Alegoria: Portugal (o dragão) vence à Espanha (o leão).

Declaração da Independência dos Estados Unidos
(óleo de J. Trumbull)
 

  Memória
da Justiça Brasileira - 3
Capítulo 3

O Complexo Equilíbrio do Poder Público

Se a revolução de 1649 não conseguiu instaurar uma democracia estável, ao menos acabou com as veleidades absolutistas dos monarcas. Desde então, não poucos reis ingleses tentaram imitar à quase onipotente coroa francesa, mas sempre se viram forçados a transigir e, em maior ou menor grau, conforme as particularidades de cada momento, compartilharam o poder com os representantes da Nação. Apesar disso, nunca mais a Inglaterra voltaria a ter uma constituição. O país que foi a vanguarda do constitucionalismo, ainda tem a sua legislação fundamental dispersa entre fontes avulsas como a Magna Carta, a Petição de Direitos, a Lei de Modificação do Habeas Corpus (Habeas Corpus Amendement Act, 1679), a Declaração de Direitos (Declaration of Rights, 1689), a Lei de Instauração (Act of Setlement, 1701) e outros documentos – em geral, conjunturais – que, no marco do "common law", constituem o arcabouço jurídico da Nação.

Entretanto, se a função essencial de uma constituição é pôr limites à convivência social e ao poder do Estado, esses documentos atingiram o objetivo. A Inglaterra não tem uma constituição escrita – ou, pelo menos, não única, integral e declarada como tal – mas tem a consciência e o orgulho de que esses atos dispersos são a sua herança jurídica e constituem a sua Constituição. De um e outro lado do oceano, os ingleses nasceram e cresceram na consciência da liberdade que, desde seu posto no Parlamento inglês, William Pitt sintetizara cabalmente:

"É um princípio de nossa Constituição – dissera num dos seus discursos – que o lar de todo inglês é a sua fortaleza, defendida não por muralhas ou fossos, mas pela majestade da lei. O mais pobre cidadão deste reino pode desafiar em sua choupana todas as forças da Coroa. Não importa que a casa seja frágil, que seu telhado trema ao menor açoite; o vento, a chuva e a tempestade poderão entrar; o rei não poderá fazê-lo: todo o seu poder expira diante da porta da mais humilde morada". Mas, embora inglês europeu, Pitt não se preocupava apenas com os direitos dos habitantes da metrópole. Em plena crise da "Lei do Selo", ciente da marginação em que as longínquas colônias viviam, mas, também, ciente desse sentimento de independência e dignidade que, quanto mais longe do controle direto da Coroa, mais próximo e realizável parecia, ele desafiava seus colegas afirmando que "os americanos são filhos e não bastardos da Inglaterra". E vaticinava: "não está longe o dia em que, talvez, a América nos enfrentará, não apenas nos campos de batalha, mas também nas artes da paz".

Essa vocação pela liberdade era bem conhecida dos americanos. Nascidas da perseguição religiosa, formadas em tempos da reinterpretação da Magna Carta, contemporâneas da Petição e da Declaração de Direitos (1628 e 1689), as colônias incorporaram esses documentos aos seus próprios estatutos. Adams, Jefferson, Madison e tantos outros lutadores pela independência eram grandes conhecedores do Direito inglês e assíduos leitores dos "Institutes of the Laws of England". Ao deixar de ser colônia, o Estado de Massachusetts adotaria, como símbolo, a figura de um miliciano com uma espada em uma mão e a Magna Carta na outra.

Porém, mais ainda que a herança política e teórica, tinham os americanos a consciência de haver construído um novo modo de vida: uma terra em que as pessoas podiam crescer por méritos, e não por nascimento; uma terra onde podiam manifestar livremente suas opiniões e participar ativamente no governo. O que, posteriormente, viria a ser chamado de "american way of life" – esse país das possibilidades ilimitadas onde qualquer um podia, teoricamente, atingir qualquer posto, dignidade ou posição econômica – era um patrimônio de valor inestimável, do qual os descendentes dos colonos não estavam dispostos a abrir mão.

