Junot protegendo a Cidade de Lisboa.

Assalto ao Palácio das Tulherias
(detalhe)
 

  Memória
da Justiça Brasileira - 3
Capítulo 4

As Sangrentas Asas da Liberdade

A Revolução Francesa não aconteceu em 1789. A tomada da Bastilha – realizada, aliás, aos gritos de "Viva o Rei" – não tinha outra intenção senão a de obter armas para defender a cidade dos difusos perigos que a onda de boatos fazia esperar. Malgrado a lenda heróica sobre a liberação das vítimas da opressão, a velha fortaleza, já mergulhada na cidade e cercada de casebres que a tornavam ridiculamente frágil – a ponto de a ponte levadiça ter sido baixada a machadadas por um audacioso que conseguira entrar pulando pelos telhados – só foram encontrados sete prisioneiros: dois dementes, quatro estelionatários e um pervertido sexual.

Em verdade, a Revolução começara muito antes e arrastar-se-ia dolorosamente por várias décadas, destruindo o velho regime desde seus alicerces e construindo, entre rios de sangue e tormentas de fogo, uma nova concepção do mundo em que o ser humano – e não mais Deus – seria a origem e a finalidade dos atos de governo. Essa revolução se iniciara incruentamente, com o acelerado desenvolvimento filosófico que o "Século das Luzes" tornara possível. Expandindo os limites do conhecimento e da razão, esses filósofos – alguns até mimados pelos monarcas – iam, aos poucos, minando as concepções seculares que justificaram a existência da monarquia.

Os Dolorosos Caminhos da Democracia

Mas o fato é que a própria monarquia estava em crise. Ao vertiginoso crescimento do absolutismo, que chegara ao seu ponto culminante no reinado de Luís XIV, seguira-se uma não menos rápida decadência, produto inevitável das deficiências estruturais do sistema. Ferido de morte o feudalismo pela concentração do poder na Coroa, boa parte da nobreza passou a depender das benesses do rei, que em 1789 despendia mais de 30 milhões de libras na manutenção dos privilégios da sua corte. Os nobres, que não tinham essa sorte, viviam da renda das suas terras que, a cada nova geração, a defasagem das taxas e o parcelamento entre os sucessivos herdeiros tornavam mais insignificante. Assim, enquanto os mais favorecidos eram uma carga e um escândalo para a Nação, os nobres empobrecidos tornavam-se ávidos leitores de quanta idéia iconoclasta fosse impressa no reino.

Na Igreja, a situação não era muito diferente. Todos os 135 bispos eram nobres apontados pela Coroa e levavam uma vida faustosa e mundana, enquanto o baixo clero vivia na pobreza e arcava com praticamente todas as tarefas pastorais. A burguesia, que, com seu esforço, possibilitara o desenvolvimento do absolutismo, possuía bens materiais, mas tinha vedado o caminho aos títulos e a qualquer função de governo, constituindo, de fato, uma classe potencialmente revolucionária. Quanto aos camponeses – uns 18 milhões de arrendatários livres, um número indeterminado de trabalhadores sem terra e, ainda, algo em torno de um milhão e meio de "servos da gleba" – carregavam com a maior parcela do esforço na manutenção do sistema – aliás, sempre falido – e, permanentemente explorados além das suas possibilidades, engrossavam o exército de retirantes que chegavam às cidades. Em 1789, um quinto da população de Paris estava constituído por mendigos.

A revolução propriamente dita começou a gestar-se em 1781, quando Jacques Necker, próspero banqueiro e, então, Controlador Geral das Finanças, sintetizou, na sua "Compte Rendu au Roi" (Prestação de Contas ao Rei), a sua visão da crise. O déficit público estava atingindo níveis insustentáveis e, por muito que se cortasse os gastos da Coroa ou se aumentasse a carga impositiva sobre os setores populares, não se conseguiria fechar as contas. A conclusão mais do que óbvia era, potencialmente, subversiva: Todos – até mesmo a nobreza e o clero, que tradicionalmente eram isentos – deveriam pagar impostos. Mas... quem aprovaria essa reforma, se o Parlamento estava integrado precisamente por eles?

Necker não terminou o ano no cargo. Seu sucessor, Charles Alexandre de Calonne, conseguiu subsistir, tomando novos empréstimos até 1786, ano em que, atingido o limite extremo do crédito da Coroa, o projeto de Necker voltou à tona... e custou o cargo de Calonne. Fracassada a Assembléia de Notáveis que ele convocara, tentando sortear a resistência do Parlamento, o novo Controlador Geral, Loménie de Brienne, precisou recorrer a esse corpo e, durante mais dois anos, tentou negociar, sem sucesso. Em 1788, a situação chegava a tal grau de descontrole que a população começou a exigir a convocatória dos Estados Gerais, que não se reuniam desde 1614. Acossado e sem orientação para controlar a crise, Luís XVI viu-se forçado a ordenar a volta de Necker.

