Ruinas da Sé de Olinda, incendiada pelos holandeses.
(Detalhe de um óleo de Franz Post) |
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Memória da Justiça Brasileira -
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Capítulo 16
De Olinda a
Olanda |
"De Olinda a Olanda não há mais que
a mudança de um i em a, e
esta vila de Olinda se há de mudar em Olanda e há de ser abraçada
pelos olandeses antes de muitos dias; porque pois falta a justiça da
terra há-de acudir a do céo", vaticinava Frei Antônio Rosado
pouco antes da invasão de Pernambuco. Sem discutir a certeza da
profecia, não era imprevisível que os holandeses tentariam, mais
cedo ou mais tarde, pôr as mãos na cobiçada capital do açucar. Assim
o fizeram, finalmente, em 17 de fevereiro de 1630, instalando um
governo provisório que durou onze semanas. Depois, a onze de março,
assumiram os seus postos o Conselho supremo e o primeiro governador
designado. Desenvolviam, respectivamente, funções semelhantes às que
a Relação e o governador da Bahia tiveram até 1627. Ambos os poderes
tinham, conforme os conceitos atuais, atribuições mistas, primando,
no governador, as executivas e militares, e, no Conselho, as
legislativas e judiciárias. A atividade legisferante era, no caso
dos holandeses, bastante mais intensa e autônoma que a observada no
Brasil português.
O Conselho era a máxima autoridade da
colônia. O próprio governador fazia parte dele, mas votava em
segundo lugar. Apesar disto, não estava diretamente subordinadoa
ele, dependendo o governador dos Estados Gerais e o Conselho, da
Assembléia dos Dezenove e da Companhia das Índias Ocidentais, emora
todos eles obedecessem ao principado de Orange, líder da luta
independentista contra Espanha. Governador e Conselho podiam
diferir, controlar-se mutuamente e, até, entrar em conflito, mas o
Conselho reconhecia no governador a primazia em assuntos militares,
reservando para si as funções legislativas e judiciárias, parte das
quais delegava, no âmbito municipal, às câmaras de escabinos.
Os Schepenen ou escabinos eram
magistrados não remunerados, que constituíam câmaras municipais
presididas por um Schout, ou esculteto, todos eles escolhidos
entre os vizinhos pelo Conselho Supremo. "Nos casos ordinários, a
justiça era administrada, tanto nas cidades como nas aldeias, pelos
escabinos [...] e para tal fim se nomeavam sete e às vezes
oito, com a diferença, porém, de que nas cidades os escabinos
conhecem indistintamente de todas as causas, não somente cíveis e
comuns mas criminais". O esculteto, além de presidir as sessões
da câmara, "executa os mandados dos juizes, convoca a Corte
Criminal, recolhe os votos, sustenta os direitos do país nas causas
publicas e atua como promotor e inquiridor nos processos
crimes".
À medida em que a colônia crescia e se
tornava mais complexa, também o Conselho cresceu, sofrendo diversos
desdobramentos. Originalmente constituído por três membros, passou a
ter cinco em 1634. Já em 1637, a vinda de Maurício de Nassau
significou uma profunda reforma na colônia. Designado não apenas
governador de Pernambuco mas, também, capitão e almirante geral das
conquistas do Brasil, dotado de atribuições muito superiores às de
seus antecessores, chegou como um reformador, encarregado de
transformar uma simples dependência comercial e militar num estado
organizado e poderoso. A esse efeito, foi acompanhado por três
assessores diretos, dois deles ex-membros do Conselho Supremo. Eles
formariam o Conselho Secreto, uma divisão do anterior destinada
especificamente a partilhar das decisões de Nassau. Daí o órgão, em
conjunto, ser mencionado como Conselho Supremo e Secreto.
Outra instituição surgida nesse
período é o Senado Político, mais tarde chamado Conselho de Justiça.