Nem todas as colônias eram calvinistas. Aos primeiros puritanos, de tendência presbiteriana, somaram-se, depois, congregacionistas, batistas e, em menor medida, luteranos, menonitas e anabatistas. Nas colônias do sul, a religião anglicana era credo oficial. Mas todos eles, em maior ou menor medida, levaram na sua bagagem os ideais libertários. Alguns fugiam do absolutismo ou da intolerância religiosa. Outros, simplesmente procuravam melhorar de vida. Todos, entretanto, encontraram na América um mundo novo que, sacrificadamente desbravado, sentiam como seu.

Formavam colônias homogêneas e profundamente coesas. A intenção original de viver em comunidades vira-se reforçada pela hostilidade inicial do ambiente. Constituíam, por outra parte, uma população de classe média, razoavelmente bem informada e politizada. Não havia, como em outras regiões, grandes fortunas e imensos contingentes de escravos e marginalizados.

Não oferecendo a terra grandes riquezas, também a metrópole não se interessara muito em estreitar os laços coloniais e garantir-se com o controle absoluto. Os colonos tinham bastante liberdade para produzir e comerciar, contavam com estruturas administrativas e judiciárias virtualmente autônomas e reproduziam, nas suas colônias, as instituições parlamentares inglesas, governando-se por assembléias eletivas submetidas, apenas, aos governadores enviados pela Coroa.

Esse foi o fundamento jurídico da sua rebeldia quando o Parlamento britânico, premido por urgências econômicas, tentou aumentar unilateralmente a carga tributária. "No taxation without representation" (não há tributação sem representação), protestavam, apoiando-se em princípios consagrados pela Magna Carta. Mas o questionamento ia além da simples autoridade para impor os tributos. O que os colonos estavam levantando era uma questão de soberania. Eles não possuíam representação no Parlamento britânico. Os seus representantes eram as assembléias locais e só elas podiam debater sobre a legitimidade e a viabilidade da tributação. Ratificavam-se súbditos de sua majestade, Jorge III, mas se consideravam cidadãos ingleses, iguais e não inferiores aos que moravam nas ilhas britânicas. Que o Parlamento, em Londres, determinasse a tributação das colônias era tão inadmissível como se qualquer delas resolvesse sobre os impostos das outras.

Rum, Chá e os Reflexos do "Common Law"

O conflito, iniciado em 1764 por um imposto à comercialização do rum, agravou-se com a "Lei do Selo" (Stamp Act) que estabelecia tributos sobre a tramitação dos documentos públicos. Em outubro de 1765, respondendo a uma convocatória da Assembléia de Massachusetts, delegados de nove colônias reuniram-se em Nova York e aprovaram uma "Declaração de Direitos e Agravos". Nela, reconheciam que "Os súditos de sua majestade nestas colônias devem a mesma lealdade à coroa da Grã-Bretanha devida pelos súditos nascidos no interior do reino, e a devida subordinação àquele augusto grupo de pessoas, o parlamento da Grã-Bretanha", mas ressaltavam que "O povo destas colônias não é – e, mercê das suas circunstâncias locais, não pode ser – representado na Câmara dos Comuns", esclarecendo que "os únicos representantes do povo destas colônias são pessoas escolhidas nelas por esse mesmo povo"; e que "nenhum imposto lhe foi algum dia, nem o pode ser, constitucionalmente imposto, senão por seus representantes legislativos".

Justificavam sua resistência ao tributo com diversos argumentos, julgando as taxas "extremamente pesadas e gravosas" e queixando-se da "escassez de dinheiro" que faria o pagamento "absolutamente impraticável". Mas pelo menos um desses considerandos, estava permeado de uma ousadia quase deliberadamente subversiva: "Sendo todo o dinheiro fornecido à coroa donativo livre do povo, é desarrazoado e não se harmoniza com os princípios e o espírito da constituição britânica, que o povo da Grã-Bretanha presenteie sua majestade com bens dos colonos".

