Uma das mais antigas versões manuscritas da Magna Carta das Liberdades da Inglaterra
Uma das mais antigas versões manuscritas
da Magna Carta das Liberdades da Inglaterra
 
  Memória
da Justiça Brasileira - 3
  Capítulo 1

Do Feudalismo à Monarquia Parlamentarista

Embora não tenham uma relação direta com a justiça brasileira, os fatos que envolveram a posse de D. João IV, como primeiro rei do Portugal "restaurado" e iniciador da dinastia de Bragança, resultam bastante interessantes para ilustrar o clima em que as suas reformas se processaram.

Leis escritas e, até mesmo, códigos estruturados, existiram desde a antigüidade clássica. Eram tidos, no entanto, como revelações da vontade divina ou disposições dos soberanos, eles mesmos vistos como representantes do além. A legislação não tratava de harmonizar as vontades humanas, mas de controlá-las pela força de um poder superior.

A primeira codificação que houve na Inglaterra foi ordenada no século IX por Alfredo, o Grande, rei saxão de vasta cultura para a sua época. Ele aprendera latim e chegara a visitar Roma em duas oportunidades. Desejoso de pôr ordem na dispersa e, às vezes, corrupta administração feudal, mandou reunir as velhas leis e as sintetizou num texto fortemente marcado pela religião, a ponto de começar com a reprodução literal dos Dez Mandamentos. Entretanto, mostrando um espírito bem saxão, permitiu que muitas ofensas – mesmo criminais, não sendo de extrema gravidade – fossem redimidas mediante uma compensação monetária. Mas a justiça criminal, fosse por compensação ou por punição, em nenhum caso poderia ser acertada diretamente entre as partes, posto que todo crime passava a constituir uma ofensa contra a Coroa. Dessa maneira, o rei esperava acabar com as séries intermináveis de vinganças pessoais que às vezes dizimavam famílias inteiras.

Paralelamente, existia o direito consuetudinário. Nem todas as controvérsias entre particulares eram submetidas à arbitragem dos soberanos. Mas, em linhas gerais, esse direito não era escrito e diferia consideravelmente de uma região a outra, de um povoado a outro e até mesmo de um a outro grupo social dentro da mesma comunidade. A escritura não estava ao alcance de todos e a oralidade se opunha à consolidação de uma lei comum.

A Idade Média acentuou profundamente essa situação. Desfeitos os grandes impérios, o poder esfacelou-se numa infinidade de feudos e – onde as contínuas guerras o permitiam – de pequenos burgos de cidadãos livres. A escritura ainda não estava ao alcance de todos, mas boa parte dos eclesiásticos a dominava e a Igreja era onipresente. Fosse levada pelo espírito evangelizador, fosse visando interesses mais terrenos, havia um representante da Igreja ao lado de cada senhor.

Logo que os primeiros reinos começaram a consolidar-se, representantes da Igreja passaram a integrar às cortes, não apenas como conselheiros espirituais mas, também, como chanceleres, ministros ou conselheiros nos assuntos de governo. Nos conventos, a reclusão limitava a presença cultural junto à sociedade externa, mas, por outro lado, criava um clima de contemplação e estudo que, através do padroado espiritual dos párocos e confessores, derramava sua influência sobre todos os setores. Não pode esquecer-se, ainda, que, excetuando a formação prática ministrada nas oficinas e grêmios de artesãos, praticamente toda a estrutura educacional dependia da Igreja católica.

Assim, num ambiente agitado por guerras constantes, a influência da Igreja seria fundamental na definição das facções, na estruturação das alianças e na elaboração dos acordos e concessão de graças que iriam garantir a paz e a fidelidade dos diversos setores. Inicialmente, senhores feudais receberam mercês em troca do apoio contra outros senhores feudais. Logo, conselhos de “homens bons”, reunidos em burgos, receberam as suas, proporcionando aos reis uma mais ampla base de sustentação e uma relativa independência dos senhores feudais. Essas graças constituíam, oficialmente, um prêmio por serviços prestados, mas não raro eram resultado de uma barganha onde a política pesava mais do que o real ou suposto heroísmo dos agraciados.

  Usados para estender e consolidar o poder real, esses acordos limitavam o próprio poder que estavam consolidando. A cada graça concedida, o rei se desprendia de uma parcela da sua onipotência em beneficio do agraciado. A graça concedida era palavra empenhada, com freqüência passava a constituir lei escrita e não podia ser impunemente alterada – mesmo pelos sucessores de quem a concedera – sem colocar em risco a fidelidade dos outros agraciados, que passariam a duvidar da permanência dos seus próprios privilégios. Mesmo assim, cada um desses privilégios era independente e constituía, apenas, um entendimento bilateral entre o agraciado e o soberano, sem que dele se derivassem direitos para outras pessoas ou comunidades. Por outra parte, as questões interpessoais, não protegidas por esses privilégios, continuavam sujeitas ao direito consuetudinário de cada comunidade ou ao arbítrio dos reis e senhores feudais.

Henrique II e o “Common Law”

No século XII, a compilação de Alfredo, o Grande, já se tornara claramente insuficiente e, em muitos casos, nem era aplicada. A Inglaterra passava uma etapa turbulenta, em que até mesmo os limites físicos do reino se tornaram imprecisos. Próximo a morrer, e sem filhos, o rei Eduardo, o Confessor, indicou como herdeiro seu primo segundo, o duque Guilherme, da Normandia. Os ingleses, descontentes com a decisão, postularam por Haroldo, conde de Wessex, que previamente se comprometera a respeitar a escolha de Eduardo. Guilherme apelou ao Papa, que optou por desconhecer à postulação e excomungar Haroldo por perjúrio.