Constava de treze membros, depois aumentados para dezessete, e
estava incumbido de "tutelar os direitos dos cidadãos, presidir
os processos capitais e pecuniários e decidir, em grau de apelação,
as causas, segundo o direito romano e o costume de Holanda". Os
aspectos monetários eram fiscalizados pela Câmara das Contas "que
administra o erário da Companhia e examina as contas publicas, bem
como as do fisco". Essa câmara era integrada por cinco membros,
entre eles dois tesoureiros, sendo todos eles, em geral, ex-membros
do Conselho de Justiça.
Conforme os projetos de Nassau, a nova
colônia crescia, adquirindo aspectos de estado permanente. Em 1638
foram desenhadas as armas que identificariam heraldicamente o Brasil
holandês. Nassau deu os lineamentos gerais e o Conselho Supremo
encaminhou o rascunho à Assembléia dos Dezenove, solicitando que
"se elas agradarem queiram mandar abri-las em prata, em ponto um
pouco maior do que o desenho, e nó-las enviem". Os rascunhos
incluíam, além das armas das câmaras, os selos do Conselho Supremo e
do Conselho de Justiça. O primeiro consistia num escudo aquartelado,
contendo "as armas das quatro capitanias, [..] tendo por
cima do coroamento as armas dos senhores Estados Gerais, a que se
prende o distintivo da Companhia das Índias Ocidentais, cercadas por
uma grinalda de flores e folhas de laranjeira". As armas de
Pernambuco, contidas no escudo, consistiam em "uma donzela, que
contempla admirada a sua beleza em um espelho, o que expressa a
amenidade da terra e a situação e o nome de sua capital, Olinda, e
tem nas mãos uma cana-de-açucar". As de Itamaracá eram "um
cacho de uvas, pois essa ilha dá as melhores uvas do Brasil". A
da Paraíba "tem o seu emblema em seis pães de açucar, pelo belo
açucar que produz ou porque, depois da conquista, foi ali que
floresceram os primeiros engenhos sob o nosso governo"’.
Finalmente, as do Rio Grande do Norte representam "um rio com uma
avestruz, pássaro que há aí em grande quantidade".
Estes elementos conformavam também o
selo do Conselho de Justiça, vendo-se junto deles "a Virgem
Astréia, trazendo numa das mãos uma espada, vingadora dos crimes, e
na outra uma balança, regra dos comerciantes". Na beira,
dispostas em círculo, as palavras "GRT* SEL* VAN DEN * RAED * DER
* IVSTICIE * IN * BRASIL".
A tolerância demonstrada com os
portugueses não era inferior à que fora praticada nos primeiros
tempos da ocupação da Bahia. Os holandeses eram pragmáticos. Não
estavam interessados em promover a resistência com atitudes que
ferissem os interesses econômicos, políticos ou religiosos dos
antigos moradores. Antes, a administração dos invasores devia ser
sentida por eles como um progresso e os sacrifícios impostos por ela
como o mínimo indispensável para o bom governo da região. Assim,
severas sanções foram anunciadas para os soldados que fossem
encontrados saqueando ou abusando dos bens ou das pessoas dos
moradores, sendo reiteradamente tomadas providências para controlar
os excessos dos escabinos e escultetos. Católicos e judeus foram
autorizados a praticar a suas religiões, conservar os seus templos e
cemitérios e construir outros novos, contanto que não
exteriorizassem seus cultos com procissões ou outras manifestações
de rua. Mesmo nos casos de réus portugueses que fossem executados
pela Justiça holandesa, os corpos poderiam ser enterrados em local
sagrado, conforme a sua religião.