A Declaração contestava, ainda, o aumento abusivo na jurisdição das Cortes do Almirantado, destacando que "o julgamento pelo júri é direito inerente e inestimável de todo súdito britânico nestas colônias". Esse aumento na jurisdição fora uma tentativa de controlar as agitações. Porém, só conseguiu proporcionar mais um argumento aos rebeldes, que clamavam pela garantia constitucional segundo a qual nenhum homem livre podia ser processado ou punido "senão em virtude de sentença judicial de seus pares". O documento de Nova York não entra em minúcias jurídicas, mas a convocatória original de Massachusetts é explicita ao declarar que os atos contestados são "contrários à Magna Carta e os direitos naturais dos ingleses e portanto, de acordo com Lord Coke, nulos e vazios". A referência a Coke aludia a um escrito de 1609 ou 1610, onde o magistrado e parlamentar inglês afirmava: "Quando um ato do Parlamento é contrário ao direito comum ou à razão, ou repugnante, ou impossível de ser cumprido, a lei comum irá controlá-lo e julgar tal ato vazio".

Mas o Parlamento não estava só. A Coroa – mais uma vez com problemas de caixa – não parecia disposta a desistir. O Stamp Act foi suspenso em 1766, mas, apenas um ano depois, um novo pacote de leis, inspiradas pelo chanceler Townshend, estabeleceu novas taxas sobre o chá, o chumbo, o verniz e outros produtos. Pouco depois, ao negar-se a Assembléia de Nova York a votar as verbas necessárias à manutenção das tropas inglesas, o Parlamento ordenou o seu fechamento. Uma assembléia reunida na Virgínia protestou pelo atropelo, enviando cartas ao rei e a cada uma das câmaras. Paralelamente, intensificou-se a agitação nas ruas e começou um processo de substituição de importações destinado a boicotar o comércio inglês. Em 1770, atemorizado pelo curso dos acontecimentos, o Parlamento revogou os novos impostos, mantendo apenas o que incidia sobre o chá e que, três anos depois, seria o estopim da revolta.

A crise estourou no porto de Boston, em dezembro de 1773, quando um grupo de desconhecidos disfarçados de índios tomou de assalto um navio da Companhia das Índias e jogou ao mar sua carga de trezentas caixas de chá. O ataque alvejava não apenas o imposto como também o monopólio que a Companhia exercia sobre aquele comércio, em prejuízo dos importadores locais. Em represália, as forças realistas bloquearam o porto, exigindo o pagamento pela carga perdida. Pouco depois, a Assembléia da Virgínia – principal foco dos conspiradores – foi fechada pelo governador.

Dessa vez, os patriotas optaram pela resistência ativa e convocaram um Congresso Continental, realizado em 1774, em Filadélfia, com delegados de todas as colônias, exceto a Geórgia. O Congresso rejeitou um plano conciliatório apresentado por Joseph Galloway, reorganizou o boicote aos produtos britânicos, criou uma Associação Continental e aprovou uma nova "Declaração de Direitos e Agravos", resumindo sua estratégia nos seguintes pontos: "1. Entrar num acordo ou associação de não-importação, não-consumo e não-exportação. 2. Preparar uma declaração ao povo da Grã-Bretanha e um memorial aos habitantes da América britânica; e 3. Preparar uma declaração leal dirigida a sua majestade e em harmonia com as resoluções já tomadas".

O documento ainda reconhecia Jorge III como soberano, exigindo, apenas, a revogação das "leis intoleráveis" e o retorno "ao estado em que ambos os países encontraram felicidade e prosperidade", mas a Coroa recusou-se a negociar. Em Massachusetts, os colonos constituíram um governo revolucionário e começaram a preparar-se para a luta. Em 1775, George Washington tomou o forte de Ticonderoga; em 1776, nas alturas de Dorchester e do porto de Boston. Na Filadélfia, um segundo Congresso Continental já agia como governo constituído. Na Virgínia, uma convenção proclamava a independência da colônia, redigia uma "Declaração de Direitos", uma Constituição estadual e enviava delegados ao Congresso Continental propondo o desligamento da Inglaterra da totalidade das colônias.

