência deste documento seria, porém, evidente no período filipino,
a ponto de ser oficialmente reconhecido e confirmado por Felipe II, em
1595. Não consta que tenha sido expressamente considerado nas negociações
de 1580, mas, com certeza, era conhecido por ter sido também confirmado,
apenas cinco anos antes, por D. Sebastião, a pedido do "Presidente,
Vereadores, e Procuradores dos Mesteres" da cidade de Lisboa. O porquê
desse documento, arquivado desde 1499 na Torre do Tombo, ser desarquivado,
confirmado e dado traslado às autoridades municipais de Lisboa é outro
mistério. Será que já previam a possibilidade do que viria, efetivamente,
a acontecer poucos anos depois? Os depositários, evidentemente, cumpriram
a sua parte: foram eles que apresentaram essa cópia, zelosamente guardada,
exigindo a sua confirmação por parte dos felipes.

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