A situação era complexa. A Normandia, originalmente um assentamento viking, tinha assimilado a cultura francesa e rendia vassalagem aos Capetos. Mas Guilherme fez valer a sua pretensão pela força das armas, vencendo os ingleses na batalha de Hastings e dotando à Inglaterra de uma nova aristocracia, de língua e cultura essencialmente francesas.

Guilherme, o Conquistador, teve um próspero reinado. Reorganizou a Inglaterra sobre bases feudais no estilo centro-europeu, distribuindo as terras tiradas aos rebeldes entre seus próprios cavaleiros que, em troca, lhe juraram lealdade e apoio econômico e militar. Com essas bases, estruturou um apurado sistema de fiscalização e recolhimento de taxas, substituiu as igrejas e abadias de madeira por imponentes edifícios de pedra e estimulou a radicação de mosteiros que iriam tornar-se importantes centros de irradiação cultural.

Porém, a sua dinastia não chegaria a consolidar-se. Guilherme deixou o ducado de Normandia ao seu primogênito Roberto e a coroa da Inglaterra ao seu segundo filho, Guilherme, mas este faleceu num acidente de caça, sendo sucedido pelo terceiro irmão, Henrique, que, posteriormente, conquistaria a Normandia, tornando a reunir numa só cabeça os domínios do seu pai. Sem herdeiros varões, Henrique I só pôde indicar como sucessora sua filha Matilde, cuja posse foi impedida pelos barões que formavam a base de sustentação do pai. Quebrando o juramento prestado ao rei, eles preferiram aclamar o seu sobrinho, Estêvão de Blois, que pouco iria honrar a preferência, passando à história como um galante cavaleiro, mas um fraco governante.

Sem uma autoridade que os contivesse, os barões voltaram-se uns contra os outros e a Igreja aproveitou-se das desavenças para estender o seu próprio poder. Por duas vezes, os partidários de Matilde desafiaram o rei e, em 1141, chegaram quase a vencê-lo. A exploração feudal tornou-se mais opressiva e, à sua morte, em 1154, os ingleses estavam dispostos a aceitar qualquer soberano que lhes transmitisse a sensação de um governo forte e capaz de restaurar a ordem.

Essa foi a imagem que Henrique II, filho de Matilde e de Godofredo V, conde de Anjou, se preocupou em passar aos seus súditos. Godofredo, que fora chamado de “Plantageneta”, pelo costume de prender no cabelo um ramo de giesta (em francês, “genêt”), transferiu esse apelido aos seus descendentes, sendo assim identificada, depois, a nascente dinastia anglo-angevina. Henrique II combateu os barões insubordinados, banindo seus mercenários e destruindo seus castelos. Restaurou a autoridade real, o recolhimento eqüitativo dos impostos e enviou juízes itinerantes às cortes dos diversos condados.

Esse costume fora iniciado na França por Carlomagno, no século IX, e transportado à Inglaterra por Guilherme I. Tinha a função de supervisionar mais de perto a condução dos feudos em defesa dos interesses da Coroa, mas Henrique II lhe deu um alcance mais amplo ao estender essa intervenção à administração da justiça comum. Os juízes, que enviava, não eram simples representantes da Coroa mas, também, juristas treinados, encarregados não apenas de conduzir os julgamentos como de fazer o registro deles para servir de guia e precedente em futuras decisões. Assim, a jurisprudência de cada condado acabou influindo na de outros, criando uma base legal homogênea, que passou a ser chamada de “common law” (direito comum).

O primeiro a proceder uma compilação importante parece ter sido o sacerdote e juiz Henri de Bracton (1215-1268), que chegou a reunir um acervo de mais de 2.000 decisões. O manuscrito, geralmente lembrado como “Note Book” (livro de anotações), que só veio a ser descoberto vinte anos depois da sua morte, chegou a ser publicado, constituindo-se no primeiro livro de jurisprudência conhecido. Em 1291, Eduardo I inaugurou uma série de publicações anuais, os “Year Books”, que se manteve quase sem interrupções até 1535.

Essas mudanças seriam determinantes para a tradição constitucionalista inglesa. Não foi a Inglaterra quem iniciou o direito nem a legislação unificada, mas, contrariamente a outras codificações da época, o “common law” não era baixado pelo rei (e nem mesmo por uma assembléia ou corpo representativo). Surgia, espontaneamente, da homogeneização do direito consuetudinário e, como tal, era sentido como um produto da Nação, e não exclusivamente da Coroa. Essa distinção seria de fundamental importância para o surgimento dos diplomas constitucionais ingleses e condicionaria toda a evolução posterior da Inglaterra e suas colônias.

Grande apoio, nestas reformas, recebeu Henrique II do seu chanceler Thomas Becket, a quem chegou a indicar como arcebispo de Canterbury. Essa colaboração terminou em conflito ao tentar o rei limitar a jurisdição da Igreja sobre os clérigos acusados de crimes comuns. Becket resistiu com intransigência e acabou condenado à morte, em 1170. Essa condenação foi o estopim de uma rebelião liderada pelos príncipes Ricardo e João – ambos, futuros reis da Inglaterra, – com o apoio da rainha Alienor de Aquitânia, de parte dos barões e da Coroa francesa.

