Pátio da Bolsa de Amsterdam, importante centro de decisões durante
a guerra entre Holanda e Portugal.
(Detalhe de um óleo de Berck) |
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Memória
da Justiça Brasileira - 1 |
Capítulo 15
O Perigo Continua
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A euforia da reconquista não durou muito.
Além da entrada da baía, uma grande esquadra vinha em socorro dos invasores.
Chegaram tarde. A cidade estava já recuperada. Prudentemente, os navios
recuaram, poupando-se para outros encontros.
Começava uma época especialmente dura. Fora
os esforços para a reconstrução da cidade e os engenhos destruidos, impunha-se
a rápida fortificação dos pontos mais desprotegidos para afrontar as novas
tentativas que, sem dúvida, seriam feitas tão logo a Holanda recompusesse
as suas forças. Uma importante guarnição foi deixada na cidade, motivando
irados protestos por parte da população, que via cair sobre as suas espáduas
o peso da manutenção desses efetivos. Novos impostos foram instituídos,
e diversos setores do Estado foram reduzidos para sustentar o esforço
de guerra. A Justiça, já de longo tempo considerada prescindível pela
classe militar, foi uma das primeiras instituições a cair na mira dos
redutores de despesas. Em 5 de abril de 1626, um alvará de Felipe IV mandou
"tirar a Relação do Estado do Brazil, e que a Consignação dos Ordenados
dos Ministros e Officiaes della se aplique ao Sustento do Prezidio da
gente de guerra da Bahia de Todos os Santos".
Não poucos se beneficiaram com essa disposição.
Poderosas vozes - entre elas, a do próprio governador, Matias de Albuquerque
- alçavam-se para questionar as decisões da Ralação, embora não ousassem
duvidar explicitamente da sua legitimidade institucional. Mas o primeiro
tribunal do Brasil não iria desaparecer sem polêmica. Anônimos defensores,
"moradores da Bahya", atribuiam a extinção a "falsas informações
e papéis assinados por pessoas apaixonadas e criados de fidalgos"
e, lembrando os tempos anteriores à sua instalação, queixavam-se de que,
num estado "governado p hu governador e ouvidor geral elles são os
Reys e não somte elles mas os Bpo’s donatarios e poderosos, procedendo
em tudo com poder absoluto".
Apesar dos protestos, a regressão às condições
anteriores a 1609 estava já definida. Resultava, certamente, bastante
econômico reduzir os vultuosos proventos de dez desembargadores ao de
um simples ouvidor geral e, não ousando extinguir o cargo de provedor-mor
dos defuntos, parecia lógico acumular ambas as responsabilidades nos ombros
do ativo Antão de Mesquita, o único membro da Relação que deveria ficar
no Brasil. A Coroa respondeu, no entanto, que o magistrado "não poderá
acudir a tantas obrigações, nem ficar aquelle Estado, se elle faltasse,
sem quem lhe administre Justiça". Mandava, assim, indicar, "dos
Desembargadores que ha no Brazil", um mais apto para ficar com ele.
A escolha recaiu em Diogo de São Miguel Garcez, "Ministro de que se
tem satisfação" e que, até a extinção do órgão, vinha ocupando aquele
cargo. Por sua parte, Mesquita já ocupara o de ouvidor geral antes de
ser chanceler, pelo que a escolha de ambos privilegiava claramente a experiência
nas respectivas funções.
Antão de Mesquita ficou até 1628, sendo substituído
por Paulo Leitão de Abreu, que recebeu o regimento correspondente em 14
de abril. A principal inovação foi a instituição explícita de turmas julgadoras
ad hoc, semelhantes às que, mais ou menos informalmente, funcionavam
antes do estabelecimento da Relação. Seria protegida por esta via a lisura
do processo das condenações à morte, que seriam apreciadas conjuntamente
pelo governador, o ouvidor geral e o provedor-mor dos defuntos e aprovadas
por "dous votos conformes". O regimento procurava também garantir
a independência do magistrado, advertindo ao governador geral que "se
não entremetta nas materias de Justiça" e proibindo-o de suspender
ou destituir o ouvidor geral sem ordem explícita da Coroa.
Novo regimento foi outorgado, em 2 de abril
de 1630, ao novo ouvidor geral, Jorge da Silva Mascarenhas, quem, mais
uma vez, passou a acumular os cargos de "Ouvidor Geral das partes do
Brazil e Auditor da gente de guerra do Prezidio". Deveria ficar por
três anos, destinando o último a percorrer as diversas capitanias "procedendo
nesta visita na forma em que o fazem os Corregedores das Commarcas deste
Reino". Mas o acúmulo mais surpreendente é o do cargo de juiz dos
feitos da Coroa. O regimento lhe concede, neste aspecto, atribuições iguais,
frente à Justiça eclesiástica, às que exercitavam os juízes da Casa da
Suplicação. Punha-se, assim, - contrariando a limitação de alçada estabelecida
em 1611 - um limite às "vexações" decorrentes das censuras dos
ministros eclesiásticos "de que alcançam tão tarde recurso, por se
valerem de remedio do Reino". Também neste caso - provavelmente para
diminuir a oposição da Igreja - a eqüidade do processo seria garantida
por uma turma julgadora, devendo o governador escolher, para julgarem
junto ao ouvidor geral, "duas pessoas que lhe parecessem de mór sufficiencia,
sendo uma dellas, para mais justificação, sempre Ecclesiastica". Ficava,
assim, explícita a consciência de que os julgamentos de maior responsabilidade
deveriam ser feitos por orgãos pluripessoais. Apesar disso, a Relação
não seria restabelecida até 1654.

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