Restituição simbólica da Bahia ao rei Filipe II, de Portugal (Felipe
III, da Espanha).
(Detalhe do óleo de Juan Bautista Maino) |
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Memória da Justiça Brasileira -
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Capítulo 14
A
Reconquista |
Não só os jesuítas da Bahia atribuíram a
invasão à ira de Deus. Em 20 de setembro de 1624, já cientificada a Coroa
da perda da Bahia, ordenou "castigar com igualdade e demonstração"
os "peccados publicos escandalosos". A medida visava "aplacar, e
ter mão no rigor de sua Divina Justiça, para que levante o castigo, e
disponha para maior serviço seu, bem commum da Igreja Catholica e de meus
Reinos e Vasallos, o fim de meus intentos, e particularmente esta empresa
de socorro do Brazil". Salvas as distâncias, a situação não difere
muito do mítico sacrifício de Ifigênia, embora optasse por oferecer, ao
invés de uma virgem, uma multidão de inocentes pecadores que tinham tanta
culpa na perda do Brasil, como a princesa grega na guerra de
Tróia.
Mas, a Dios rogando y con el mazo
dando, Felipe IV começou logo a preparação da esquadra que deveria
reconquistar a capital do Brasil e, principalmente, garantir a segurança
do resto dos seus domínios. A Bahia não era ainda muito importante em
termos econômicos mas constituía um ponto estratégico, a partir do qual os
holandeses poderiam atacar outras possessões portuguesas na América e
África. Uma grande armada foi constituída com forças de Portugal, Espanha
e Nápoles, reino que também respondia, desde os tempos de Carlos V, ao
trono espanhol. Quanto à Justiça, Felipe IV ordenou "que se averiguem
os procedimentos que no caso tiveram o Governador Diogo de Mendonça
Furtado, os Capitães e Officiaes da Milicia, e todas as mais pessoas que
se achavam na dita Cidade e a desampararam quando os rebeldes a
entraram". Mandou, então, escolher: "uma pessoa de muita confiança,
que inquira com muita especulação o que tem passado no negocio, porquanto
parece que nas que ha no Brazil poderá haver algum impedimento na
liberdade com que se deve fazer esta diligencia". A incumbência foi
dada, aparentemente, ao licenciado Antonio Rodrigues de Figueiredo,
ouvidor geral da Armada, fazendo-lhe mercê de que, "embarcando-se elle
nesta jornada do Brazil, e servindo nella com satisfação, seja provido de
um logar de Desembargador Extravagante da Casa do Porto [...] e se
falecer na jornada, haja sua mulher a tença que se costuma dar ás mulheres
dos Desembargadores".
Como era habitual, concedeu-se perdão aos
delinqüentes que assentassem praça perante D. Pedro de Menezes, que estava
alistando tropas em Coimbra. Também no Brasil, Matias de Albuquerque
ofereceu perdão aos que se alistassem para a guerra de reconquista,
suspendendo todos os processos e liberando os detidos para engrossar as
tropas. A Relação, considerando que o capitão não tinha alçada para tanto,
recusou-se a obedecer e mandou prender novamente os delinqüentes
liberados. Mais uma vez, o conflito de jurisdição foi terminar em Lisboa,
mediante um alvará de 7 de abril de 1626, que confirmou os perdões
outorgados por Albuquerque. Mas não foi o único caso em que esta
capacidade ficou em dúvida. Apenas um mês depois, em 12 de agosto, "foi
estranhado que o Desembargo do Paço tivesse concedido perdões de
commutações de degredos e outras condemnações para as Armadas, não podendo
o mesmo Tribunal perdoar, sem preceder consulta". Ora, se o Desembargo
do Paço não podia perdoar sem consulta, resulta evidente que a confirmação
das decisões de Albuquerque obedecia mais a critérios políticos ou
militares do que jurídicos.
Logo após a recuperação da cidade, D.