Convencido de que a nada chegaria negociando com o Parlamento, Necker optou por um remédio extremo: aceitar e encampar a convocatória dos Estados Gerais. Era uma medida arriscada, mas era a única possível. Rei e ministro fizeram questão de regular a matéria de modo a ter um número de representantes populares no mínimo igual à soma do clero e a nobreza, mas não conseguiram – ou não ousaram – fazer com que essa representação se refletisse diretamente nas decisões. Todos os presentes podiam falar, mas o voto continuava a ser emitido pelo procedimento tradicional: Cada Estado funcionava de forma independente e votava em bloco, de modo que – considerando-se a previsível coincidência de interesses entre o clero e a nobreza – todas as votações realmente importantes acabariam num quase inevitável dois a um.

Mas já não seria Necker quem cuidasse dessa deficiência. Se a Coroa se antecipasse a dar mais poder ao Terceiro Estado, clero e nobreza fariam oposição mas acabariam sendo vencidos, e as metas da reforma seriam mais facilmente atingidas. Não seria o primeiro monarca a utilizar a burguesia como contrapeso às pressões das outras ordens. Mas Luís XVI era indeciso e – provavelmente temeroso do desborde popular – não se atreveu a levar sua cartada até as últimas conseqüências. Precisamente por causa dessa indecisão, o desborde iria acontecer com mais violência do que ele pudesse ter imaginado.

Iniciados os debates em 5 de maio, a discussão da pauta foi travada durante seis semanas por discrepâncias regimentais. Cientes de que o procedimento tradicional os restringiria a uma participação meramente formal, os representantes do Terceiro Estado exigiram a reunião de todos os deputados num só corpo, com voto individual, confiando, assim, em obter a necessária maioria nas decisões. Não constituíam um bloco uniforme, mas a oposição ao predomínio das outras duas ordens criava entre eles a coesão necessária para enfrentá-las.

Mais uma vez, a intolerância iria provocar o agravamento do conflito. Aferrados aos seus privilégios e dignidades, os deputados do clero e da nobreza negaram-se absolutamente a transigir com a plebe. Percebendo a inutilidade da discussão, em 17 de junho, os representantes populares optaram por forçar o jogo. Em aberta rebeldia à convocatória real, e desconhecendo a validade dos Estados Gerais, declararam-se em Assembléia Nacional e convidaram os membros das outras ordens a somar-se a eles.

Esse convite – aparentemente absurdo entre blocos em aberto confronto – não carecia de sentido. Embora eleitos pela burguesia, os dois principais articuladores do movimento eram o clérigo Emmanuel Joseph Sieyès e o nobre Honoré Gabriel Riqueti, conde de Mirabeau. Eles sabiam que se o Terceiro Estado não era um bloco homogêneo, muito menos o eram os outros dois. Internamente divididos por interesses e disputas setoriais, fortemente influenciados pelas leituras iconoclastas que circulavam quase livremente, muitos deputados precisavam apenas do estímulo apropriado para decidir-se a romper com seus colegas.

Logo de início, membros do baixo clero começaram a abandonar suas bancas. Entre a nobreza, um aguerrido grupo de pressão tentava convencer seus colegas da conveniência de reconhecer a nova situação e incorporar-se, em bloco, à Assembléia. No dia 22, quatro prelados e 144 sacerdotes efetuaram a mudança. Em 23, após uma frustrada tentativa de Luís XVI para controlar a situação, a Assembléia declarou seus membros representantes da Nação e, portanto, invioláveis nas suas pessoas. No dia seguinte, se incorporou o resto dos clérigos. Em 25, desistindo de tentar uma decisão de conjunto, um grupo de 47 delegados da nobreza realizou a transferência. Em 27, o rei se deu por vencido, reconheceu a legitimidade da Assembléia e ordenou ao resto dos nobres ocuparem suas bancadas.

O triunfo dos setores progressistas transformou drasticamente a pauta que regulara a convocatória dos Estados Gerais. Esquecendo ou deixando para um segundo plano a reforma econômica, a Assembléia concentrou-se na política. Em 7 de julho foi eleito o comitê que iria redigir o projeto de Constituição. No dia 11, Marie Joseph du Motier, Marquês de La Fayette – que conhecia a Declaração de Direitos da Virgínia por ter participado ativamente na guerra de independência dos Estados Unidos – apresentou à Assembléia o primeiro rascunho da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Foi ele mesmo quem organizou a milícia revolucionária depois conhecida como Guarda Nacional. Inicialmente impulsionada pela burguesia parisiense – temerosa tanto da repressão realista quanto do desborde da população – a Guarda adotou, inicialmente, como insígnia o azul e o vermelho, as cores da cidade. Mas La Fayette era partidário da monarquia constitucional e logo convenceu os mais radicais a acrescentar a cor branca, distintiva dos Bourbons. Essa combinação de cores seria a origem da bandeira atual.