Vencidos militarmente, os príncipes se aliaram ao seu pai na luta contra os barões que antes os apoiaram, executando sobre eles e seus subordinados uma cruenta vingança. Alienor ficou prisioneira do seu próprio marido pelo resto da vida dele. Mas a causa original estava perdida. Para ver restaurada a sua autoridade, Henrique II viu-se obrigado a reconhecer a jurisdição eclesiástica e fazer penitência frente ao túmulo de Becket – tido como santo mártir –, local que, por séculos, iria permanecer como lugar de peregrinação, em Canterbury.

A Magna Carta das Liberdades da Inglaterra

Longe de estarem definitivamente resolvidas, as dificuldades dinásticas dos Angevinos ainda iriam ensangüentar a Inglaterra por várias décadas. À Normandia, herdada do seu avó, Henrique II acrescentara Anjou e Maine, os domínios do seu pai, e adquirira, ao casar com Alienor, o enorme ducado de Aquitânia. Enfrentava, assim, o paradoxo de mais da metade dos seus domínios renderem vassalagem feudal ao rei da França, que, praticamente recluso na Île de France, dominava efetivamente um território infinitamente menor que as terras do seu poderoso vassalo. A situação era, praticamente, explosiva.

Já falecidos seus irmãos mais velhos, Henrique e Godofredo, Ricardo, o terceiro dos filhos de Henrique II, herdou do seu pai o reino e os problemas. Poeta e trovador, apaixonado pela cavalaria, chamado pelo povo de “Coração de Leão”, o valente guerreiro deixou pouco ou nada de útil para os seus governados. Inicialmente absorvido pelas lutas contra Filipe Augusto, da França; depois, companheiro, por imposição papal, do mesmo rei numa desastrosa cruzada a Jerusalém; prisioneiro, à sua volta do Sacro Império Romano-Germânico; morto, pouco depois do seu retorno definitivo, pela infecção inglória de uma flecha perdida no sítio de Chalus, o mais lembrado dos Plantagenetas não deixou outra coisa que uma população empobrecida pelas guerras, que teimava em idealizar as reformas nunca executadas pelo rei distante.

Ricardo não teve filhos. No seu leito de morte, duvidou em indicar como herdeiro seu sobrinho Artur, príncipe da Bretanha, que, embora filho do primogênito Henrique, era ainda uma criança, e preferiu deixar o reino a João, seu irmão caçula que, em virtude das rixas familiares, ficara sem feudo na herança do seu pai, razão pela qual era apelidado de “Sem Terra”. Era, verdadeiramente, um presente de grego. O reino – poderoso à morte de Henrique II – encontrava-se praticamente destruído. Filipe Augusto não desistia de reivindicar o pleno controle dos feudos que lhe eram vassalos e até – mais ou menos disfarçadamente – de acalentar alguma aventura imperialista em direção às ilhas. Os ingleses, que mal tinham tirado algum proveito da anexação dos senhorios continentais, reclamavam pela contínua requisição de efetivos e crescente imposição em dinheiro para sustentar uma guerra por territórios que não sentiam como próprios. Na Inglaterra, apesar das dúvidas levantadas em favor de Artur – que, por ser filho do primogênito, se beneficiava de uma linha dinástica mais pura –, as pretensões de João foram aceitas; mas, na Bretanha, a condessa Constância, mãe de Artur, levantou um exército em defesa do seu filho e conseguiu o apoio de Filipe Augusto, que o habilitou a render-lhe vassalagem por Maine, Anjou e Touraine. O mesmo teria sucedido, também, na Aquitânia, mas a rainha Alienor, liberada após a morte do seu marido, reivindicou o seu direito ao ducado, abdicando, logo após, em favor de João.

Decidido a conquistar pelas armas os territórios continentais, João conseguiu, inicialmente, vencer os bretões, mas um desafortunado caso de amor iria complicar ainda mais a sua situação. De uma penada só, conseguiu irritar à nobreza dos únicos territórios que lhe permaneceram fiéis – a da Inglaterra – ao dar por nulo seu matrimônio com Isabel de Gloucester, alegando vínculos de consangüinidade, e à do Poitou, ao casar com Isabel de Angouleme, prometida de Guy de Lusignan, filho do conde de la Marche, a casa mais importante no norte da Aquitânia. O noivo logrado apelou, como vassalo, ao rei da França, que, mais uma vez, se aproveitaria da disputa para ganhar terreno. Intimou João – também seu vassalo – a dar satisfação pelos seus atos e ao não receber satisfação nenhuma, como, aliás, era previsível, reuniu suas forças às dos poitevinos e bretões e declarou guerra à Inglaterra.

Mais uma vez, a sorte inicial favoreceu João, que conseguiu vencer parte dos rebeldes e prender seu sobrinho, então com 16 anos. Mas tanto os ingleses quanto os feudatários da França continuavam descontentes. As crueldades de João – suspeito de ter mandado assassinar Artur e deixar morrer de fome 22 cavaleiros da nobreza poitevina – unidas ao arbitrário arrocho impositivo destinado a sustentar o esforço bélico, o privavam das melhores vontades. Entre 1203 e 1204, Filipe Augusto entrou na Normandia, praticamente sem resistência, e até o lendário Chateau Gaillard, que Ricardo construíra como defesa inexpugnável, caiu, após um sítio de seis meses, sem ter recebido nenhum socorro. Vencida a Normandia, Anjou, Touraine e quase todo o Poitou submeteram-se ao rei da França, ficando apenas Guienne e o sul da Aquitânia sob controle de João Sem Terra.

