Junot protegendo a Cidade de Lisboa.

Exaltação alegórica de D. Pedro I
(gravura de J. B Debret)

  Memória
da Justiça Brasileira - 3
Capítulo 12

Os Tribunais Superiores

Não podia o recém-criado Império organizar, do zero, novos tribunais. Embora a estruturação vetusta das Relações coloniais exigisse urgentes reformas, era norma de bom senso, para evitar a anarquia, a manutenção em atividade dos tribunais existentes. Assim, o Art. 158 da Constituição determina: "Para julgar as Causas em segunda, e ultima instancia haverá nas Provincias do Imperio as Relações, que forem necessarias para commodidade dos Povos".

Essa redação tinha a vantagem de possibilitar a instalação de novos tribunais nas províncias onde ainda não existiam. Porém, nenhuma Relação foi criada no Primeiro Império, subsistindo apenas as quatro existentes no fim do período colonial, com jurisdições definidas da seguinte maneira:

Rio de Janeiro: Transformada pelo Império em "Relação da Corte", abrangia as províncias de Rio de Janeiro, São Paulo, Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais, Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul.

Salvador: A enorme jurisdição inicial, que abrangia todo o território brasileiro e – segundo algumas fontes – até certas regiões da África, após a instalação das Relações de São Luís (1812) e Recife (1821), viu-se reduzida às províncias de Bahia e Sergipe.

Recife: Exercia jurisdição sobre as províncias de Pernambuco, Alagoas, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.

São Luís do Maranhão: Compreendia o Maranhão, Piauí, Pará e Amazonas.

As Relações ganharam novo regulamento em 1833. Novos tribunais, só viriam a ser instalados em 1878, em que foram criadas as Relações de Porto Alegre, São Paulo, Mato Grosso, Ouro Preto, Goiás, Fortaleza e Belém.

O Tribunal Supremo

Não era possível, entretanto, conservar, no centro do poder do Império, uma estrutura tão obsoleta quanto aquela que D. João VI reproduzira "pelo almanaque". Diversos órgãos, criados muito tempo atrás em situações particulares dos respectivos períodos, integrando ou definindo precariamente suas jurisdições, complicavam as tramitações e limitavam a eficiência da estrutura judicial da Coroa.

O Desembargo do Paço e a Mesa da Consciência e Ordens já operavam, no Rio de Janeiro, como um só Tribunal, embora atendendo mais a considerações de economia e simplicidade de implantação que a uma procura deliberada de maior eficiência. Já a Casa da Suplicação, decorrente da adaptação da antiga Relação existente na cidade, até no nome era incompatível com o ideário predominante ao tempo da Constituinte.

Nada se indica no Projeto sobre este particular. Já a Constituição outorgada é bastante específica:

"Art. 163. Na Capital do Imperio, além da Relação, que deve existir, assim como nas demais Provincias, haverá tambem um Tribunal com a denominação de – Supremo Tribunal de Justíça – composto de Juizes Letrados, tirados das Relações por suas antiguidades; e serão condecorados com o Titulo do Conselho. Na primeira organisação poderão ser empregados neste Tribunal os Ministros daquelles, que se houverem de abolir".

Esse dispositivo constitucional seria regulamentado pela Lei de 18 de setembro de 1828, que instituiu o regimento do novo tribunal. Quatro dias depois, uma segunda lei extinguia – ao menos, formalmente – os antigos Tribunais. Na prática, porém, essa extinção iria demorar vários anos. A Casa da Suplicação só viria a encerrar efetivamente suas atividades em 1833.

Os primeiros ministros – 17 no total – foram nomeados por decreto de 19 de outubro. Em 8 de janeiro de 1829, o Supremo Tribunal de Justiça foi instalado, sendo no ato empossado o seu primeiro presidente, conselheiro José Albano Fragoso. Os ministros restantes tomaram posse no dia seguinte, exceto dois deles, que não puderam participar da solenidade e só viriam a ocupar seus cargos em 5 de maio e 2 de outubro desse mesmo ano.

O Art.164 da Constituição estabelecia as atribuições do novo Tribunal:

"A este Tribunal compete

I. Conceder, ou denegar Revistas nas Causas, e pela maneira, que a Lei determinar.

II. Conhecer dos delictos, e erros de Officio, que commetterem os seus Ministros, os das Relações, os Empregados no Corpo Diplomatico, e os Presidentes das Provincias.