Maiores resistências teriam havido, certamente, não fosse a agitação popular que atemorizava os mais conservadores. Por toda a parte, camponeses se rebelavam contra a exploração feudal, burgueses manifestavam e tentavam armar-se para participar na revolução ou, simplesmente, para defender-se. A tomada da Bastilha só veio demonstrar que a Revolução já estava em pleno centro de Paris. Em agosto, atemorizados os deputados mais conservadores pela efervescência das ruas, a Assembléia votou a extinção dos privilégios, a proibição da venda dos ofícios públicos, o fim das isenções impositivas e, no dia 29, o texto final da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.

A Declaração colocava como "meta de toda associação política" a "conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem", incluindo entre esses direitos naturais "a resistência à opressão". Embora não atacasse abertamente à dinastia imperante, o artigo 3º estabelecia: "O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação. Nenhum corpo, nenhum indivíduo, pode exercer autoridade que dela não emane expressamente". A lei, em conseqüência, só pode ser "expressão da vontade geral".

Consoante com esses princípios e com a inquietação generalizada por banir definitivamente os abusos do poder, a Declaração define um elenco de garantias individuais que seria consagrado posteriormente pela maioria das Constituições modernas: Igualdade perante a Lei, anterioridade da mesma com relação ao delito, presunção de inocência até a demonstração da culpa, proibição de maus tratos e punições excessivas, inviolabilidade da propriedade, liberdade de opinião, de culto, de expressão e de imprensa. Embora não constituísse, ainda, uma Constituição completa, ela determinou os objetivos mínimos que iriam nortear a Constituição e foi, por decisão da Assembléia, acrescentada a ela a jeito de prólogo.

O Rei Tutelado

Não foi sem agitações e conflitos que transcorreu o período da Assembléia Constituinte. Em outubro, mobilizações populares provocadas por rumores de conspiração realista obrigaram à família real a sair de Versalhes e estabelecer-se em Paris, no palácio das Tulherias, onde também a Assembléia passou a realizar suas sessões. Paulatinamente, seus partidários mais conservadores iam emigrando e buscando refúgio em outras cortes européias, onde aproveitaram para organizar – com apoio dos monarcas, que começavam a sentir-se em perigo pelo crescimento da agitação revolucionária – as forças que tentariam restaurar a ordem antiga. Em 21 de junho de 1791 a família real arriscou a fuga, mas foi interceptada em Varennes e reconduzida a Paris. Não fosse a resistência da ala moderada da Assembléia, que temia perder o controle da situação, a atividade conspiratória do rei, então explícita, seria motivo suficiente para dispor a sua deposição. Apesar dos protestos republicanos, que chegaram a ganhar a rua e ocasionar derramamento de sangue, Luís XVI foi suspendido por um breve período, mas logo foi restaurado no trono sob a falsa alegação de que fora conduzido à fuga contra sua vontade.

O projeto recebeu aprovação real em 14 de julho de 1790, iniciando o costume de comemorar a tomada da Bastilha como data aniversária da Revolução. O texto final da Constituição foi promulgado em setembro de 1791. Era, ainda, essencialmente monárquica, embora destacasse que a soberania "pertence à nação [...] de quem, unicamente, emanam todos os poderes". Neste entendimento, o poder executivo seria "delegado ao rei, para ser exercido, sob a sua autoridade, pelos ministros e outros agentes responsáveis". Embora considerando a pessoa do rei "inviolável e sagrada" a Constituição determina que "ele não tem na França autoridade superior à da lei [...] só reina por ela, e não é senão em nome da lei que ele pode exigir a obediência".

O Poder Legislativo – contra o qual o rei teria apenas um direito de veto suspensivo – seria confiado a uma Assembléia de 745 membros, eleitos por voto indireto e censitário. Com essas duas limitações, os moderados tentavam assegurar-se uma certa independência das pressões camponesas e da baixa burguesia. Mesmo assim, a Constituição introduzia grandes avanços ao tornar todos os cargos públicos eletivos e vedar explicitamente a sua venda e hereditariedade. A justiça seria "prestada gratuitamente pelos juízes eleitos oportunamente pelo povo e instituídos por cartas-patentes do rei", havendo a nível nacional um Tribunal de Cassação encarregado da revisão de suas decisões. Para dar-lhes suporte jurídico, seria feito "um código das leis cíveis comuns a todo o reino". Uma corte especial, integrada por membros do Tribunal de Cassação e "altos jurados", conheceria "dos delitos dos ministros e agentes principais do poder executivo e dos crimes que ataquem à segurança geral do Estado".

A abolição dos privilégios fica estabelecida desde o preâmbulo: "Não há mais nem nobreza, nem paridade, nem distinções hereditárias, nem distinções de ordens, nem regime feudal, nem justiças patrimoniais, nem nenhum dos títulos, denominações e prerrogativas que deles derivam, [...] nem nenhuma outra superioridade que a dos funcionários públicos no exercício das suas funções". Para acabar com a estrutura feudal que permeava a geografia política, o país foi dividido em "quatrocentos e vinte e três departamentos, cada departamento em distritos, cada distrito em cantões", identificando cada uma dessas divisões pelo nome de algum acidente geográfico ou fenômeno natural característico. Apesar de ter incorporado a Declaração de 1789, a Constituição abunda sobre os direitos essenciais e estabelece a necessidade de providências concretas "para educar os meninos abandonados, socorrer os pobres doentes, e dar trabalho aos pobres válidos que não possam procurá-lo". Institui, também, "uma Instrução pública, comum a todos os cidadãos, gratuita, considerando os pontos de ensino indispensáveis para todos os homens".