Ainda, em 1206, João faria uma nova tentativa, conseguindo recuperar parte do Poitou, mas não aproveitaria o avanço para continuar a reconquista. Surpreendendo, mais uma vez, os ingleses, que a muito custo sustentavam a guerra, João aproveitou o avanço para assinar uma trégua, de dois anos, com Filipe Augusto, na base do “uti possidetis”, ou seja, congelando as posições atuais e renun­ciando a tentar a reincorporação dos territórios perdidos.

A desistência derivava, provavelmente, da abertura de uma nova frente de conflito, dessa vez com a Igreja. Falecido o arcebispo de Canterbury, em 1205, o rei anunciara, para substituí-lo, o nome do bispo de Norwich, mas o cabido reunira-se, secretamente, escolhendo seu subprior, Reginaldo, para esse cargo. Ao tomar conhecimento, o rei mandou reunir o cabido e compeliu-o, pela força, a revisar a decisão. Os dois nomes chegaram, sucessivamente, às mãos do papa, Inocêncio III, que optou por desconhecer ambas as eleições: a primeira, por clandestina e a segunda, por ter sido realizada sob coação. Em vez de confirmá-las, resolveu indicar um novo nome: o cardeal Stephen Langton, que viria a ter um papel preponderante nas vicissitudes dos próximos anos.

Não pode negar-se a astúcia da decisão. Langton era inglês, o que – hipoteticamente – tornaria a imposição um pouco mais aceitável, e possuía uma formação nitidamente superior à de qualquer dos outros candidatos. Catedrático, durante anos, na Universidade de Paris, não se conhece, praticamente, assunto sobre o qual não tivesse glosado ou lecionado. A ele se deve a primeira divisão da Bíblia em capítulos, segundo a estrutura que até agora se conserva. Posteriormente, fora chamado a Roma, onde se tornara homem de confiança do pontífice. Nessa condição, provavelmente, voltava à Inglaterra, não apenas para cobrir a vacância do arcebispado, mas, também, para constituir um avanço da Igreja em território britânico.

Não pode prescindir-se, neste quadro, de apontar o caráter transicional e fortemente renovador do pontificado de Inocêncio III. Se, com a conversão do imperador Constantino, o cristianismo passou de seita perseguida a religião oficial, o papa Inocêncio pretende realizar uma nova transformação. Já não é suficiente o apoio do poder temporal. A própria Igreja deve constituir-se na origem e confirmação de todo o poder temporal dos Estados.

Isso não constitui uma noção nova. Já os Dictatus Papæ, atribuídos a Gregório VII (1073-1085), contêm noções tais como: “somente do papa, todos os príncipes beijarão os pés”, que ele pode liberar às pessoas da sua lealdade para com os homens malvados” ou, inclusive, que a ele “é permitido depor os imperadores

Mas Inocêncio III aspirava a um poder mais concreto. Empossado muito jovem, aos 38 anos, unia à sua sólida formação o vigor e a am­bição de que muitos outros papas careciam. À cabeça de uma Igreja que conquistara toda a Europa, mas se via sitiada pelo islã – que dominava a Península Ibérica, a África e, o que era mais grave, os lugares sagrados do Mediterrâneo oriental –, de uma Igreja que, apesar da sua influência, ameaçava estilhaçar-se internamente por sua base, devido à proliferação das heresias, precisava do concurso do poder temporal e dele se servia, nem sempre com bons resultados.

Reforçando a obra de seus antecessores, transformou a luta pelos objetivos da Igreja num serviço a Deus, merecedor de indulgências e prêmios no além. Organizou não apenas a 3ª e a 4ª cruzadas à Terra Santa mas, ainda, outras menores contra os hereges albigenses, valdenses e contra quaisquer príncipes que se opusessem à sua autoridade, jogando-os uns contra os outros, conforme a oscilação das suas alianças. À cooperação entre Igreja e Estado, iniciada por Frederico Barbarroxa e o papa Lúcio III, acrescentou o envio de legados pontifícios ao sul da França, dando início à substituição da “inquisição episcopal” pela “inquisição delegada”.

Essa interferência foi contestada por Filipe Augusto, em nome do “jure feudi”, ao que o papa opôs a doutrina da “plenitudo potestatis”, conforme à qual a Igreja poderia intervir ativamente em todo e qualquer lugar em que a obra de Deus estivesse em perigo. De quebra, a perseguição papal obrigou os nobres da área em conflito a aceitar a proteção de Filipe Augusto, garantindo-lhes a posse do sul da França e completando, aproximadamente, a fisionomia atual do país.

A rivalidade entre Filipe Augusto e o papa não foi empecilho para que Langton – que, como já foi mencionado, anteriormente trabalhara em Paris – fosse tachado de espião dos franceses. João Sem Terra recusou-se a aceitá-lo e seqüestrou as terras dos monges de Canterbury, ao que o papa respondeu lançando uma interdição sobre todo o reino. As igrejas foram fechadas e suspensos todos os rituais, à exceção do batismo e a extrema-unção, cuja interrupção iria causar a perda de almas. Os matrimônios continuaram a ser celebrados, porém fora dos templos. Boa parte do clero abandonou o país e os que tentaram ficar viram-se forçados a escolher entre a fuga e o apoio à sacrílega rebelião do rei.