III. Conhecer, e decidir sobre os conflictos de Jurisdicção, e Competencia das Relações Provinciaes".

O Regimento de 1828 define as causas em que seria admitida a revisão: "injustiça notória" ou "nulidade manifesta" do feito. Constatada uma dessas situações, o Tribunal não julgava o recurso. Apenas o encaminhava em revista para uma Relação distinta daquela em que o julgamento original acontecera. Se a revista fosse denegada, o processo voltava ao juízo de origem, e a parte era condenada nas custas.

Para ser efetivo, o recurso deveria ser interposto dentro dos dez dias da publicação da sentença. Entretanto, nas causas criminais, era permitida a interposição durante a pena ou depois de cumprida a sentença, se o réu alegasse não ter sido possível fazê-lo antes. No caso de falecimento da parte, os herdeiros adquiriam o direito ao recurso, que, nesse caso, devia ser interposto em até dez dias a partir da sentença de habilitação. Enquanto estavam sendo apreciadas, as revistas não suspendiam a aplicação das sentenças, exceto em causas criminais, quando a pena era de morte, degredo ou galés.

A Relação que iria efetuar a revista era determinada pelo STJ atendendo à comodidade das partes, que podiam concorrer ou serem convocadas no decurso do processo. Entretanto, ela nem sempre julgava em definitivo o mérito da questão. Nos casos de injustiça notória, devida à falta de provas, documentos ou diligências imprescindíveis ao esclarecimento do fato, os processos eram devolvidos à Relação de origem para nela prosseguirem após serem sanadas as causas das injustiças constatadas. Porém, não existindo, ou sendo sanadas essas carências, a Relação revisora podia julgar em definitivo. Quanto aos casos de nulidade manifesta, se provada, a própria Relação revisora declarava o processo parcial ou totalmente nulo.

Duas funções não contempladas na Constituição decorrem potencialmente da competência revisional do STJ: esclarecer a legislação e centralizar a jurisprudência. Entretanto, não há nenhuma alusão a elas na Constituição de 1824. O primeiro ponto seria sanado pela lei 2648, de 23/10/1875 e pelo decreto nº 6142, de 04/03/1876, que habilitaram o Tribunal a tomar assentos para a inteligência das leis cíveis, comerciais e criminais quando existirem dúvidas suscitadas por julgamentos divergentes, emanados do próprio tribunal ou das instâncias inferiores. Já a centralização da jurisprudência não chegou a ser regulamentada, ficando essa atividade seriamente prejudicada durante todo o período imperial.

Na segunda área de competência, era o STJ habilitado para julgar a responsabilidade dos seus próprios ministros, desembargadores das Relações, membros do Corpo Diplomático e presidentes das Províncias. À competência constitucional, a lei 609, de 18/10/1851, acrescentou o julgamento dos bispos e arcebispos, nas causas que não fossem meramente espirituais, sujeitas essas à alçada exclusiva da Justiça Eclesiástica.

Nas causas de responsabilidade, um ministro ordenava o processo, fazendo autuar as peças instrutivas e procedendo a todas as diligências, e o relatava em mesa, após o que eram escolhidos, por sorteio, três dos ministros para efetuar o julgamento. As sessões eram públicas apenas quando o indiciado estava preso ou o crime era afiançável. Caso contrário, apenas o sorteio era público, transcorrendo o resto do processo em segredo de justiça.

Além dos ministros, havia no Tribunal um secretário, formado em Direito, que escrevia em todos os processos e diligências; um oficial, que o substituía nos seus impedimentos; um porteiro, que também fazia as vezes de tesoureiro, e dois contínuos.

O Senado como Tribunal de Responsabilidade

Os mais altos estamentos do Império, tais como os ministros de Estado, deputados, senadores e os próprios membros da família imperial – o imperador, como já foi dito, era inimputável – estavam acima da jurisdição do STJ.

Nesses casos, o único tribunal competente era o Senado do Império, para tanto facultado pelo artigo 47 da Constituição:

"É da atribuição exclusiva do Senado

I. Conhecer dos delictos individuaes, commettidos pelos Membros da Familia Imperial, Ministros de Estado, Conselheiros de Estado, e Senadores; e dos delictos dos Deputados, durante o periodo da Legislatura.

II. Conhecer da responsabilidade dos Secretarios, e Conselheiros de Estado."

Essa atribuição exclusiva poderia fundamentar-se nas seguintes razões:

a) Sendo o Senado um colegiado, cada indivíduo poderia sustentar opinião diferente. Essa multiplicidade de pontos de vista acrescentaria objetividade às decisões.

b) Os senadores eram vitalícios, o que – ao menos em tese – os tornava menos dependentes das correntes políticas do momento.

c) A idade mínima de quarenta anos permitiria esperar decisões mais maduras e ponderadas.

d) Sendo os senadores indicados pelo imperador, constituíam o colegiado mais próximo do topo da pirâmide institucional.

