Jurisdição original da Relação do Estado do Brasil.
Jurisdição original da Relação do Estado do Brasil, entre os atuais estados de São Paulo e Rio Grande do Norte.
(Detalhe de um mapa da época)
  Memória
da Justiça Brasileira - 1
Capítulo 7

O Regimento

O regimento aprovado em 1609 difere escassamente do original estabelecido por Felipe II. Começa estabelecendo a composição do tribunal, que seria constituido por "dez desembargadores, entrando neste numero o Chanceller, o qual servirá de Juiz da Chancellaria; tres Desembargadores de Aggravos; um Ouvidor Geral; um Juiz dos Feitos da Corôa, Fazenda e Fisco; e um Procurador dos Feitos da Corôa, Fazenda e Fisco, e Promotor da Justiça; um Provedor dos Defunctos, e Residuos; e dous Desembargadores Extravagantes"

Depois dispõe sobre as acomodações necessárias, mandando "que a Relação, e despacho, se faça nas casas que tenho na Cidade do Salvador", o que costuma ser interpretado como a casa que, desde os tempos de Tomé de Sousa, os governadores ocupavam na Praça do Palácio e que, documentalmente, sabemos que serviu à Relação em certos períodos. No entanto, o Livro que dá Rezão do Estado do Brasil, baseado em informações de 1611, identifica como "Cazas da Relação" um quarteirão próximo da igreja da Ajuda que poderia ser alugado ou cedido ou pertencer também à Coroa. Quanto à cadeia, o regimento manda verificar as suas condições e, caso não oferecesse condições adequadas de segurança, construir outra nova. A cadeia, como era habitual, funcionava no térreo da Casa da Câmara, e não consta que tenha sofrido modificações especialmente notáveis até 1660, quando a casa toda foi reconstruída.

Boa parte da introdução dedica-se a cuidar da imagem dos desembargadores e do próprio tribunal, que devia atender a padrões detalhadamente preestabelecidos. Os magistrados não podiam usar armas dentro da Relação e vestiriam "assim na Relação, como na Cidade, com as ópas, que costumam trazer os Desembargadores da Casa de Supplicação, de maneira que representem os cargos que tem". Sentariam "pela ordem que se costuma na Casa da Suplicação" em "escabellos de encosto na mesa grande, e em cadeiras razas nas outras mesas". As mesas deveriam ser cobertas com panos, sendo os da grande de seda e os restantes de lã. Os assentos deveriam ser "de couro estofados, todos de uma altura". Sobre as mesas haveria "tinteiro, poeira e campainha", devendo os da mesa grande ser de prata.

Resulta interessante observar o contraste entre os amplos poderes conferidos aos desembargadores e a disciplina quase escolar à que estavam submetidos. Depois da missa, que obrigatoriamente deveria ser celebrada antes de cada sessão, despachariam por "quatro oras, ao menos, por um relogio de arêa, que estará na mesa, aonde o Governador estiver" (O regimento assimilava o cargo de governador ao do regedor da Casa da Suplicação que estava incumbido de cuidar da pontualidade dos magistrados). O regimento de 1609 não inclui a proibição, explícita nas Ordenações, de os desembargadores abandonarem seus lugares, exceto "por tal necessidade, que se não possa escusar". Também não explicita, embora apareça claramente registrada nos Estilos da Relação do Porto, a proibição de falar em voz alta de uma mesa à outra "ainda que seja em casos licitos". Instrumentos avulsos determinavam também restrições à vida particular dos magistrados. Os desembargadores estavam proibidos de freqüentar casas de jogo e ir à casa de outras pessoas , podendo apenas "visitar uns aos outros, e aos Presidentes dos ditos Tribunaes". Também não podiam casar - o que foi explicitamente proibido aos desembargadores do Brasil - nem tomar afilhados dentro da sua jurisdição.

O Regimento define os livros que a Relação deveria possuir: "tres volumes de Ordenações recopiladas, e cada um com o seu Repertorio, e textos de Canones, e Leis, com glosa, de marca pequena". As despesas iniciais seriam feitas com recursos da Fazenda mas, depois de estabelecido o tribunal, a sua manutenção ficaria por conta da sua própria arrecadação.