O Terror

À semelhança da Constituição americana, a francesa de 1791 teve o cuidado de determinar claramente os procedimentos para sua revisão. Porém, nenhuma dessas determinações seria cumprida porque a agitação social e a disputa pelo poder as tornariam logo impraticáveis. Tratadas que foram com prioridade as reformas políticas, a situação da economia era crítica e a guerra ameaçava as fronteiras. Vendo sua causa perdida e temendo por sua integridade física, os deputados absolutistas tinham abandonado a Assembléia, mas o conflito crescia entre os moderados, que se contentavam com uma monarquia constitucional, e os radicais, que advogavam a destituição imediata do rei e a proclamação da República. As agitações decorrentes da "noite de Varennes", após a qual a Guarda Nacional – conduzida pelos moderados – chegou a atirar sobre uma multidão de manifestantes que clamavam pelo fim da monarquia, colaboraram para acirrar o confronto.

Promulgada a Constituição, foi eleita a primeira Assembléia Nacional nos novos moldes. Tendo os membros da Constituinte declarado a si mesmos inelegíveis, a nova Assembléia foi constituída, mormente, por pessoas inexperientes em política e, portanto, sem uma plataforma de governo definida. Existiam, entretanto, minorias ativas e coesas que aproveitavam as indecisões da maioria para impor seus pontos de vista. À direita – palavra que, indicando originalmente a simples distribuição física dos deputados, iria ficar no linguajar político como sinônimo de conservadorismo – sentavam-se os moderados ou "feuillants". À esquerda, os "girondins", republicanos da alta burguesia que aspiravam a uma república federativa semelhante à dos Estados Unidos, e os "jacobins" e "cordeliers", pequenos burgueses que advogavam por uma república forte e altamente centralizada.

Durante uma primeira etapa, os girondinos, donos de um projeto mais claro, conseguiram captar os votos do resto da esquerda e de numerosos deputados indefinidos, avançando nas reformas de orientação democrática e na laicização do Estado, mas a complexa situação político-militar foi radicalizando as posições. Os "emigrados", com o apoio do Sacro-Império e a mal disfarçada cumplicidade da Coroa, preparavam-se para a invasão. Informações imprecisas magnificavam o perigo e, na Assembléia, começou-se a falar em "exportar a revolução". Se a conspiração monarquista não fosse sufocada, todas as coroas absolutistas acabariam aliando-se contra a França. Para salvar a Revolução era preciso levá-la ao resto da Europa pela força das armas.

Em vão os jacobinos avisaram que o projeto poderia voltar-se contra a própria França. "Ninguém gosta de missionários armados", advertia Robespierre. "É de se temer que um de nossos generais, quando coroado pela vitória, traga suas tropas eufóricas para a Capital e aqui triunfe como déspota", acrescentava, visionariamente, Marat. Mas o processo já era incontido. Em abril de 1792, Luís XVI – ainda formalmente rei, apesar de estar virtualmente prisioneiro desde Varennes – entrou na Assembléia para declarar guerra à Hungria e à Boêmia. A euforia inicial desapareceu logo, ao ver que a Prússia, poderosa aliada desses reinos, invadia à França e os altos comandos do exército – muitos deles, ainda, ocultos partidários da monarquia – recuavam, entregando sem resistência as suas posições. Em julho, com suas forças acampadas a dois dias de Paris, o Duque de Brunswick declarou rebeldes a todos os soldados franceses e ameaçou com arrasar a cidade se a família real fosse incomodada.

Subitamente conscientes do seu erro, os girondinos ficaram sem ação. Os jacobinos, inicialmente contrários à aventura belicista, optaram por tomar a condução da resistência. A plebe, influenciada por eles, levantou-se em 10 de agosto, atacando o palácio das Tulherias. Com a sua guarda pessoal massacrada, o rei buscou refúgio na Assembléia, mas obteve, apenas, a notícia da sua destituição. Dono da situação, Robespierre anunciou seu plano para enfrentar os invasores. Pouco depois, surpreendentemente, uma improvisada força de voluntários, mal armados e mal treinados, fazia recuar o mais poderoso exército da Europa.

Com a queda dos girondinos e a prisão do rei, os jacobinos ficaram no controle da situação. A Assembléia foi dissolvida e em seu lugar foi convocada uma Convenção, eleita por sufrágio universal, que seria incumbida de elaborar a nova Constituição. Decididos a salvar à Pátria e à Revolução, por qualquer meio, os jacobinos iniciaram uma cruenta purga, invadindo à Comuna de Paris e substituindo seus membros pela força das armas. Também invadiram os cárceres, executando, em seis dias, 1100 realistas que se encontravam presos. Em 21 de janeiro de 1793, o próprio rei foi executado. Em julho, 32 deputados girondinos, que advogaram por ele no julgamento, enfrentaram também à guilhotina.

