Vítimas de um combate entre holandeses e portugueses.
(Detalhe de um ex-voto existente em Recife, na Igreja de Nª Sª da
Conceição dos Militares ) |
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Memória da Justiça Brasileira -
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Capítulo 13
Justiça de
Guerra |
Como era a vida, na Bahia, nos meses que se
seguiram à invasão? Embora a documentação oficial continui sendo escassa,
abundam as informações testemunhais. A história é feita mais a partir das
exceções do que das regras, e a situação atípica da Bahia não podia deixar
de provocar os mais diversos registros. Por eles sabemos que a divisão
entre holandeses e portugueses não era tão clara como poderia parecer.
Numerosos mercenários franceses, alemães e, até, alguns portugueses,
integravam as tropas invasoras. Do outro lado, negros e índios faziam
parte insubstituível do bloco português. Negros, aliás, existiam dos dois
lados. Na sua fuga, os habitantes deixaram na cidade grande número de
escravos, que acabaram engrossando o bando invasor. Não temos registros
detalhados mas não é improvável que outros fugissem aos seus amos,
procurando refúgio entre os holandeses, principalmente durante os
primeiros meses da ocupação.
Mas o que relativiza profundamente a
avaliação do período é que a Holanda procurou, desde o começo, a
integração dos portugueses à nova ordem. Logo após a rendição da cidade,
as autoridades convocaram os moradores prófugos, garantindo-lhes plenos
direitos e liberdade de culto e consciência. Magro oferecimento seria este
para os cristãos, acostumados ao pleno e público exercício da sua
religião, mas era, com certeza, uma opção muito convidativa para os
"cristãos novos", judeus mal disfarçados, conversos pela força e
permanentemente expostos à ameaça da Inquisição. Segundo Braz do Amaral,
pelo menos duzentos dos antigos moradores aceitaram o chamado. Em geral,
foram bem tratados. Frei Vicente, testemunha ocular por ter ficado preso
na cidade, diz que o governador Van Dorth "era homem pacifico, e se
mostrava pesaroso do dano feito aos portugueses". Aos prisioneiros
"davam ração como aos seus de pão, vinho, azeite, carne, peixe cada
semana; e as obras que lhe faziam alguns que eram alfaiates e sapateiros,
e camisas que as mulheres faziam pagavam muito bem". Não punham
empecilho em "confessar os portugueses, em forma que nem um morreu sem
confissão". Dos prisioneiros, "a todos os que se quiseram ir deram
licença, e três navios em que se foram, um pera Pernambuco e dois pera o
Rio de Janeiro, nos quais foram trezentas pessoas".
Mesmo fora da cidade, não faltavam
portugueses que dessem apoio aos invasores. O escrivão dos agravos, que
possuía uma casa de campo, recebia nela regularmente aos militares
holandeses. Vários deles chegaram a casar ou amasiar com portuguesas,
entre outros o coronel Wilhelm Schouten, que sucedeu a Van Dorth no
governo. Fora as mulheres e filhas de moradores que retornavam
espontaneamente, duas degredadas chegaram de Portugal num navio desavisado
da situação. Já estabelecido o arraial do bispo, dele saiu uma mulher
"fugindo a seu marido, com uma filha formosa, que o coronel casou com
um mercador holandês". Provavelmente esse mercador foi o
"secretário dos caixeiros e assistentes dos mercadores, de nome
Hass", mencionado por Aldemburgk.
O que levava os portugueses a confraternizar
em tal medida com os invasores? Certamente, tratava-se de uma identidade
nacional muito abalada. Divididos por diferenças de raça e de religião,
submetidos às arbitrariedades dos seus próprios compatriotas, súditos de
um rei estrangeiro que não conhecia Portugal, nem Brasil, e, ainda,
envolvidos involuntariamente nos conflitos internos e externos do império
espanhol, os portugueses da Bahia tinham bem pouco a defender. Por sua
parte, os holandeses dificilmente conseguiriam estabelecer um domínio
permanente nos territórios conquistados, sem garantir, tanto quanto fosse
possível, a paz com os moradores. Os nomes dos que contemporizaram com os
invasores foram procurados, após a reconquista, mas os chefes holandeses
se negaram a revelar qualquer informação a seu respeito.
Um estranho personagem chegou também num
navio desprevenido. Tratava-se, conforme a narração de Aldemburgk, de
"um vice-rei, que durante sete anos, governara os vice-reinos do Chile
e do Peru, do Rio da Prata ao Estreito de Magalhães". Não era, na
verdade, mais do que o corregedor de Potosi, D. Francisco Sarmiento.