Foi respeitado o direito de
propriedade dos portugueses, mesmo tratando-se de casas, engenhos e
fazendas, sujeitando-se os seus bens aos mesmos encargos prediais
aplicados aos dos holandeses. Também era igualitário o pagamento de
direitos alfandegários, tributos e contribuições. Nassau ordenou
fornecer armas e alistar aos "cidadãos e colonos, senhores de si
e não funcionários públicos [...] em quatro companhias com
seus respectivos capitães e bandeiras". Desta sorte, passou a
ter "por amigos e concidadãos àqueles que no mesmo dia tivera por
adversários e de fidelidade duvidosa". Também foram alistados,
em suas comarcas e freguesias, jovens portugueses, não
proprietários, contanto que, por sua fidelidade e disciplina,
respondessem seus pais ou qualquer cidadão conceituado. Quanto à
Justiça, dois dias por semana foram reservados para que o Conselho
atendesse, com exclusividade, aos pleitos dos cidadãos
portugueses.
Nem sempre estas orientações foram
seguidas à risca. As recomendações que Nassau deixou, à sua partida,
aos membros do Conselho Supremo demonstram que estava ainda longe de
alcançar um controle completo dos abusos cometidos por seus
subordinados. Por outra parte, as agruras da guerra conduziam aos
membros de um e outro bando a medidas impiedosas. Como acontecera na
Bahia, os portugueses não poupavam os seus prisioneiros. Luiz
Barbalho recomendava ao seu sobrinho, em 1639, "que não desse êle
quartel a índio nem flamengo, entregando-os aos tapuias e
desculpando-se com eles". O conde da Torre, dirigindo-se a
Filipe Camarão, dava similares instruções. Tomando conhecimento,
Nassau respondeu que "por ser digno de retribuição tão perversa
ordem e intenção [...] nenhum dos ditos moradores receba em
sua casa, nem fora dela, nem por nenhuma via esconda soldado algum
do inimigo, nem doente nem ferido, e se pelo dito inimigo lhe fôr
deixado forçosamente em casa, o manifeste, e leve logo no estado em
que se achar ao presidio mais vizinho para ser tratado com o mesmo
rigor que o inimigo deu por ordem que se executasse em nossos
soldados, e será morto sem piedade alguma, e seus bens dados em
pilhagem a nossos soldados".
Exaltados os ânimos pelo ardor da
contenda, a guerra atingiu seu momento mais violento, nesses anos,
com a incursão de Lichkart na Bahia. "Desembarcando ali os
soldados, deram provas horrendas e cruéis do seu furor bélico.
Reduziram a cinzas todos os engenhos [...] tomaram ou
queimaram quantos navios pequenos encontravam aqui e acolá;
devastaram e depredaram, à vista dos cidadãos, as lavouras
circunvizinhas, os casais, granjas e prédios [...]
Trucidaram-se a ferro os homens e os que podiam pegar em armas.
Foram poupadas somente as mulheres e crianças".
Estas atrocidades limitavam-se, no
entanto, ao campo de batalha, sendo empregadas, de ambos os lados,
como uma forma de aterrorizar aos contrários. Na administração
interna da colônia, Nassau conservou - mesmo diante de casos de
conjuração ou espionagem - uma atitude surpreendentemente moderada.
Diversos portugueses foram acusados, em distintas épocas. Alguns
foram encarcerados e outros desterrados. Várias penas foram
reduzidas depois de certo tempo. A própria mulher de Barbalho,
envolvida em conspiração, foi simplesmente despachada para a Bahia,
a reunir-se com o seu marido. Também um grupo de sessenta
sacerdotes, franciscanos, carmelitas e dominicanos, "em
conseqüência de ajustes clandestinos com o inimigo, de tentativas de
deserção de soldados e de remessas ocultas de mantimentos para os
espanhóis" foram "em virtude de um decreto do Supremo
Conselho, relegados para as ilhas da Índia Ocidental". Barlaeus
reafirma, explicitamente, que se visava mais o seu afastamento do
que sua punição, dizendo que "achando-se a considerável distância
do Brasil, estavam ali impedidos de nos causar
danos".