Antes disso, em 24 de junho, fora promulgado um Ato Constitucional. Instituía a "república francesa [...] una e indivisível". O voto seria universal – excluídas as mulheres e os menores de 21 anos – e direto para as eleições legislativas, delegando aos eleitores "a escolha dos administradores, dos árbitros, dos juízes criminais e de cassação". O corpo legislativo – novamente chamado de Assembléia Nacional – escolheria, dentre uma lista de nomes propostos pelas assembléias regionais, "um conselho executivo composto de vinte e quatro membros".

Mas esse Conselho Executivo não estava ainda em funções e a Convenção – essencialmente um corpo legislativo – não conseguia responder aos problemas com a necessária celeridade. Esgotado o entusiasmo inicial, o improvisado exército amargava suas primeiras derrotas e, embora alguns setores lucrassem com a guerra, a grande maioria do povo passava fome, situação que oferecia campo fértil a todo tipo de extremismos. Em julho, pretendendo agilizar essas respostas, a Convenção criou um corpo executivo de nove membros sob o nome de Comitê de Salvação Pública. Dominado pelos principais líderes jacobinos, esse corpo passaria logo a concentrar todo o poder político, derivando numa virtual ditadura. Antes mesmo de entrar plenamente em vigor, o Ato Constitucional transformou-se em letra morta.

O Comitê governou com mão de ferro. Apoiado nas camadas mais pobres da população, lançou-se a uma desesperada reforma dos costumes, tentando instaurar a "Republica da Virtude", baseada no "culto da razão". Enérgicas medidas foram tomadas contra a corrupção e a especulação. O confronto com a Igreja – latente desde a desapropriação dos seus bens em 1789 – chegou a seu ponto máximo. Os templos foram clausurados e implantou-se o culto oficial ao "Ente Supremo", divindade acessível apenas pelo raciocínio e independente de toda revelação. O calendário gregoriano, baseado na data do nascimento de Cristo, foi substituído pelo novo "calendário republicano", tomando como origem 22 de setembro de 1892 em razão de ser esse o dia em que a Monarquia foi abolida.

Malgrado as boas intenções dos ditadores – que, no dizer de Marat, viram-se forçados a "organizar, temporariamente, o despotismo da liberdade para esmagar o despotismo dos reis" – os membros do Comitê encontraram-se logo prisioneiros da sua própria violência. À atividade dos "emigrados" somavam-se já não apenas os "feuillants" como também os "girondins" e boa parte dos "jacobins" que, perdida a anterior influência no governo, começavam a ver, cada vez mais próximo, o dia em que os seus próprios pescoços descansariam na guilhotina.

Tal como acontecera a Cromwell nos últimos tempos da Revolução Inglesa, os líderes revolucionários podiam confiar, apenas, no medo que inspiravam. Em 18 de setembro, uma lei declarou suspeitos aos que, por sua conduta, relações ou propósitos, se mostrassem partidários da tirania, do federalismo ou inimigos da liberdade, e obrigou todos os cidadãos a tirar "certificados de civismo", expedidos pelas municipalidades e revisados pelos comitês revolucionários. Mais de trezentas mil pessoas foram encarceradas como suspeitas. O "despotismo da liberdade" começou a rachar-se por disputas internas. Hébert, condutor do grupo mais radical, foi condenado com seus partidários numa tentativa de Robespierre para recuperar o controle da situação. Danton, que, pouco antes, comandava massacres de monarquistas, tentou um golpe para deter o banho de sangue e acabou também na guilhotina.

O Tribunal Revolucionário de Paris foi reformado, dispensando formalidades legais para acelerar suas decisões. As execuções públicas chegaram a 15, por dia, e um novo aqueduto foi construído para poder escoar o sangue. Calcula-se que 4.000 pessoas, – entre elas, 900 mulheres, – tenham sido condenadas por esse tribunal. Em toda a França, umas 17.000 pessoas foram executadas. Somando os linchamentos, as mortes em prisão e as execuções sumárias, no campo de batalha, chega-se a um total aproximado de 40.000. A falta de controle possibilitava todo tipo de excessos. O convencional Jean Baptiste Carrier, à cabeça do tribunal de Nantes, foi acusado de enviar à morte 8.000 pessoas, em três meses, sendo 4.000 delas em apenas vinte dias. Insatisfeito com a guilhotina – que, aliás, fora instituída pela Revolução para evitar o sofrimento desnecessário e a humilhação dos condenados – fazia amarrar casais nus jogando-os às águas do Loire, estranha mistura de punição com divertimento perverso que chamava de "mariages républicains". Em vão Saint-Just lembrava que, em tempos da monarquia, 3.000 pessoas, por ano, eram rodadas (torturadas na roda) e 15.000, enforcadas. Em vão destacava que quatrocentas mil pessoas foram encontradas nos cárceres. Não era o uso de iguais ou similares métodos que cabia esperar do processo libertador.