O conflito foi causa de profundas mudanças na vida inglesa. O povo, profundamente religioso, sentia-se indefeso e a situação de João tornar-se-ia dramática se a decisão de confiscar os bens dos partidários da Igreja não enchesse as arcas da Coroa de recursos suficientes para aliviar a pesada carga tributária e contratar bandos de mercenários que substituíssem as forças aportadas – cada vez mais a contragosto – pelos senhores feudais. Se, por um lado, essa força militar paga passaria a constituir uma salvaguarda do rei, independizando-o do auxílio da nobreza e desestimulando, pelo medo, qualquer princípio de rebeldia, por outro lado, iria constituir mais um fator de descontentamento, posto que os mercenários eram dificilmente controláveis e seus excessos transformavam-se em mais um fator de opressão. Mesmo assim, João conseguiu manter, durante mais de cinco anos, uma autoridade baseada na repressão cruel e imediata de qualquer tentativa de oposição.

Finalmente, no inverno de 1212/1213, Inocêncio III optou por agir politicamente, declarando João deposto por contumácia e encarregando Filipe Augusto de executar o seu desígnio. Essa decisão causou suficiente indignação entre os ingleses como para reunir novamente em torno do rei os principais senhores, prontos para rejeitar a invasão, mas o imprevisível João Sem Terra resolveu sair-se da situação com mais uma decisão surpreendente: colocar o reino todo nas mãos do papa. Perante o legado pontifício, cardeal Pandulfo, ele renunciou à sua coroa e, ato seguido, a recebeu de volta, na qualidade de vassalo da Santa Sé. Esse acordo – ignominioso para seus súditos ingleses – serviu-lhe para inverter por completo a situação, passando dali em diante a ser protegido do papa, que, de imediato, enviou ordens a Filipe Augusto para suspender a invasão.

A inversão foi tão grande que o rei se achou, até, com direito a tentar novamente a recuperação dos domínios perdidos em Anjou e na Normandia, mas os nobres ingleses – principalmente os do norte do país, que pouco ou nada teriam a ganhar nas eventuais conquistas – não estavam interessados na aventura e se escudaram em reais ou supostos precedentes, datados dos reinados de Henrique I e Henrique II, que os desobrigavam de prestar a sua colaboração nas expedições de ultramar. Muitos deles tinham participado nas cruzadas e em outras ações no território continental, mas, nessa particular situação política, o argumento foi amplamente aceito e iniciou uma série de reivindicações baseadas em precedentes similares.

Impossibilitado de levar adiante a campanha somente com seus mercenários, o rei viu-se forçado a voltar atrás e, buscando restaurar a autoridade questionada, concentrou suas forças sobre os nobres que lhe negaram colaboração, mas encontrou de frente com um inimigo inesperado. Langton, que, após o acordo com o papa, pudera, finalmente, ocupar o cargo na sua arquidiocese, saiu em apoio dos rebeldes. Muito mais versado em letras que seus representados, ganhou prontamente a liderança intelectual e – encontrando um meio de limitar as taxas arbitrárias na carta de concessões assinada por Henrique I, no ato da sua coroação – acordaram exigir do rei a confirmação daquele documento.

O rei, porém, mudara de planos. Privado da colaboração dos seus súditos, resolveu apelar a um amplo esquema de alianças externas, unindo-se ao seu sobrinho, o imperador Otão IV, da Alemanha, aos condes de Flandres, de Boulogne e de várias províncias holandesas, e projetou com eles um ataque surpresa contra a França. Enquanto, ele e seus mercenários, invadiam o Poitou para distrair o exército francês, Otão e seus aliados entrariam por Brabante, encontrando Paris praticamente indefesa. A ousada tentativa teria dado certo se o exército alemão não demorasse demais, dando aos franceses tempo suficiente para perceber o engano. Deixando uma pequena força para conter o avanço inglês, Filipe Augusto deslocou a maior parte do seu exército para a fronteira norte, vencendo os alemães e holandeses em Bouvines, e consolidando, definitivamente, o domínio francês no continente.

Encadearam-se, assim, as circunstâncias que levariam à assinatura da Magna Carta. Caso o rei tivesse continuado o ataque aos barões rebeldes, talvez eles não tivessem tempo de organizar-se e fossem prontamente dominados. Se, tendo empreendido a campanha internacional contra a França, tivesse vencido, a sua autoridade estaria restabelecida o suficiente para não ceder aos reclamos dos seus vassalos. Mas ele interrompeu a perseguição e voltou da nova aventura como vencido. Ao retomar a expedição punitiva, encontrou os barões coesos, organizados e prontos para a luta.

No Ano Novo de 1215, os barões enviaram ao rei o seu ultimatum. Langton, que até o momento não tomara publicamente partido, passou a intermediar o conflito como representante da Igreja. Na Páscoa, constatando que as negociações não evoluíam, os rebeldes avançaram sobre Londres, sendo aclamados pela população, forçando o rei a retirar-se para Windsor. Em junho, encurralado e virtualmente só, João acedeu a negociar. No dia 15, reuniu-se uma verdadeira multidão no prado de Runnymede. Durante cinco dias, Langton – ainda como negociador – e uma comissão de notáveis trabalharam na revisão do rascunho de acordo conhecido como “Artigos dos Barões” (Articles of the Barons). O objetivo inicial fora a confirmação da carta de Henrique I, mas, possivelmente animados pelo completo domínio da situação, os barões aumentaram suas exigências, chegando a redigir um documento quase inteiramente novo.