Mais rigorosos parecem ter sido os
métodos de Nassau para conter a desintegração das suas próprias
forças. Barlaeus disse que "os holandeses primeiro abriram o
caminho para o poder e depois para o desregramento [...] e,
enfraquecida a disciplina, os naturais e os nossos patrícios
deixaram as armas pelos prazeres, os negócios pelo ócios, maculando,
de maneira vergonhosíssima, a boa fama de sua nação com a impiedade,
os furtos, o peculato, os homicídios e a libidinagem. De sorte que
era necessário um Hércules para limpar esta cavalariça de
Augias". Por sua parte, Van Guelen, membro do Conselho Secreto,
anotava, a respeito da Justiça: "Eis a mercadoria mais reclamada
em Pernambuco, e todavia a mais rara, para não dizer a que
absolutamente não há".
Com base em que "a milícia se
refreia pela morigeração e se relaxa com os desregramentos",
foram duramente combatidos o jogo e a vagabundagem. Concubinato,
adultério e prostituição eram reprimidos não apenas como ofensas à
religião ou à moral mas como máculas à honra e a disciplina militar.
A blasfêmia era punida com a perda da língua; o homicídio, com a
morte. Medidas severas foram tomadas contra os ladrões e
saqueadores, dando licença aos cidadãos - mesmo portugueses -
"para se defenderem com armas, em virtude da lei que recebemos da
natureza e não aprendemos".
A Justiça militar era simples e
executiva. Um soldado que alçou a sua espada contra um oficial foi
imediatamente arcabuzado. Outro, que assassinara um sargento, foi
decapitado a cutelo. Às vezes eram acrescentados procedimentos
infamantes. Antes de enforcar um desertor francês, "cortaram-lhe
dois dedos e pegaram-lhe às costas uma bandeirinha branca". Um
almirante foi degolado publicamente, em Recife, "por detrás, por
pusilânime e covarde, e lhe fizeram em público a espada em pedaços
em sinal de ignominia e afronta". Outro oficial salvou a vida,
mas não sem que uma espada fosse publicamente brandida sobre a sua
cabeça, "como sinal da clemência com que se lhe perdoava a morte
por ele merecida".
Apesar do pragmatismo que os
caracterizava, os holandeses não fugiam ao costume da época, segundo
o qual, o delito que não pudesse ser efetivamente castigado seria,
pelo menos, objeto de uma punição simbólica. Assim, os nomes dos
foragidos eram pregados na forca, em sinal do que aconteceria quando
fossem presos. Um condenado por alta traição conseguiu tirar a
própria vida antes do suplício. Mesmo assim, a programação toda foi
executada. Lida a sentença, em frente à casa do juiz, o corpo
"foi arrastado a cordas por quatro negros para o lugar da
execução, estrangularam-no, e depois cortaram-lhe os dedos e a
cabeça. Em seguida, esquartejaram o cadáver e mandaram expor a
cabeça e os quartos em diferentes pontos".
Estas medidas eram, evidentemente,
imprescindíveis para manter a fidelidade de uma tropa mormente
composta por mercenários estrangeiros. Cobiça, medo e vergonha eram
incentivos mais eficazes que as idéias de pátria ou religião. Ciente
disso, Nassau, arengando aos seus homens antes de uma batalha,
advertiu: "Aqui tenho estes colares e cadeias de ouro para
premiar aos que se houverem valorosamente nesta empresa, e pelejarem
como bons e leais soldados. E aqui está a espada e cadeias de ferro,
como cordas encevadas, para degolar e enforcar aos pusilânimes,
medrosos e covardes". E foi assim. Enquanto os que "macularam
a honra da milícia, com ser espectadores e não atores da luta"
recebiam condigno castigo, aqueles que tinham se destacado com ações
de heroísmo foram honrados com medalhas de ouro com a inscrição
"Deus abateu o orgulho dos inimigos".