Os direitos declarados já não são de súditos perante a autoridade real e sim, de cidadãos eleitores, fonte de todo poder e governo. "Todos os homens – define o artigo 1º – são, por natureza, igualmente livres e independentes e têm direitos inerentes, dos quais, ao entrar num estado de sociedade, não podem, por nenhum contrato, privar ou despojar sua posteridade". "Todo poder – acrescenta o 2º – é formalmente conferido ao povo e, por conseguinte, dele deriva; os magistrados são seus depositários e servos e, a qualquer momento, responsáveis por ele". O governo existe "para o benefício, a proteção e a segurança comuns do povo, da nação ou da comunidade" e, "quando qualquer governo se revelar inadequado ou contrário a esses propósitos, a maioria da comunidade tem o direito indubitável, inalienável e irrevogável de reformá-lo, alterá-lo ou aboli-lo". Dias depois, em 4 de julho de 1776, era assinada a Declaração da Independência.

Os Artigos da Confederação

A Constituição dos Estados Unidos não foi elaborada de imediato. Mais modestamente, o Congresso Continental aprovou um documento denominado "Artigos da Confederação". Nascia, já, a denominação de "Estados Unidos da América", mas era, essencialmente, uma associação defensiva de Estados independentes. Cada Estado conservaria "sua soberania, liberdade e independência, e todo poder, jurisdição e direitos que não forem, por esta confederação, expressamente delegados", formando "uma liga firme de amizade recíproca, para sua defesa comum, para a segurança das suas liberdades, e para o seu bem-estar geral".

Subsistiam as Assembléias Estaduais, podendo cada uma delas nomear um mínimo de dois e um máximo de sete delegados ao Congresso. Independentemente do número de delegados, cada Estado contaria com um voto. Seriam discutidos no Congresso os assuntos de cooperação e defesa comum e seria esta a última instância de apelação nas controvérsias, porventura existentes, entre os Estados. O Congresso regularia também a padronização da moeda e a dos pesos e medidas, administraria um correio interestadual e conduziria as forças armadas; determinaria os impostos, elaboraria o orçamento, tomaria empréstimos e emitiria dinheiro "tomando por base o crédito dos Estados Unidos".

Prévio a cada recesso, o Congresso nomearia um delegado por Estado para conformar o "Comitê dos Estados", destinado a governar até a próxima sessão. Poderia, também, nomear "os comitês e funcionários civis que possam ser necessários à administração dos assuntos gerais [...] contanto que a pessoa alguma se permita servir o cargo de presidente por mais de um ano no espaço de três anos".

A guerra da Independência se prolongou até 1781. Só então, os Artigos da Confederação, aprovados em 1777, foram ratificados e entraram em vigor. Mas logo se revelaram insuficientes. O mesmo fervor pela liberdade, que impulsionara a Independência, se convertia em um empecilho para a institucionalização. Cada Colônia era uma comunidade independente e o acordo defensivo costurado pelos Artigos não era o bastante para construir uma nação em paz. O governo central não podia aplicar taxas e a sua capacidade para regular o comércio era escassa. Embora padronizasse a moeda, não tinha efetivo controle sobre a sua emissão, que continuava a ser regulada separadamente pelos Estados. O papel moeda inundava o país e a inflação crescia descontroladamente, deteriorando as condições de vida da população e levando ã falência – e mesmo à cadeia – os pequenos granjeiros, impossibilitados de quitarem suas dívidas sempre em aumento.

Em 1786, homens armados impediram a sessão da Corte de Justiça de Northampton e tentaram saquear o arsenal de Springfield. A rebelião foi logo sufocada por tropas estaduais, mas deixou em evidência que a Confederação estava à beira da anarquia. George Washington chegou a escrever: "Não concebo que possamos persistir por muito tempo como nação sem termos implantado, em algum lugar, um poder que se expanda por toda a União, de uma forma tão enérgica quanto a autoridade de governo de cada Estado faz em sua área".