A versão final, conhecida como a “Magna Carta das Liberdades da Inglaterra”, foi concluída e assinada em 19 de junho. Escrita, originalmente, em latim, não chega a ser, propriamente, um texto constitucional. Boa parte dos seus artigos refere-se a questões circunstanciais ou mesmo a indivíduos, enumerando as ações que a Coroa deve fazer, ou omitir, para remediar os males que provocaram o conflito. Destacam-se, entretanto, princípios genéricos, alguns deles da maior transcendência. A carta começa garantindo a liberdade das eleições eclesiásticas, já previamente concedida por um documento anterior assinado pelo rei e ratificado por Inocêncio III. À continuação, para “todos os homens livres do nosso reino” acrescenta, “por Nós e por nossos herdeiros a título perpétuo”, as liberdades “que a continuação se enunciam” e que constituem o corpo principal do documento.

É muito provável que essa abrangência universal da carta se deva à influência de Langton. Os barões defendiam suas próprias prerrogativas e dificilmente o povo que os acompanhava tivesse a influência necessária para ser levado em conta. No texto original dos “Artigos” as liberdades eram concedidas a “any baron” (todos os barões). Na redação final, essa frase fora substituída por “any freeman” (todos os homens livres), o que, no século XIII, também não era grande coisa. Mergulhada a Inglaterra no feudalismo, os “homens livres” eram, ainda, uma minoria. Mas essas palavras teriam conseqüências que certamente poucos dentre os assinantes poderiam imaginar. Correndo os séculos, mudando a economia e as estruturas sociais, sujeito o documento a novas interpretações, as garantias nele detalhadas passariam a ser patrimônio de todos os ingleses. É justamente essa abrangência que distingue a Magna Carta de outros documentos similares.

Os artigos seguintes, embora tratando, preferencialmente, dos direitos dos nobres, fazem um reconhecimento à cidade de Londres, garantindo-lhe “todas suas liberdades antigas e franquícias”. Esse reconhecimento, explicável pelo maciço apoio brindado pelos londrinenses e pela presença física de muitos deles na reunião de Runnymede, se fez extensivo às “demais cidades, burgos, povoações e portos”. Outros artigos tratam dos direitos dos mercadores, que “poderão entrar na Inglaterra e sair dela sem sofrer dano e sem temor, e poderão permanecer no Reino e viajar dentro dele, por via terrestre ou aquática, para o exercício do comércio”. Idêntica garantia é concedida a “todo homem”, que “poderá deixar nosso Reino e voltar a ele sem sofrer dano e sem temor”.

A maior parte dos artigos têm como alvo a proteção das pessoas contra as arbitrariedades do poder, e é nesse aspecto – mesmo nas disposições mais conjunturais – que reside o caráter constitucional da carta, entendido esse caráter como a regulação das relações entre os cidadãos e, principalmente, a imposição de limites ao governo. O rei se obriga a desfazer as reformas abusivas, a limitar a atuação de seus prepostos e mesmo a dispensar os mais identificados com os abusos.

Mais genericamente, estabelece garantias à administração da justiça, indicando que, “por simples falta, um homem livre será multado unicamente em proporção à gravidade da infração [...] mas não de modo tão gravoso que se lhe prive de seu meio de subsistência” e que “nenhuma dessas multas poderá ser imposta sem a estimação de homens bons da vizinhança”. Já os duques e barões, podem ser punidos “unicamente por seus pares e em proporção à gravidade do delito”. A síntese é um artigo digno de qualquer moderna declaração de direitos humanos: “Nenhum homem livre poderá ser detido, encarcerado ou privado de seus direitos ou de seus bens, nem posto fora da lei nem desterrado ou privado da sua posição de qualquer outra forma, nem usaremos da força contra ele nem enviaremos a outros que o façam, senão em virtude de sentença judicial de seus pares e conforme à lei do Reino”.

Inseparável da proteção às pessoas era a proteção das suas propriedades, completamente exauridas pelo constante esforço de guerra. Assim, se estabelece: “Não se poderá exigir tributo nem auxílio em nosso Reino sem o consentimento geral, a menos que seja para o resgate da nossa pessoa, para armar cavaleiro ao nosso filho primogênito e para casar (uma só vez) a nossa filha maior”. Mesmo assim, “só se poderá estabelecer um auxílio razoável”. Novamente, a pena de Langton se evidencia a temperar as exigências dos barões. Quem senão ele conseguiria que eles estendessem a concessão aos seus próprios vassalos? Praticamente o mesmo texto é repetido para proibir que, quem quer que seja, “exija ajuda a algum de seus vassalos livres salvo para resgatar sua própria pessoa, para armar cavaleiro ao seu filho primogênito e para casar (uma vez) a sua filha maior”, limitando-se também a imposição a “uma ajuda razoável”.

Não podendo haver tributação sem o consentimento geral, impunha-se a necessidade de determinar como esse consentimento seria dado. Assim, para “obter o consentimento geral ao estabelecimento de um auxílio”, o rei deveria “convocar individualmente e por carta aos arcebispos, bispos, abades, duques e barões principais”. Embora não se trate, ainda, de um corpo orgânico e permanente, senão de uma convocatória “ad hoc”, fica estabelecida a base de um princípio geral: “Não há tributação sem representação”. Esse princípio será determinante de importantes sucessos posteriores, não apenas na Inglaterra como também nos Estados Unidos.