O direito aplicado nas possessões
holandesas compreendia "as leis imperiais alemãs, as do Império
Romano e as vigentes na Holanda, Zelândia e Frísia", mas como
era já evidente nas colônias espanholas e portuguesas, ficou logo
evidente que essas leis não poderiam ser irreflexiva e mecanicamente
aplicadas em regiões tão distantes e diversas. "Em geral -
advertia Nassau ao Conselho - a grande distância dos lugares e a
incerteza dos acontecimentos fazem que no Brasil sejam tidas por
inconvenientes providências que pareciam vantajosas na Holanda, e
desta sorte se executariam aqui imprudentemente cousas prudentemente
resolvidas noutra parte". Preferia-se, assim, exemplarizar a
castigar. Problema idêntico ao acontecido na Bahia, em 1624, quando
dois homens morreram e um se salvou por milagre, repetiu-se em
Pernambuco: Vários soldados forçaram um depósito e beberam vinho,
com a conivência do sentinela. O incidente foi encerrado com um
único enforcamento, determinado por sorte de dados entre os
culpados. O mesmo método foi adotado em Igarassu, quando sete
soldados, surpreendidos pelos portugueses durante um ataque,
perderam suas armas no vergonhoso esforço por proteger o fruto do
saqueio que efetuaram. Os dados determinaram qual deles deveria ser
arcabuzado. A razão evidente destas atitudes reside na necessidade
de poupar vidas, que ainda poderiam ser muito úteis no campo de
batalha, sem com isso gerar uma sensação de excessiva impunidade. A
simples possibilidade de ser escolhido pelos dados - espécie de
roleta russa do século XVII - teria um potencial disuasório tão
forte quanto a própria certeza da morte. Por outra parte, os
culpados salvavam suas vidas mas não suas costas, que dificilmente
eram poupadas do chicote.
Arcabuzamento, forca e decapitação
eram as penas mais comuns. Entre os tormentos, a flagelação, o potro
e a estrapada. Admitia-se as torturas como meio de obter informação,
mas Nassau as desaconselhava, dizendo que "com elas extorquireis
tanto verdades como falsidades, e não somente sujeitareis inocentes
a suspeita mas também os perdereis". Também eram repudiadas
"as normas do costume português, em virtude das quais se tornava
freqüente por essa época resgatarem-se pecuniariamente os mais
graves delitos". A ordem não poderia ser adequadamente guardada
se a possibilidade de cobrir suas culpas com dinheiro autorizasse os
poderosos a delinqüir.
Nassau recomendava, entretanto, imitar
outros costumes dos portugueses. Um deles, o de perdoar e premiar os
ladrões em troca da delação dos seus cúmplices "pois não
exterminareis melhor esses malfeitores do que por meio de seus
parceiros no crime". O raciocínio não conclui com a simples
prisão dos culpados mas com a dissolução das quadrilhas, porque
"quando uns desconfiarem dos outros terão receio de se associarem
para o delito". Advertia, no entanto, contra a calúnia nas
denuncias de subversão, especialmente de holandeses contra
portugueses "porque os odeiam e por isso hão de querer-lhes a
perdição". Alertava também contra os depoimentos dos militares
porque "indignando-se de serem pobres e de serem ricos os
portugueses, desejam que os mais opulentos sejam condenados para
fazerem dêles presa". Caso as denúncias fossem mesmo
comprovadas, os portugueses deveriam ser punidos, mas agindo com
extrema cautela. "Discerni os facciosos dos moderados. Reprimi ou
afastai aqueles e retende êstes para não parecer que vos ireis
contra uma classe, mas só contra individuos".
O domínio holandês, que na Bahia foi
breve, nas capitanias do norte durou mais de duas décadas, dando
oportunidade não apenas de estabelecer formas mais permanentes de
governo, mas, também, de testar seus resultados e efetuar correções.