A idéia era intranqüilizadora. Não era para sujeitar-se a uma nova monarquia que as colônias tinham lutado ao independentizar-se da Inglaterra. Mas, aos poucos, crescia a sensação de que era preciso encontrar um meio termo, isto é, que um governo pudesse ser, ao mesmo tempo, forte e democrático.

We, the People...

Na Assembléia Estadual da Virgínia, James Madison e John Tyler propuseram que fosse dada ao Congresso Continental autoridade para regular o comércio. Apenas com este objetivo, foi convocada uma Convenção a ser instalada em setembro em Annapolis. A proposta implicava em reformar os Artigos e foi vista como uma usurpação da autoridade do Congresso, de quem deveria ter partido oficialmente a convocatória. Porém, a necessidade era evidente e o problema foi sanado com um novo chamado; dessa vez, feito pelo próprio Congresso.

Os delegados se reuniram em Filadélfia, em 1787. Foram eleitos setenta e quatro, mas apenas cinqüenta e cinco chegaram a participar efetivamente. Eram, mormente, originários das classes altas. A maioria era formada em Direito e muitos deles já tinham participado em Assembléias Estaduais ou no próprio Congresso Continental. Em geral, eram bons conhecedores das novas teorias de governo e leitores interessados de Harrington, Locke e Montesquieu. A média de idade era de 42 anos, embora existisse um delegado de 27 e o velho Benjamin Franklin, já curvado pela gota, ainda arrastasse seus 81 anos para dar mais essa contribuição ao seu país como representante da Pensilvânia.

O objetivo da Convenção era, apenas, reformar os Artigos. Porém, os virginianos forçaram logo o debate em direção a uma completa reestruturação do Estado. O chamado "Plano da Virgínia" essencialmente elaborado por Madison, postulava uma estrutura de governo altamente centralizada, porém dividida em três poderes que se controlassem e limitassem mutuamente. Essa estrutura, impecável na teoria, mas nunca testada na prática, não convenceu a muitos dos representantes, que viam na centralização um diabólico projeto para avassalar as autonomias estaduais. William Paterson contra-atacou com outro plano, conhecido como "Resoluções de New Jersey" que, essencialmente, se limitava à pauta original da convocatória, facultando ao Congresso para mais facilmente levantar verbas e controlar o comércio. A proposta foi rejeitada e, diante do receio dos pequenos Estados, que temiam ver-se submetidos à tirania dos maiores, Madison propôs que nenhum novo artigo tivesse valor sem ser ratificado pelo povo de cada Estado. Apesar da sua aparência tranqüilizadora, tratava-se de um novo golpe político dos virginianos que, deixando a ratificação em mãos "do povo", confiavam evitar que as decisões fossem submetidas às Assembléias, mormente conformadas pelos setores que se beneficiavam da situação ocorrente.

Mais uma vez, a proposta teria encontrado grandes resistências se não surgisse uma ajuda inesperada – e involuntária – na proposta de Alexander Hamilton, delegado por Nova York, que adjetivando o sistema britânico – do qual, aliás, acabavam de independentizar-se – como "o melhor do mundo", propôs a criação de um governo essencialmente similar, com um executivo forte, com poder de veto sobre as leis, que permanecesse, se não vitaliciamente, pelo menos enquanto durasse sua boa conduta. Também o Senado seria integrado por membros quase vitalícios e, à semelhança dos "comuns" haveria uma legislatura composta por membros eleitos e renováveis. O próprio Hamilton declarou que o povo estava pronto para aceitar "algo não muito distante daquilo que acabava de deixar", e Hugh Williamson, da Carolina do Norte, expressou a sua certeza de que "num momento ou outro, chegaremos a ter um rei". Para radicalizar ainda mais, no verão de 1787, alguns jornais denunciaram uma suposta conspiração para convidar o segundo filho de Jorge III, Frederico, duque de York, a assumir a Coroa dos Estados Unidos.