A ditadura do terror acabou em 27 de julho de 1794. Os últimos deputados de oposição – monarquistas, dantonistas, "feuillants" e "girondins" – lideraram uma manobra desesperada, prendendo os robespierristas e sitiando a Comuna de Paris. Era uma movida muito perigosa. Os líderes da ditadura gozavam de grande prestígio entre os "sans-culottes" (plebeus) e "bras-nus" (miseráveis), que até então constituíram a sua principal base de sustentação, mas também eles estavam fartos de sangue. Robespierre, Saint-Just e seus companheiros foram presos e executados sem que ninguém reagisse organizadamente em sua defesa.

A Restauração Conservadora

Os triunfadores, chamados "termidorianos" por ter sido o golpe perpetrado em 27 de julho – "9-termidor" ou "nono dia do mês do calor", no calendário republicano –, avocaram para eles a elaboração de uma nova Constituição que impedisse a repetição de acontecimentos similares. Não eram movidos por propósitos altruístas. Após cinco anos de guerras e crises políticas e econômicas, não havia mais espaço político para idealismos. Os golpistas – equilibrando-se dificultosamente entre os burgueses, que tentavam recuperar o perdido controle dos rumos da Revolução, e os monarquistas, para os quais nunca deveria ter havido revolução nenhuma – procuraram eternizar-se no poder, determinando que os membros do executivo e dois terços dos novos corpos legislativos fossem eleitos dentre os atuais membros da Convenção. O decreto – que visava, principalmente, excluir do governo os republicanos mais radicais – conseguiu, pelo contrário, irritar os monarquistas, que também iriam ficar em minoria e tramaram uma nova insurreição, logo sufocada por um ainda quase desconhecido general Bonaparte.

Pela primeira vez, além da já clássica "declaração de direitos", essa Constituição (de "5 Fructidor An III" ou 22 de agosto de 1795) contém uma declaração de deveres, começando por princípios genéricos: "Não faças a outrem o que não desejares que te seja feito. Faz constantemente aos outros o bem que desejarias receber".

Num terreno mais prático – também pela primeira vez – o Poder Legislativo era dividido em duas câmaras: o Conselho dos Quinhentos e o Conselho dos Anciãos. O primeiro, chamado assim pelo número, "invariavelmente fixado", de integrantes, tinha como exigência a idade mínima de trinta anos e estava incumbido da "proposição das leis". O segundo, com idade mínima de quarenta anos, era composto por duzentos e cinqüenta membros e tinha a missão de "aprovar ou rejeitar as resoluções do Conselho dos Quinhentos". Tratava-se, portanto, de um poder revisor, evidentemente pensado para filtrar eventuais iniciativas radicais dos membros mais jovens. Com um critério bastante tradicionalista, acreditava-se na sabedoria – ou no conservadorismo – dos cabelos brancos, exigindo-se, nos jovens, a idade que os Estados Unidos procuravam nos membros da Câmara Alta. Descuidavam-se, entretanto, outros detalhes de fundamental importância, que o modelo americano resolvera com competência surpreendente, por tratar-se de uma primeira experiência. Enquanto a Constituição dos Estados Unidos outorgava dois anos de mandato aos deputados (ou "representatives", como nela são chamados os membros da "câmara baixa") e seis aos senadores, dando, assim, ao Senado uma estabilidade que o independentizasse dos modismos e tendências do momento, a francesa de 1795 igualava a renovação de ambas as câmaras "todos os anos por terços".

Outro problema a resolver era o do poder executivo, confiado pela Constituição anterior ao Conselho Executivo que não chegou a ser conformado. Mais expeditiva, a de 1795 o delega a um Diretório de cinco membros (o anterior era de 24), ainda nomeados pelo corpo legislativo, mantendo, assim, a tendência parlamentarista do governo. O Diretório estava incumbido de prover, "de acordo com as leis, à segurança exterior ou interior da república" de "fazer as proclamações, conforme às leis e para sua execução" de dispor da força armada, "sem que, em nenhum caso, nem o diretório coletivamente nem nenhum de seus membros, possam comanda-la", de nomear os generais em chefe, de supervisionar a execução das leis "nas administrações e tribunais, pelos comissários de sua nomeação", de nomear os ministros e afastá-los quando julgassem conveniente. Todas as eleições voltavam a ser indiretas e, no caso particular dos membros do Diretório, só poderiam ser escolhidos "dentre os cidadãos que têm sido membros do corpo legislativo ou ministros". Mesmo mantendo as formas republicanas, garantia-se, assim, um governo de claras tendências conservadoras.

A experiência iria demonstrar que esse poder, certamente mais executivo que o anterior, não o era tanto quanto as circunstâncias exigiam, embora alguns avanços militares dessem ao Diretório um novo fôlego. A guerra insistia em drenar vidas e recursos econômicos. A crise, herdada dos governos anteriores, continuava a crescer. Faltava emprego e a inflação era altíssima. Fosse em razão da própria crise, fosse pela falta de braços, as atividades produtivas estavam quase paradas e, sem produção, o empobrecimento da população se aprofundava dia a dia. Os "emigrados" – que, após o golpe, começavam a voltar y a retomar seus direitos políticos – colocavam a culpa da crise na república e reclamavam a restauração da monarquia. O povo, novamente marginalizado e faminto, protestava pelos direitos conculcados e pressionava o governo a combater a especulação e o desemprego.