Para garantir “a paz e as liberdades outorgadas e confirmadas para eles pela presente Carta”, fica determinada uma representação integrada por vinte e cinco nobres, indicando que “Se Nós, nossa Justiça Maior, nossos agentes ou qualquer dos nossos bailios cometer algum delito contra um homem ou violar algum dos artigos da paz ou da presente garantia, e se comunicar o delito a quatro dos citados vinte e cinco barões, os informados virão perante Nós – ou, em ausência nossa do Reino, perante o Justiça Maior – para denunciá-lo e solicitar reparação imediata”.

Porém, garantia ainda mais extrema – explicável, somente pela quase absoluta falta de alternativas em que o rei se encontrava – é dada no trecho seguinte, que consagra, oficialmente, o direito de rebelião: “Se Nós, ou em nossa ausência do Reino, a Justiça Maior, não dermos reparação dentro dos quarenta dias seguintes, contados desde aquele em que o delito tenha sido denunciado a Nós ou a ela, os quatro barões darão traslado do caso ao resto dos vinte e cinco, os quais poderão usar de pressão contra Nós e atacar-nos de qualquer modo, com o apoio de toda a comunidade do Reino, apoderando-se dos nossos castelos, terras, possessões ou qualquer outro bem, exceto nossa própria pessoa e as da rainha e nossos filhos, até que consigam efetivamente a reparação que tenham decretado”. De fato, esse corpo de vinte e cinco notáveis se constitui no embrião da futura “House of Lords”. Já a câmara baixa teria que esperar ainda algum tempo.

Conhecedores do caráter traiçoeiro do rei, os rebeldes tentaram garantir-se, também, pelo próprio juramento da carta, incluindo nela a promessa de que o rei não tentaria “obter de ninguém, já por ação nossa, já por meio de terceiros, coisa alguma pela qual uma parte destas concessões ou liberdades possa ficar revogada ou diminuída. Se for conseguida coisa similar, será tida por nula e sem efeito e não faremos uso dela em nenhum momento, nem pessoalmente nem através de terceiros”. Porém, se acreditaram que esse juramento iria surtir efeito, foi uma demonstração de ingenuidade. Não haviam transcorrido dois meses e o rei já se encontrava recrutando novos mercenários e requerendo ao papa a anulação da carta sob a alegação de que todo o conflito derivara da sua submissão à Santa Sé. Declarou, ainda, estar disposto a partir como cruzado, mas não poder fazê-lo em virtude das restrições impostas pelo acordo.

Mais uma vez, ficou provado que seu faro político era bem superior ao seu caráter ou à sua capacidade militar. Sensibilizado pelas homenagens, o papa suspendeu Langton nas suas funções, excomungou os barões rebeldes e declarou a carta não canônica, nula e vazia. Langton chegou a viajar a Roma para oferecer a sua versão ao papa, mas não obteve nenhum resultado positivo. Animado pelo apoio pontifício, João Sem Terra carregou novamente sobre os rebeldes que, encurralados, não acharam melhor remédio que anunciar a deposição do rei, por ter violado a carta, e oferecer a coroa a quem mais interesses e possibilidades concretas poderia ter para vencê-lo: Luís, filho de Filipe Augusto, que, apesar de francês, era herdeiro potencial em razão do seu matrimonio com Branca de Castela, sobrinha do próprio João Sem Terra.

Mas, além de ferir os brios patrióticos, coroar um príncipe francês como rei da Inglaterra equivalia a colocar a raposa a cargo do galinheiro. Muitos dos partidários mais moderados de Langton optaram por distanciar-se dos rebeldes e alguns até passaram para as fileiras de João Sem Terra. Mas João não soube transformar esse apoio em vantagem militar. Antes, preferiu evitar o encontro frontal e apenas espalhar mercenários em incursões de devastação e pilhagem. Finalmente, pressionado pelas forças de Filipe Augusto, retirou-se para o norte, onde faleceu, em outubro de 1216.

Foi justamente a sua morte que possibilitou a reconstituição da nacionalidade. Seu filho – o futuro Henrique III – estava com nove anos de idade e não podia ainda governar, mas também não podia ser responsabilizado pelas arbitrariedades do seu pai, o que ajudou a esfriar os ânimos. William Marshall, conde de Pembroke, assumiu a regência e estabeleceu uma trégua com os rebeldes. Republicou a carta, com pequenas alterações, pacificou o país e – ainda com ajuda do papa, que reconheceu o direito de Henrique à sucessão – conseguiu desestimular as pretensões expansionistas de Filipe Augusto, chegando a vencê-lo militarmente em Lincoln, em 20 de maio de 1217.

Apesar da anulação papal, a Magna Carta foi confirmada novamente por Henrique III, já adulto, ao assumir pessoalmente o controle do reino, em 1225, e continuou a ser ratificada pelos soberanos posteriores. A carta de 1225 também diferia ligeiramente das versões anteriores mas, a partir desse momento, o texto parece consolidar-se, sendo confirmado sem emendas pelos monarcas posteriores, o que faz dessa publicação uma espécie de versão final.

