Sede da Relação do Estado do Brasil, demolida em 1873.
Sede da Relação do Estado do Brasil, demolida em 1873.
(Detalhe de uma fotografia de Benjamin Mulock)
  Memória
da Justiça Brasileira - 1
Capítulo 6

Gestação e Nascimento
da Relação do Brasil

Desde o início do período filipino, a reforma judiciária nas colônias foi matéria de interesse da Coroa. Concluído o novo regimento da Casa da Suplicação, extinta a Casa do Cível e criada a Relação do Porto, uma missão, semelhante à que Vázquez de Arce desenvolvera em Lisboa, foi incumbida de verificar o estado da justiça em Angola. Em 1586 foram reformados os regimentos dos ouvidores e o da Relação da Índia. No mesmo ano, Felipe II e o vice-rei, cardeal Alberto, começaram a estudar o estabelecimento da Relação do Brasil. Abonavam a idéia as constantes denúncias de abusos e levantamentos de suspeições contra os ouvidores-gerais. Cosme Rangel, um dos ex-ouvidores consultados pelo Desembargo do Paço, chegara a Lisboa preso, pouco tempo atrás, por ter-se aproveitado do seu cargo para usurpar o controle do governo, em detrimento da junta que substituíra o falecido governador Lourenço da Veiga. Outro problema constante era a sobrecarga de responsabilidades. Além de os ouvidores acumularem o cargo de provedor-mor, não era raro encontrá-los auxiliando ou substituindo o governador nas suas funções administrativas e, até, nas militares. Rangel já chefiara incursões contra escravos foragidos, e o seu sucessor, Martim Leitão, simplesmente, conquistara a Paraíba.

Em opinião contrária estavam os que achavam excessiva a implantação de um tribunal numa terra tão pobre. O Brasil não era ainda a opulenta colônia do século XVIII. A Relação seria um órgão de manutenção dispendiosa e atrairia, certamente, um séquito de advogados e rábulas que estimularia o crescimento desnecessário e artificial dos litígios. Entretecia-se, no fundo, a polêmica, constante, entre os que destacavam a existência real dos conflitos e pediam que alguém fosse enviado a resolvê-los e os que pensavam que tais conflitos seriam melhor solucionados pelos métodos antigos.

Prevalecendo as opiniões favoráveis, Felipe II autorizou a criação do Tribunal e, elaborado o regimento, nos moldes do recém-reformado da Casa da Suplicação, os dez primeiros desembargadores embarcaram para o Brasil: era 1588 e acompanhavam o governador designado, Francisco Giraldes. Mas, apesar dos progressos técnicos alcançados pelos portugueses, a navegação era ainda precária. O galeão São Lucas sofreu condições adversas e acabou procurando refúgio em Santo Domingo; ali, impedido pelas correntes marinhas estacionais de continuar para o sul, retornou a Portugal. A polêmica, que parecia definitivamente encerrada, recomeçou com a volta dos desembargadores, e se alastrou por mais dois anos. Diversas alternativas circularam entre a Coroa, o vice-rei e o Desembargo do Paço, até que Felipe II, em 26 de novembro de 1590, resolveu desistir definitivamente do projeto. O rei faleceu, em 1598, sem ver funcionando o tribunal que criara. Também as Ordenações, a culminação da sua obra de reformador da Justiça portuguesa, estavam ainda no manuscrito. Seu filho, Felipe III - segundo em Portugal - as mandou imprimir e observar em 1603.

A administração das colônias portuguesas mudou radicalmente em 1604. Até então, o seu governo estava dividido entre o Desembargo do Paço, o Conselho de Portugal, a Mesa da Consciência e alguns órgãos menores da área administrativa, como os Contos do Reino e Casa e os Vedores da Fazenda. Em 26 de julho desse ano, toda a administração das colônias foi centralizada no Conselho da Índia, órgão semelhante ao "Consejo de Indias", que tomava conta das colônias especificamente espanholas. Toda a correspondência do vice-rei e Relação da Índia, bem como a dos governadores, capitães, ouvidores e demais autoridades das colônias passava por ele. O seu presidente a recebia diretamente dos navios e, após consultar quatro conselheiros - dois de capa e espada, um letrado e um clérigo -, encaminhava as sugestões ao Vice-rei pelas mãos de dois secretários. O volume relativo destas atividades pode ser estimado considerando que, enquanto um destes secretários cuidava exclusivamente dos negócios da Índia, o outro estava encarregado de todas as outras colônias, o Brasil entre elas.

Apesar da desvantagem, o Brasil colheu alguns frutos desta reorganização da administração das Índias, sendo o principal deles, a aparição de um canal mais direto e específico para peticionar. Parece ter sido o governador Diogo Botelho quem primeiro lembrou ao Conselho a necessidade, ainda insatisfeita, do estabelecimento da Relação do Brasil. Não era, a julgar pelos documentos, um modelo de paladino da Justiça. Condenado à morte, em Portugal, pela sua resistência à posse de Felipe II, foi perdoado, já ao pé do patíbulo, por interferência de familiares do rei. A lembrança era tão forte que, ao chegar à Bahia, mandou arrancar o pelourinho da Praça do Palácio. Inobstante, requereu e conseguiu da Coroa que o restabelecimento da Relação fosse posto em análise. Felipe III mostrou-se favorável e, após quatro anos de consultas, a Relação do Brasil foi novamente regimentada, a 7 de março de 1609.




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