Fadrique de Toledo Osório, capitão-geral das forças de reconquista,
começou a "tratar dos negocios da justiça que Vossa Majestade me
encarregou, e castigo dos culpados". A despeito da provável nomeação
de Rodrigues de Figueiredo, quem consta como encarregado pelo almirante de
levar adiante essa tarefa é o auditor-geral do Exército, D. Jeronimo
Quesada de Salorzano, que deveria providenciar "a averiguação e castigo
dos culpados na perda da cidade [...] executando a sentença que
para isso é correspondente". O auditor "percorreu as ruas com uma
forte escolta escolhida e, de accordo com as ordens do bando, foram
enforcados summariamente diversos soldados encontrados saqueando".
Depois, já com mais calma, dedicou-se à procura de responsaveis. Parece
que os nomes dos moradores que retornaram à cidade a convite dos
holandeses constavam numa lista, que foi afanosa e inutilmente procurada
por Salorzano. Mesmo assim, quatro portugueses e dois negros foram,
segundo Frei Vicente, julgados e executados. Outras fontes mencionam cinco
portugueses, acrescentando que se tratava de christãos-novos, e
mais alguns índios. Aldemburgk, que, de todas as testemunhas, é quem mais
detalhadamente registrou as execuções, informa que "foram enforcados,
vestidos de hábitos brancos de frade, no campo verde, junto ao colégio dos
jesuítas". Dois soldados espanhóis, vindos da Holanda com a frota
invasora, "tiveram a mesma sorte". O capitão Francisco e outros
oficiais negros "foram enforcados em lugar particularmente horrível, e,
depois de mortos, esquartejados, sendo seus despojos expostos nas ruas,
pregados em postes".
Alguns portugueses aproveitaram a
efervescência da situação para pedir a Toledo Osório que "uma vez que
haviamos [os holandeses] espoliado a sua terra e obrigado a S. M.
El-Rei de Espanha a tamanhas despesas, [...] os autorizassem,
tendo-nos assim inermes em seu poder, a queimar-nos com os navios ou a
trucidar-nos por outra qualquer forma". D. Fadrique, fazendo gala do
mais puro honor militar, "declarou que, de preferência, faria restituir
as armas aos prisioneiros e os colocaria em campo aberto, onde então
poderiam ir exterminá-los".
Na verdade, os direitos dos vencidos foram
rigorosamente respeitados e, após os acertos necessários, todos os
prisioneiros foram embarcados para a Holanda, podendo, após a saída da
Bahia, obedecer aos seus mandos naturais. Estes, "recobrado a
atribuição de empunhar a espada da justiça", condenaram à morte quatro
dos seus subordinados, que foram estrangulados "num poste a bordo do
navio do coronel Ernst Kiff [...] e, depois de mortos, foram
lançados ao mar com pedras e pelouros ao pescoço". Finalmente,
chegando à Holanda, os próprios oficiais foram julgados e "sentenciados
a morte por se haverem entregues a partido tão cedo com a cidade". No
entanto, atendendo aos rogos de "mulheres, filhos e parentes" e à
"muita tardança do seu socorro", foram perdoados, "condenando-os
sòmente em que se lhes não pagassem os soldos que se lhes
devia".
Esse conturbado período da história baiana
culminou com uma cerimônia digna do clima de fanatismo religioso que guiara
a contenda. Em 5 de maio de 1625, recuperada a cidade, após um ano de
ocupação, a Sé de Salvador foi desviolada. "Dois coroneis e
outros capitães que ali estavam sepultados" foram exumados e enterrados
em chão não consagrado. Depois, "mandaram açoitar e fustigar pelos
frades os púlpitos dos quais tinha pregado o sacerdote neerlandês".
Parece, para nossos critérios, uma justiça bastante estranha, mas era
característica daqueles tempos, tempos em que se castigava em efígie,
e em que animais e até objetos eram punidos por supostas culpas.

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