Inesperadamente deslocados politicamente para o centro, os partidários do "plano da Virgínia" se constituíram na única alternativa viável frente aos monarquistas e passaram a gozar do apoio de boa parte dos moderados, que inicialmente os olhavam com receio. Apesar disso, a oposição entre Estados grandes e pequenos estava longe de ser superada. Enquanto os maiores queriam uma legislatura proporcional à população de cada Estado, os menores advogavam por uma representação igualitária. Os partidários da proporcionalidade se impuseram na votação, mas a tensão não diminuiu. Os ânimos já estavam tão exaltados que Franklin propôs que cada sessão fosse precedida por uma celebração religiosa, ao que Williamson respondeu secamente que a convenção não dispunha de verbas para pagar um predicador.

Pouco depois da primeira derrota, Luher Martin, de Maryland, voltou a atacar: "Os Estados têm o direito à igualdade na representação. Isso está assegurado a nós pelos atuais Artigos da Confederação. Estamos em possessão desse privilégio". Postulava, em resumo, que a igualdade na representação já constituía direito adquirido. Perdida a primeira votação, os Estados menores apresentaram uma proposta alternativa: A representação seria proporcional em deputados e igualitária no Senado. A proposta era inovadora e seria posteriormente imitada em diversos países.

Embora a convocatória original fosse apenas para reformar os Artigos da Confederação, os deputados logo compreenderam que seria tempo perdido e optaram por redigir um documento inteiramente novo: A Constituição dos Estados Unidos da América, cujo projeto foi encomendado a Nathaniel Goram (Massachusetts), John Rutlegde (Carolina do Sul), Edmund Randolph (Virgínia), Hugh Williamson (Carolina do Norte) e Oliver Ellsworth (Connecticut). Após árduas discussões e emendas, o projeto foi submetido a um comitê de estilo e harmonização, encarregado de preparar a redação final, que foi assinada em 17 de setembro. Conforme a proposta dos virginianos, dependia, ainda, de ratificação pelas Convenções Estaduais. Por maioria, foi rejeitada uma moção que autorizava essas convenções a introduzirem emendas a serem submetidas a uma nova Convenção Geral. Assim, foram enviadas cópias a todos os Estados acompanhadas de um documento conhecido como Letter of Transmittal (Carta de Transmissão), porém exclusivamente para ratificação ou rejeição global. Para entrar em vigor, a Constituição precisava ser ratificada, no mínimo, por nove Estados, marca atingida em 21 de junho de 1788 com a aprovação por New Hampshire. Rhode Island, que não participara da Convenção, só veio ratificá-la em 1790.

A Constituição dos Estados Unidos foi a primeira de uma grande nação democrática e iria servir de modelo para boa parte das Cartas modernas. Estabelecia um Poder Legislativo bicameral, um Executivo presidencialista, com mandato eletivo por quatro anos, e um Judiciário, constituído por uma Corte Suprema (Supreme Court) e "cortes inferiores que o Congresso, de tempos a tempos, vier a ordenar e instituir".

The Bill of Rigths

A Constituição de 1787 é enxuta. Talvez por isso mesmo tenha perdurado até hoje. Define os aspectos essenciais, mas deixa a regulamentação minudente para a legislação infraconstitucional. Ciente de que as coisas mudam, tem o cuidado de especificar claramente um procedimento de atualização para o texto principal: "O Congresso, sempre que dois terços de ambas as Casas o julgarem necessário, proporá Emendas a esta Constituição ou, por solicitação das legislaturas de dois terços dos diversos Estados, reunirá uma convenção para propô-las. As Emendas, em qualquer caso, serão válidas para todos os intentos e propósitos, como parte desta Constituição, quando ratificadas pelos legislativos de três quartos deles, sendo que tanto um quanto o outro modo de ratificação podem ser propostos pelo Congresso, contanto que nenhuma Emenda que venha a ser feita antes do ano de 1808 influa, de qualquer maneira, na primeira e na quarta cláusulas da nona seção do artigo primeiro e que nenhum Estado, sem o próprio consentimento, seja privado do seu direito igual de voto no Senado".