O artigo 47 foi regulamentado pela lei de 15 de outubro de 1827, "Sobre a responsabilidade dos ministros e secretarios de estado, e dos conselheiros de estado". Nela se declarava taxativamente: "Para julgar estes crimes o senado se converte em tribunal de justiça" (Art. 20).

Até três anos depois de cometido o delito, qualquer cidadão poderia apresentar a denúncia que daria origem ao processo. Entretanto, as comissões de ambas as Câmaras eram obrigadas a denunciar, "dentro do prazo de duas legislaturas", todo e qualquer delito do qual tivessem conhecimento no desempenho dos seus trabalhos.

A apreciação da denúncia começava na Câmara dos Deputados, que deveria constituir para isso uma comissão especial, podendo, se necessário, produzir novas provas ou inquirir testemunhas.

Achando a denuncia atendível, a Câmara fixaria um prazo para o acusado dar resposta por escrito, após o qual tornaria o caso a ser examinado "pela mesma, ou outra commissão" para avaliar "se tem ou não logar a accusação".

Aprovado o parecer em plenário, a Câmara decretaria a acusação, remetendo uma via ao governo "para o fazer intimar ao accusado, e realizar os seus effeitos", e outra ao Senado "com todo o processo original". Os "effeitos" previstos – vigorando a partir do dia da intimação – eram os seguintes:

"1.º Ficar o accusado suspenso do exercicio de todas as funções publicas, até final sentença, e inhabilitado nesse tempo para ser proposto a outro emprego, ou nelle provido.

2.º Ficar sujeito á accusação criminal.

3.º Ser preso nos casos, em que pela lei tem logar a prisão.

4.º Suspender-se-lhe metade do ordenado, ou soldo, que tiver, ou perde-lo effectivamente, se não fôr afinal absolvido."

Todos os atos da Câmara seriam obrigatoriamente públicos, exceto nos casos "em que a publicidade e demora possão de algum modo ameaçar a segurança do estado, ou da pessoa do Imperador". Mesmo assim, "logo que cessar o perigo", a Câmara deveria formar "o processo publico, como fica prescripto."

No Senado, uma comissão de cinco a sete membros da Câmara faria a acusação, oficiando os senadores como juízes. Excetuavam-se, dentre eles, os que tivessem impedimentos tais como relação de parentesco ou causas pendentes com o acusado, bem como aqueles que devessem intervir como testemunhas no mesmo processo. Adicionalmente, o acusado poderia recusar, "sem declarar o motivo", até seis senadores, ficando todos os restantes incumbidos do julgamento.

O acusado podia comparecer "por si, ou seus procuradores e advogados, ou outros quaesquer defensores por elle escolhidos". Se, estando preso, quisesse assim mesmo comparecer pessoalmente, se oficiaria ao governo "para o fazer conduzir com decencia e segurança". No caso de revelia, o próprio Senado nomearia um advogado, devendo, paralelamente, enviar ao réu "cópia do libello e de todas as mais peças da accusação".

As testemunhas seriam juramentadas e inquiridas publicamente "depondo, porém, em separado e fóra da presença uma das outras". Se necessário podiam ser "acareadas e reperguntadas". Os debates entre a comissão acusadora e o accusado ou seus procuradores, advogados ou defensores deveriam ser verbais, sendo permitido unicamente ao acusado fazer alegação escrita "por si, seus procuradores, advogados e defensores".

Concluídas a acusação e a defesa, reunir-se-ia o Senado, em sessão secreta, para discutir o objeto da acusação. A votação deveria ser pública, porém, "não voltando a commissão accusadora para a sala do senado, nem procuradores, advogados e defensores do réo, retirando-se este para logar e distancia, em que não possa ouvir sua sentença".

O julgamento pelo Senado era em última instância, não havendo recurso algum, "senão o de uns unicos embargos oppostos pelo réo dentro no espaço de 10 dias". Os embargos seriam apreciados pela Câmara dos Deputados, que, à vista das alegações ou provas que fossem acrescentadas, poderia – também em votação pública – manter, modificar ou reformar a sentença do Senado. Caso a Câmara não decidisse em definitivo pela absolvição, ou modificação da sentença, deveria oferecer embargos à consideração do Senado, que, à vista das argumentações apresentadas, decidiria por confirmar ou alterar a própria decisão.

Sendo a sentença absolutória, ela produziria, imediatamente, "a soltura do réo, estando preso, e a sua rehabilitação para ser empregado no serviço publico". Sendo condenatória, a sentença seria remetida ao governo para que providenciasse a sua execução.


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