Inicialmente tomado por vice-rei, deve ter percebido, astutamente, que lhe
seria útil sustentar o erro de seus captores e "pediu para ser tratado
conforme convinha ao seu cargo". Ficou hospedado, como prisioneiro
particularmente ilustre, em casa do coronel Albert Shouten.
Mas não se suponha que a justiça entre os
holandeses fosse fraca ou permissiva. Mesmo os seus próprios soldados eram
rigorosamente castigados pela menor quebra da disciplina. Dois deles foram
condenados à forca, em setembro, por terem roubado garrafas de vinho, e
outro porque, estando de guarda, os deixara passar. Por causas diversas,
onze homens foram "punidos com a estrapada" e três "com três
horas de potro". Outro, "que puxara da espada contra o seu
sargento, foi arcabuzado". À mesma pena foi condenado um sentinela que
dormiu em serviço, mas foi perdoado no último instante. Mais dramática
ainda foi a experiência do sentinela que deixara passar os ladrões de
vinho. Estava já sendo enforcado quando a corda se partiu, caindo o
condenado ao chão e encontrando assim um perdão absolutamente inesperado.
Este costume parece corrente à época. Ainda em tempo dos portugueses,
outro condenado passou por experiência similar, sendo recolhido pelos
irmãos da Misericórdia que reivindicaram o seu perdão, atribuindo o
acidente à vontade de Deus. Existe, entretanto, uma exceção, registrada
por Frei Vicente do Salvador. Durante o governo de Mem de Sá - que era
letrado - três cordas se partiram, sucessivamente, no pescoço de um
condenado, que foi perdoado após a intervenção dos irmãos da Misericórdia.
O governador, desconfiando da honestidade dos executores, mandou repetir o
enforcamento, sem solenidades, na porta da cadeia. Dessa vez, a corda
resistiu.
Problema difícil, especialmente durante os
últimos meses da ocupação, quando a cidade, já isolada, faltando armas e
até alimentos, esperava o socorro da Holanda ou o cerco definitivo pelas
tropas espanholas, era a conservação da disciplina. As condições eram
desesperadoras. O dique, por eles construído em volta da cidade para
servir de defesa, transformou-se numa ameaça ao ser invadido pelos
jacarés. Sucuris e outros animais igualmente perigosos e desconhecidos
para os invasores aguardavam, do outro lado, a quem se atrevesse a sair a
procura de comida. Portugueses e índios montavam guarda em todas as
saídas. A fome obrigou a comer os gatos que, longe de serem "bichinhos de
estimação", eram importados de Portugal por causa dos ratos. Estes, sem
controle, começaram a proliferar perigosamente, obrigando o governo a
proibir severamente a caça dos úteis felinos. Tornava-se imprescindível
evitar o caos e as deserções, especialmente entre os mercenários de outras
nacionalidades que além de sentirem um menor grau de compromisso com o seu
exército, teriam menos a perder, passando para o bando contrário. Assim,
um irlandês que arrombou "o paiol de pólvora, junto à igreja nova",
foi punido por três vezes com a estrapada. Mais grave foi a tentativa de
um português que, preso em Angola, acabara se unindo aos holandeses. Em
combinação com um grupo de franceses, resolveu botar fogo na pólvora e
fugir da cidade. Presos e "postos a tratos", acabaram confessando e
foram publicamente enforcados. Mas a execução mais incomum não foi de
ordem militar nem política. Uma negra "que tinha assassinado a vários
negros e aos seus filhos [...] foi afogada dentro dum barril
d’água, em plena praça pública".
Os negros foram, em geral, bem tratados.
Aldemburgk chegou a compadecer-se deles, chamando-os de "pobre
gente" e admirando-se de ver como os portugueses os vendiam "como
se fossem animais irracionais". Muitos deles foram admitidos e
organizados em brigadas, lideradas por outros negros. Um deles, o capitão
Francisco, chegou a ser célebre até entre os seus inimigos e morreu
enforcado logo após a reconquista.
Mas nem por isso se deve pensar que o
tratamento fosse igualitário. O escravo de um serralheiro que, talvez em
revanche de muitas atrocidades já sofridas, cortou a cabeça do seu amo e a
levou ao coronel Van Dorth, foi mandado enforcar, considerando que
"quem fizera aquilo ao seu senhor também o faria a ele, se
pudesse". Em outra oportunidade, "devido não só à escassez de
víveres como ainda a haver deles negros em demasia na cidade",
embarcaram cinqüênta para trocá-los "por bois, galinhas, porcos e
frutas". Rejeitada a oferta pelos portugueses, os negros foram
abandonados numa ilha e o navio retornou à cidade.