Os erros mais constantemente apontados são "as extorsões
quotidianas dos escultetos, nas provincias, praticadas sob color de
direito, e com as quais esfolam o povo além da contribuição
devida [...] É preciso refrear a ganância dos advogados,
procuradores, tabeliães, escreventes, leguleios e meirinhos, mal a
que se deve pôr cobro, assim como as procrastinações das
demandas". A solução seria "abolirem as penas de delitos
leves e várias leis, salvas aquelas com as quais se reprimem os
crimes graves. Privados, assim, estes grilos e sanguessugas, dos
nomes de tantas multas, se escravizariam menos ao seu ganho ou
satisfariam menos a sua insaciável cobiça". Essas medidas seriam
complementadas com a punição dos responsáveis - alguns dos quais
foram demitidos e embarcados para Holanda - e com uma "libérrima
apelação para vós [os conselheiros] da improbidade
deles".
Isto iria derivar, provavelmente, numa
sobrecarga de trabalho no Conselho, tornando a Justiça mais lenta.
Como nas áreas portuguesas, a morosidade da Justiça era já um
problema sério. Num certo momento, o Conselho informava que, dos
seus nove membros, um falecera, outro partira para Holanda e quatro
estavam em missão pelas capitanias. Dos três que restavam em
Pernambuco, um encarregava-se da Fazenda Pública de outro do
pagamento da milícia, restando apenas um conselheiro com capacidade
de dedicar-se à Justiça em tempo integral. Solicitava o Conselho a
designação de novos membros, indicando os nomes de três possíveis
candidatos. Por outra parte, "para não aumentar excessivamente
para os juizes superiores a tarefa das causas forenses, vedaram-se
as apelações de menor importância". Foi também sugerido "que
tantas e tão várias petições não fossem despachadas pelo Conselho
todo em vista do grande número delas e da demora das
deliberações", sendo preferível "que se escolhessem uns
poucos para decidirem as causas menos importantes".
Bastante incompleta seria esta resenha
se fosse omitida menção às várias assembléias gerais convocadas para
ouvir opiniões, sugestões e queixas dos moradores das capitanias.
Pelo menos duas foram feitas em 1636, em Pernambuco e na Paraíba,
uma em 1640, na cidade Maurícia, e uma em 1646, no Recife.
Exclusivamente de índios foi uma realizada em 1645, numa aldeia de
Goiana. À de 1640, "composta por todas as câmaras e tribunais de
justiça", foram convidados, conforme sugestão de Van Guelen,
"todos os senhores de engenhos, lavradores, negociantes e mais
pessoas de consideração da colônia", que totalizaram 55 membros,
todos eles luso-brasileiros.
Os convidados foram recebidos com um
grande banquete, no palácio de Friburgo, com a presença do Conselho
Supremo, do próprio Nassau, e de todas as principais autoridades,
correndo o evento "ao som de trombetas e caixas, e de salvas de
artilharia de mar e terra". Obedecia, assim, Nassau a uma das
sugestões que ele mesmo faria posteriormente ao Conselho para
conservar a lealdade dos portugueses: "estimular com certos
titulos pomposos a um povo que se incha com o
fausto".
No mesmo clima correram as reuniões
durante os dias seguintes, "trabalhando todos os que se viam
ali congregados à sombra dos frascos de vinho e cerveja, que andavam
fazendo salva aos que tinham sêde". As sessões, inauguradas
com a fala do presidente do Conselho e com a discussão dos critérios
organizativos que regeriam as deliberações, prolongaram-se durante
nove dias, expressando-se os moradores livremente e prometendo as
autoridades submeter todas as posições ouvidas à Assembléia dos
Dezenove e aos Estados Gerais da Companhia. Para tanto, seriam eleitos
três procuradores, "um que resida na Holanda, perto dos altipotentes
estados da mui nobre Companhia de West India, e dois que residam
junto ao alto Conselho, em Pernambuco". Nassau encerrou o encontro,
convidando à cooperação, à diversificação dos cultivos e à liberdade
de comércio, e comprometeu-se, em nome da Companhia, a canalizar
a comercialização das culturas não tradicionais. Todas as discussões
foram registradas num códice, sendo feitas cópias para diversas
pessoas e para os livros das câmaras de todas as capitanias.
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