Títulos separados definem as atribuições dos membros e dos principais servidores da Relação. O governador do Estado, à semelhança do vice-rei da Índia, ficava equiparado ao regedor da Casa da Suplicação, que, por sua vez, substituira a presença fisica do rei, quando esse tribunal ganhou uma relativa independência. A sua função era cuidar do bom funcionamento da Relação, fiscalizando a atividade dos seus membros e providenciando as condições necessárias para o seu trabalho. Nomeava funcionários, regulava as despesas e cuidava de providenciar o alojamento dos magistrados. Não era obrigado a assistir a todas as sessões, mas devia, no mínimo, presidir mensalmente uma audiência geral em que fossem julgadas as causas criminais mais leves, para serem despachadas "com justiça e brevidade". Anualmente, escalava os desembargadores que deveriam realizar correições na Bahia e nas outras capitanias e informava Lisboa sobre as atividades realizadas.

Imediatamente inferior ao governador, era o chanceler quem presidia, na prática, o dia-a-dia da Relação. O cargo se originara como secretário e guarda-selos da Coroa, sendo depois estendido aos tribunais. O chanceler substituía ao governador, não apenas nas sessões da Corte, mas, se necessário, nas suas atividades específicas de governo, sendo o único magistrado com alçada para conhecer das suspeições contra ele. Devia, forçosamente, ser letrado e, à diferença dos outros desembargadores, que, nas colônias, podiam ser iniciantes, fazia-se questão da sua ampla experiência na magistratura. Regulava a sua atividade, além do regimento da Relação, os do chanceler da Casa da Suplicação e do chanceler-mor do Reino. Ao cargo, o chanceler acumulava o de juiz da chancelaria e juiz dos cavaleiros, com competência exclusiva para julgar os membros das ordens militares.

Os Desembargadores dos Agravos conheciam dos agravos e apelações das sentenças e decisões dos Ouvidores Gerais, do Provedor dos Defuntos e do próprio Governador Geral, bem assim dos juízes, ouvidores e capitães, no que ultrapassasse a alçada do ouvidor geral, até dois mil cruzados, nos bens imóveis, ou três mil nos móveis, podendo a parte, acima desse limite, apelar para a Casa da Suplicação. Sendo a nova Relação composta por menos desembargadores que os tribunais já existentes, o regimento reduz o número de votos que as Ordenações exigiam para os julgamentos das causas cíveis. Uma medida posterior viria a reduzir, também, o mínimo para o despacho das sentenças de morte. Os desembargadores dos agravos eram, em geral, os mais experientes entre seus pares. Os extravagantes, pelo contrário, eram desembargadores iniciantes, que cumpriam tarefas auxiliares, enquanto ganhavam o tirocínio necessário para atingir outras funções.

O Ouvidor Geral das causas cíveis e criminais era assemelhado aos corregedores do crime e do cível e conhecia dos agravos vindos das diversas capitanias quando não fossem da competência exclusiva de outros magistrados e não ultrapassassem a sua alçada, que era de quinze mil-reis nos bens imóveis e vinte nos móveis. Julgava, igualmente, os feitos que envolvessem militares, revogando-se pelo regimento da Relação o anteriormente conferido aos governadores, que previa competência privativa destes nessa área.

Outros desembargadores tinham também competência particular em determinadas matérias, como o Juiz dos Feitos da Coroa, Fazenda e Fisco, o Procurador dos Feitos da Coroa - que também era Procurador da Fazenda e Fisco e Promotor da Justiça - e o Provedor dos Defuntos e Resíduos. O quadro definido no regimento se completa com dois escrivães, um meirinho, um guarda, um recebedor do dinheiro das custas e um distribuidor.

Embora o regimento seja um instrumento de validade permanente, mormente baseado nas Ordenações e nos regimentos preexistentes, não deixa de fazer algumas recomendações conjunturais. Ao governador pede "particular cuidado de mandar guardar e executar a Lei, que ora mandei fazer, sobre a liberdade do Gentio do Brazil". Manda, ademais, "provêr sobre as lenhas, e madeiras, que não se cortem, nem queimem, para fazer roças, ou para outras cousas, em partes que se possa escusar; por quanto [...] em algumas Capitanias do dito Estado havia muita falta da dita lenha, e madeiras, e pelo tempo em diante a haveria muito maior, o que será causa de não poderem fazer mais engenhos, e de os que ora ha deixarem de moêr". Além do Ouvidor Geral do sul, estabelecido no ano anterior no Rio de Janeiro, o regimento cria uma terceira ouvidoria da Coroa, sediada em Pernambuco, "Por ser grande a povoação, e de muito commercio".



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