Nasce um Novo César

Estava pronto o cenário para que o vaticínio de Marat fosse cumprido. Napoleão não chegava "coroado pela vitória" – acabava de ser vencido por Néelson no Egito – mas ainda conservava a aura dos seus triunfos anteriores e, talvez por ter ficado tanto tempo afastado, era uma figura impoluta, sem compromissos conhecidos com nenhum partido e, aparentemente, interessado apenas no bem da França. Era a figura ideal para liderar o governo forte que se pretendia: um governo que, acima das ideologias setoriais, tirasse o país da anarquia e restaurasse o bem-estar geral.

O golpe foi perpetrado em 18 Brumário do ano VIII (9 de novembro de 1799). O Diretório foi dissolvido e, em seu lugar, foi nomeado um governo temporário de três "cônsules", assim chamados em alusão à República romana, tomada como modelo – bastante idealizado – pelo novo regime. Apenas um mês depois, mais uma Constituição era publicada. Não houve Assembléia Constituinte nem participação popular. A nova carta legitima o Consulado, transformando-o em Poder Executivo permanente. O primeiro cônsul "promulga as leis; nomeia e revoga à vontade os membros do conselho de Estado, os ministros, os embaixadores e outros agentes exteriores em chefe, os oficiais de terra e de mar, os membros das administrações locais e os comissários do governo junto aos tribunais [...] os juízes criminais e cíveis, bem como os juízes de paz e os juízes de cassação". Nos demais atos do governo, os outros cônsules têm voz consultiva: "assinam o registro destes atos para constatar sua presença e, se quiserem, consignam suas opiniões, após o qual a decisão do primeiro cônsul prevalece".

O Poder Legislativo é bicameral, dividido em Tribunat, que consta de "cem membros, com a idade de vinte e cinco anos no mínimo" e Corpo Legislativo, composto de "trezentos membros, com a idade de trinta anos ao menos, sendo "um cidadão, ao menos, de cada departamento da república". Os membros de ambas as Câmaras são "renovados por quintos a cada ano". Acima deles existe, ainda, o "Senado Conservador", composto de "oitenta membros, inamovíveis e vitalícios, com a idade de quarenta anos ao menos". Os projetos de lei são propostos pelo Consulado. O Tribunat os discute e vota a sua adoção ou rejeição, enviando "três oradores, escolhidos no seu seio, pelos quais os motivos do voto que expressou sobre cada um destes projetos são expostos e defendidos perante o corpo legislativo". Esse corpo "faz a lei, estatuindo por escrutínio secreto e sem nenhuma discussão por parte de seus membros, sobre os projetos de lei debatidos diante dele pelos oradores do Tribunat e do Governo". À continuação, o decreto "é promulgado pelo primeiro cônsul, a menos que nesse período tenha sido interposto recurso ao Senado por causa de inconstitucionalidade". Por sua parte, o Senado "mantém ou anula todos os atos que lhe são deferidos como inconstitucionais pelo tribunat ou pelo governo". Esse recurso, entretanto, não se aplica às leis já promulgadas.

Não há eleições, nem diretas nem indiretas. Apenas, os cidadãos "designam, por seus sufrágios, os dentre eles que acreditam mais apropriados para gerir os assuntos públicos", do que resulta uma "lista de confiança" de pessoas "elegíveis para as funções públicas". Dentre os nomes dessa lista, o Senado escolhe "os legisladores, os tribunos, os Cônsules, os juízes de cassação e os comissários à contabilidade". Bonaparte, até então cônsul provisório, é nominalmente investido pela Constituição na função de primeiro cônsul, com mandato garantido por dez anos e indefinidamente reelegível.

Pela Graça de Deus e as Constituições da República

A expectativa de um governo forte foi cumprida. Embora avassalando as liberdades democráticas, Napoleão conseguiu criar um Estado coeso e eficiente, norteado pela racionalidade e a produtividade. Regulamentou novos impostos e reformou a infra-estrutura de recolhimento e administração das finanças públicas, favorecendo a centralização e o controle. Criou o Tribunal de Contas e o Banco da França. Equilibrou o orçamento e fez da moeda francesa a mais forte do continente, lançando-se, a seguir, a uma ferrenha concorrência com a Inglaterra, que até então predominava na economia mundial.

Também a estrutura do governo sofreu profundas reformas, vinculando todos os níveis da administração pública a uma pirâmide de comando solidamente controlada pelo poder central. No âmbito judiciário, embora permanecessem os tribunais instituídos pela Constituinte, foi abolida a eleição dos juízes – exceto para os de paz, que eram providos por eleição direta para um período de três anos – passando a nomeação a ser feita pelo governo. Contavam, sim, com as garantias de inamovibilidade e vitaliciedade, embora nem sempre essas salvaguardas fossem respeitadas.

