Diversos tipos de suplícios praticados durante as Idades Média e
Moderna.
(Detalhe de "O Triunfo da Morte", de Hyeronimus Bosch)
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Memória da Justiça Brasileira -
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Capítulo 9
Delitos e
penas |
O conceito que da Justiça se tinha em 1609
era bastante diferente do que dela temos agora. A Justiça devia ser
onipotente e exemplar. Até pouco tempo atrás era prerrogativa exercitada
pelos reis ou pelos senhores feudais. Delegada, depois, a corpos de
funcionários especialmente treinados, conservava, deliberadamente, um
aspecto sobre-humano e quase inatingível, expresso nas roupas especiais e
solenes dos magistrados, na ausência de cores, na proibição de visitar,
casar, tomar afilhados e, até, de divulgar as razões das suas decisões,
que não precisavam ser explicadas a ninguém.
Consoante tais critérios, nas normas legais,
reunidas principalmente nas Ordenações, era comum a aplicação da
pena de morte, mesmo em casos que hoje seriam considerados leves, como
furtar "meio marco de prata" ou "dormir com mulher casada".
Existiam vários graus, conforme o delito a punir. O mais comum era o da
forca, pena infamante que, em pessoas de maior qualidade, podia ser
substituída pela decapitação. Em casos mais graves, mandava-se que o corpo
ficasse na forca até apodrecer. Delitos contra a Igreja, como heresia e
apostasia, ou contra o próprio corpo - considerado sagrado -, como
incesto, sodomia ou relação sexual com animais, podiam ser punidos pelo
fogo, "até tornar-se em pó para que nunca de seu corpo e sepoltura
possa haver memoria", sendo o réu previamente estrangulado, se
arrependido ou converso, ou queimado vivo, se pertinaz. Esta sorte de
castigo post mortem se expressava também pela infâmia dos
descendentes e a colocação de efígies dos condenados nos seus lugares de
origem, podendo, ainda, tais efígies substituir ao próprio condenado, se
prófugo. Nestes casos, as efígies eram submetidas, como punição simbólica,
às mesmas penas que estavam previstas para os réus verdadeiros.
Existia ainda mais um grau na pena de morte.
Era a de "morte natural cruelmente", reservada aos réus de
lesa-majestade, crime considerado "tão grave e abominável [...]
que os antigos Sabedores [...] o compararão á lepra". A pena
consistia na morte lenta, por meio de torturas.
Os réus que escapavam à sentença de morte
eram freqüentemente condenados ao degredo, que, em casos leves, podia
consistir apenas na expulsão da comarca. Era comum, no entanto, o degredo
para as colônias, que se constituía num recurso auxiliar para o povoamento
e conquista de novos territórios. O degredo podia ser perdoado, em caso de
guerra, se o condenado aceitasse lutar e o fizesse bravamente. Uma forma
mais grave do degredo era o trabalho forçado nas embarcações que, mesmo em
caso de guerra, não podia ser comutado.
Também eram aplicados castigos físicos,
principalmente a flagelação, executada publicamente nos pelourinhos, que
eram erguidos, como símbolo de autoridade, nas cidades e vilas. Mutilações
diversas, tais como marcas de ferro quente ou decepação de orelhas e mãos,
eram aplicadas com dupla finalidade: escarmentar os culpados e
identificá-los para evitar a reincidência.
A tortura era, também, admitida como meio de
indagação, tanto para obter confissões como para obrigar os culpados a
denunciar os seus cúmplices, devendo ser advertidos, neste caso, de que
estavam sendo torturados como testemunhas, e não como acusados. As
confissões obtidas no tormento deveriam ser ratificadas num interrogatório
posterior, sujeitando os declarantes a uma nova sessão de tortura, se
negassem a sua veracidade. Os tormentos mais usados eram a polé e o potro,
sendo a primeira o tratamento normal e o segundo uma forma mais leve, a
ser aplicada "quando o Medico e o Cirurgião intenderem que os homens,
por fraqueza ou indisposição, o não poderão soffrer de polé". As
mulheres, porém, não podiam ser atormentadas no potro "pelo muito que
se deve attentar por sua honestidade". Outro método comum era o de
torturar com tenaz quente, donde deriva a palavra atazanar, hoje
popularmente utilizada como sinônimo de incomodar.
Quais destas penas chegaram a ser aplicadas
na Bahia? Com certeza, a forca, lembrada até hoje pelo nome da rua que a
ela conduzia. Também o pelourinho dá nome, ainda hoje, à última praça em
que esteve encravado, depois de ocupar, sucessivamente, a Municipal, o
Terreiro de Jesus e a Castro Alves. Algum fidalgo motivaria, talvez, uma
execução pela espada. Fogueiras?... Dificilmente. Não havendo, no Brasil,
um tribunal da Inquisição, os réus a eles submetidos deviam ser julgados
em Lisboa e, se condenados, executados pela Justiça da metrópole. Até um
grupo de piratas franceses, que profanara a igreja de Argoim e furara de
espadas uma imagem de Santo Antônio dela subtraída, pagou o sacrilégio com
uma simples e vulgar morte na forca. Crimes de lesa-majestade?... Se
acontecessem, algum cronista os teria registrado. O mais provável é que
grande parte das causas criminais acabasse em flagelação pública e as
cíveis em disputas intermináveis sobre posses, heranças e benefícios,
quando não sobre simples problemas de precedência nas procissões e
solenidades que hoje pareceriam absolutamente irrelevantes.

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