O Lento Desenvolvimento do Parlamentarismo

Apesar das sucessivas ratificações, o Parlamento demorou a consolidar-se. A instituição, cujo nome deriva do francês “parler”, era mais uma das importações de normandos e angevinos e, durante muito tempo, foi mais um evento do que uma instituição permanente. A Magna Carta, ao instituir um corpo permanente de vinte e cinco barões, com alçada conjunta, suficiente para coagir militarmente o próprio rei, lhe dera – ao menos formalmente – um poder nunca antes imaginado, mas esse corpo – embora capaz de autoconvocar-se – não tinha um funcionamento continuado e pouco se diferenciava, na prática, da “curia regis” e outras instituições similares.

Ainda no reinado de Henrique III – que jurara a Carta mas não parecia muito disposto a cumprir com seu conteúdo –, mais uma tentativa de imposição arbitrária, levou a uma nova sublevação. Para garantir o trono da Sicília a um dos seus filhos, o rei comprometeu-se a pagar ao papa uma importante quantia que, obviamente, deveria ser aportada por seus vassalos. Os barões se negaram e, em 1558, forçaram-no a aceitar as Provisões de Oxford, obrigando-o a compartilhar o governo com um conselho de barões. A exemplo do seu pai, mal se viu em segurança, o rei repudiou o seu próprio juramento e, com aprovação do papa, empreendeu a guerra contra os barões. Após um breve período de hostilidades, o caso foi submetido à arbitragem de Luís IX, da França, que confirmou as pretensões de Henrique. A guerra civil estourou em 1264. Em 1265, o líder dos barões, Simão de Monfort, conde de Leicester, tentou ampliar a base da rebelião, convocando um Parlamento incrementado com representantes das diversas cidades. Essa representação seria a primeira presença concreta dos “commons” (não nobres) no governo da Inglaterra, mas foi uma tentativa efêmera. Pouco depois, o príncipe herdeiro, o futuro Eduardo I, vencia os barões em Evesham. Monfort morreu na batalha.

Em 1267, o príncipe conseguiu um acordo com os últimos barões rebeldes e, a partir desse momento, passou a governar, na prática, mesmo em vida do seu pai. Já coroado, desenvolveu uma ampla obra de pacificação, confirmando as cartas, reconhecendo que os impostos deviam depender do consentimento de todo o reino, combatendo à corrupção, limitando a jurisdição eclesiástica e o direito dos nobres possuírem suas próprias cortes de justiça, favorecendo a consolidação do “common law” e dando ao Parlamento características muito próximas da sua feição definitiva. Através do Estatuto de Winchester, organizou um sistema policial para proteger à ordem pública. Em 1291, instituiu o costume de credenciar advogados, permitindo que as partes fossem representadas em juízo por profissionais especialmente habilitados. Pelas suas grandes contribuições à organização do Estado, esse rei seria cognominado de “o Justiniano inglês”.

Até então, o Parlamento era uma forma de resistência à opressão, autoconvocada apenas em situações de crise, mas Eduardo I descobriu que podia usá-lo em proveito próprio. A breve experiência de Monfort não apenas indicava que a representação comunal podia ampliar a base de sustentação do governo, mas, por igual, que os “comuns” nem sempre compactuavam com os nobres e bem podiam ser utilizados para conter as suas pretensões. Em resumo, “dividir para reinar”. Em 1295, para enfrentar as críticas situações em Gales e Escócia, o rei convocou um parlamento que já continha todos os elementos básicos da instituição: bispos e abades, pares, dois cavaleiros por condado e dois representantes por cada cidade. É lembrado como “o Parlamento modelo”.

No século seguinte, o Parlamento passou a funcionar em duas câmaras, tal como acontece até agora, e foi ganhando uma influência sempre crescente, chegando a forçar a abdicação de Eduardo II e ratificar a de Ricardo II. Essa influência foi decaindo durante as dinastias de Lancaster e York, mas renasceu, subitamente, como resultado do conflito entre Henrique VIII e a Santa Sé.

A crise começara ao resolver o rei divorciar-se de Catarina de Aragão, que não lhe dera descendência masculina e colocava o reino em perigo de uma nova quebra dinástica. O casamento com Catarina, viúva do seu irmão Artur, só tinha sido possível por especial dispensa do papa. Para obter a anulação, o rei alegou que essa dispensa era inválida, por ser contrária ao direito canônico, mas o pontífice confirmou a validade da dispensa. Não havendo mais a quem apelar dentro da hierarquia católica, Henrique optou por consultar às universidades e os grandes líderes da Reforma, com resultados diversos: Zwinglio e Oecolampadius, acompanhados por oito das faculdades, consideraram o matrimônio nulo, mas outros, entre eles Lutero e Melanchton, o consideraram válido.

Na dúvida, Henrique optou por ser pragmático. Forçou o arcebispo de Canterbury a proclamar o seu divórcio, casou com Ana Bolena e, para ganhar apoio e controlar a crise, convocou o chamado “Reformation Parliament”, que declarou o rei e seus sucessores chefes supremos da Igreja da Inglaterra, daí em diante denominada “anglicana”. Sem fundamentos doutrinários ou teológicos que motivassem à reforma, essa igreja pouco se diferenciava do catolicismo e só nos reinados seguintes iria adquirindo características específicas. Politicamente, porém, o Parlamento se fortalecia e, dentro dele, o jogo de forças se inclinava em favor dos “comuns”, mais dispostos que a aristocracia a apoiar os desígnios do rei.


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