Esse artigo – essencialmente diferente dos tradicionais textos constitucionais ingleses, tão ciosos dos precedentes e dos costumes antigos – teve os seus primeiros efeitos, em 1789, com a aprovação das dez primeiras emendas, que passariam à história com o apelido de "Bill of Rights". Já em 1786, a Virgínia tinha aprovado uma declaração de direitos, sendo logo imitada por vários outros Estados, mas a Constituição não a incluiu, constituindo isso um constante atrito com os Estados menos poderosos, que exigiam uma garantia constitucional expressa. Thomas Jefferson, que fora eleito mas não chegara a participar efetivamente dos debates, escrevia a Madison que uma declaração de direitos é "tudo o que o povo tem contra qualquer governo na Terra". Richard Henry Lee – outro dos representantes eleitos mas não incorporados à Convenção – defendendo o que chamava de "direitos essenciais da humanidade, sem os quais a liberdade não pode existir", chegou a postular que trocar o sistema de governo sem a enunciação dessas garantias seria "como trocar Scilla por Caribdis".

Mas nem todos os deputados partilhavam dessa posição. Muitos preferiam que a Constituição fosse concisa, evitando o detalhamento excessivo e deixando para a legislação ordinária tudo aquilo que não fosse essencial. Alguns achavam que esses direitos essenciais já tinham sido assegurados nas Constituições estaduais. James Wilson postulou que toda enunciação de direitos seria supérflua, porque todo poder não expressamente delegado ao governo estaria sempre reservado para o povo. Não faltavam, ainda, os que, sendo membros da facção dominante, achavam que a declaração – exigida, principalmente, pelos Estados que ainda desconfiavam das suas intenções – iria enfraquecer novamente o governo, limitando a sua autoridade.

A polêmica terminou num impasse e a Constituição acabou sendo publicada sem esse acréscimo, mas a sua falta ainda criava receios e dificultava o processo de ratificação. Em fins de 1788, Madison – que, na Convenção, votara contra – já estava convencido da sua necessidade, não apenas como uma concessão destinada a facilitar essa ratificação – aliás, já obtida em todos os estados com a exceção de Rhode Island – mas como "uma boa base para apelar ao sentido de comunidade" e "contrabalançar os impulsos do interesse e da paixão".

A sua posição de liderança foi decisiva. Dissolvida a Convenção, Madison foi reeleito deputado por Virgínia e liderou, no Congresso, a elaboração de 17 emendas, que o Senado reduziu a 12 e a ratificação pelos Estados, a 10. Mesmo depois de ratificadas, em 1791, essas emendas ficaram conhecidas como Bill of Rights (Projeto de Lei de Direitos). Elas consagraram as liberdades de religião, de imprensa, de reunião e de petição ao governo para a "correção dos agravos", a inviolabilidade do domicílio, o júri de instrução e o juízo por jurados; aboliram a prisão sem causa formada, as multas exageradas e as punições "cruéis e inusitadas". As emendas subseqüentes já seriam bem menos freqüentes. A abolição da escravidão – talvez a emenda mais importante e que, finalmente, iria possibilitar que a democracia fosse verdadeiramente igualitária – teria de esperar até 1865.

Já durante a Convenção, o ministro congregacionalista Samuel Hopkins, de Connecticut, denunciara que "estes estados, que estiveram lutando pela liberdade e se consideram a si mesmos como o mais alto e nobre exemplo de zelo por ela, não conseguem entender-se em nenhuma Constituição sem indulgir-se e autorizar-se a escravizar seus semelhantes". Mas, também, havia quem, como John Rutledge, deputado pela Carolina do Sul, postulasse que "o interesse é o único principio de governo nas nações".

A decisão iria demorar ainda quase oitenta anos e custar mais uma guerra: a da Secessão. Finalmente, em 28 de novembro de 1865, foi aprovado o seguinte texto: "Nem a escravidão, nem a servidão involuntária, exceto como castigo para um crime pelo qual a parte tenha sido devidamente condenada, existirá dentro dos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito à sua jurisdição". Era a 13ª Emenda.


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