Não são poucas as menções a portugueses
investigados ou punidos por espionagem ou tentativa de sabotagem.
Inicialmente, a saída era permitida mediante salvo condutos, mas, em julho
de 1624, encontraram-se nos bolsos de um português que saía "pólvora e
balas, pelo que ficou detido". Outro português, "que falava a
língua flamenga", e também possuia salvo conduto, com o qual saía e
entrava à vontade, foi preso com um irmão e um escravo negro, sendo
encontrada, em baixo do forro do seu chapéu, "uma carta, em que Sua
Senhoria [o bispo] mandava perdão aos rebeldes, que se quisessem
sahir". Presos e torturados, fizeram "de tudo plena e franca
confissão perante o Conselho Secreto, declarando terem sido induzidos a
tal procedimento por influência dos padres de sua religião, os quais lhes
haviam assegurado terem todos acesso ao céu, na qualidade de
mártires". Foram enforcados no cadafalso que, para esse tipo de
execuções, fora montado junto à porta de São Bento e, à noite, conduzidos
fora dos muros em pendurados"em uma picota por cadeias de ferro, e em
cima a sentença escrita em pergaminho".
A Justiça, em pé de guerra, evidenciava-se,
assim, como um meio de intimidar. De um e outro lado, os combatentes
competiam em recursos para produzir o terror nos seus adversários.
Dificilmente um holandês sobrevivia em mãos dos sitiadores. Considerando
"que não se podia esperar clemência dos portugueses", os
prisioneiros que restavam foram conduzidos fora dos muros e, amarrados uns
aos outros, arcabuzados sumariamente. A partir desse momento, os inimigos
capturados eram imediatamente entregues aos negros. Aldemburgk descreve
duas dessas execuções. Na primeira, os negros "despiram-nos e começaram
a afiar nas pedras as suas longas facas de abordagem, com as quais
trucidaram a um dêles, quando o outro começou a falar em holandês, dizendo
ser natural da Zeelândia, pelo que foi poupado". Na segunda, os negros
"urrando de júbilo e dançando a seu modo, [..] mandaram que o
português corresse e sairam no seu encalço, desfechando-lhe continuas
cutiladas, ora na cabeça, ora em outras partes do corpo, até que, de todo
combalido, tombou em terra, onde o crivaram de estocadas, e o acavaram
como o gato ao rato".
Não era mais piedoso o trato que os
portugueses dispensavam aos seus prisioneiros. Ao contrário dos
invassores, os portugueses parecem ter usado de extrema crueldade, mesmo
desde o início do conflito. Talvez em razão da sua situação de
inferioridade e da precariedade das suas instalações, que,
previsivelmente, não deviam oferecer locais seguros onde reter os
prisioneiros, praticamente todos os inimigos encontrados eram mortos na
hora. Sabemos apenas de alguns casos em que, presos e conduzidos ao
acampamento, "tiveram quartel por intercessão do bispo".
Os combates, isolados, rápidos e
imprevistos, terminavam geralmente em morte e mutilação. O corpo de Van
Dorth, surpreendido fora da cidade por Francisco Padilha, foi recuperado
por seus homens, minutos depois do ataque, "já ambas aquelas partes
mutiladas, com falta dos narizes, orelhas, mãos e outras porções mais que,
ou os portugueses conduziram em grande triunfo ao seu acampamento, ou os
selvagens devoraram". O detalhe da mutilação, omitido por alguns
narradores portugueses, é confirmado por Frei Vicente, embora atribuindo-a
aos índios que acompanhavam a Padilha. O fato não podia, no entanto, ser
atribuido a um desmando acidental, acontecido ao calor da luta, posto que,
em outra ocasião, vários soldados foram mortos "cortando-lhes as
línguas ao nível do pescoço e mutilando-lhes de outras maneiras os
corpos". O episódio mais selvagem é também atribuído a Padilha. Um
negro, dos que colaboravam com os holandeses, foi enviado a eles depois de
lhe terem "decepado ambas as mãos e [...] distendido as partes
pudendas até os joelhos". Padilha mandou através dele "um escrito
pendurado ao pescoço, em que desafiava o capitão Francisco", quem,
como já foi apontado, era o chefe mais destacado entre os esquadrões de
negros a serviço dos holandeses. Aldemburgk conseguiu sintetizar,
eficazmente, o horror desta diabólica guerra-santa, ao escrever que
"sub polo antarctico, o inimigo [...] a ninguem dá
trégua, muito pelo contrário, a todos persegue com o fogo de
Santo Antonio e os cordões de São Francisco, esquartejando os
prisioneiros e lançando-os ao mar, atados dois a dois pelas
costas".

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