Acima dos tribunais de primeira instância, foram criados outros, de apelação. No penal, existia um Tribunal Criminal, com júris de acusação e de julgamento, e – no nível departamental – diversos tribunais correcionais. Os jurados eram escolhidos com base em listas elaboradas pelos juízes de paz.

No topo dessa estrutura, havia um Tribunal de Cassação, que judicava "sobre os pedidos de cassação contra os julgamentos em última instância proferidos pelos tribunais, sobre os pedidos em remissão de um tribunal a outro por causa de suspeição legítima ou de segurança pública". O Tribunal de Cassação não conhecia do fundo das questões arguídas, mas podia cassar "os julgamentos proferidos com base em procedimentos nos quais as formas têm sido violadas, ou que contêm qualquer contravenção expressa à lei".

Porém, os feitos mais destacados do grande corso aconteciam além das fronteiras. A seu modo, ele realizara o velho sonho de exportar à Revolução, embora, no caso, se tratasse de uma revolução adaptada aos gostos e interesses da alta burguesia, que passara a substituir os nobres no domínio do Estado. Nessa empreitada, as forças de Napoleão percorreram a Europa toda, de Portugal à Russia, e até entraram na África, onde cientistas que o acompanhavam iriam celebrizar-se ao iniciar estudos pioneiros sobre a antiga civilização egípcia.

Coroado de glórias e desbordando de ambição, Napoleão não tinha mais rivais. Em 1802, através de um plebiscito, conseguiu dar, oficialmente, caráter vitalício ao seu cargo de primeiro cônsul. Em 1804, uma Sénatus Consulte (Consulta do Senado) o declarou, "pela graça de Deus e as constituições da república imperador dos Franceses". Não foi elaborada uma nova Constituição, mas, à semelhança da Inglaterra, diversos documentos – o Ato Constitucional de 22 frimário do ano VIII, as Consultas do Senado de 14 e 10 termidor do ano X e a similar de 28 floreal do ano XII – passaram a ser reconhecidos conjuntamente. Houve, entretanto, importante expansão da normativa infra-constitucional, cujo produto mais transcendente seria o Código Civil, que começara a ser cogitado nas assembléias revolucionárias de 1790, mas só veio a ser concluído e promulgado em 1804.

A meteórica ascensão do imperador dos franceses incomodava muita gente. Apoiado pela alta burguesia – principal beneficiária das ações de governo – mas também idolatrado pelas massas, Napoleão chegara a uma situação de virtual onipotência, a ponto de, convocado o Papa a Paris para realizar a coroação, tomar das suas mãos a coroa para colocá-la, pessoalmente, na própria cabeça, desafiando abertamente não apenas à autoridade pontifícia mas – também e principalmente – a origem e a justificação teocrática do poder da monarquia.

Coroado, continuava a usar farda militar mas revestia-se, nas solenidades, do luxo extremo que seria eternizado nos retratos de David e Ingres. Qual novo César, fazia questão de cingir coroa de louros – no caso, feita em ouro – e de ornar seu cetro com a figura de uma águia, símbolos ambos da glória clássica. Mesmo o Senado e os títulos de Imperador e Cônsul remetiam à antigüidade romana e a triunfal expansão das fronteiras pretendia impor sobre a Europa uma sorte de "pax francesa".

Esses símbolos eram caros à França pós-revolucionária, que sonhava com um Estado forte e organizado, mas não queria voltar à monarquia deposta e preferia buscar na antigüidade clássica um modelo idealizado de governo. Porém, esse império em constante expansão irritava e atemorizava às demais potências, que viam ameaçados não apenas seus interesses comerciais e territoriais mas a sua própria sobrevivência. Os monarquistas "emigrados", ainda procurando um meio de viabilizar a restauração da dinastia interrompida, colaboravam para essa reação, colocando-se como governantes no exílio e negando a legitimidade das instituições criadas pela Revolução e pelo Império. Simultaneamente, aproveitavam a fase conservadora para retomar suas conexões na França e minar, por dentro, o poder imperial.

A reviravolta viu-se facilitada pelo fracasso de Napoleão na Rússia, onde, apesar da superioridade militar, foi virtualmente vencido pelas condições climáticas, vendo-se forçado a uma penosa retirada com mais de quatrocentas mil baixas estimadas. Quebrada a aura de invencibilidade, aumentou a ambição das potências ainda independentes e arrefeceram as tentativas de reação nas áreas já submetidas. Enfraquecido por dentro e por fora, o império entrou em colapso em 1814. Em 9 de março, pelo Tratado de Chaumont, formou-se a Quádrupla Aliança, integrada por Inglaterra, Prússia, Rússia e Áustria. Em 31 do mesmo mês, forças prussianas e austríacas tomaram Paris. Napoleão abdicou em 6 de abril, assinando, logo após, um acordo que garantia sua soberania sobre a ilha de Elba, onde deveria permanecer indefinidamente confinado.

Morto, em 1795, o filho homônimo de Luís XVI, que não chegou a ser rei, mas foi reconhecido como tal na sucessão dinástica, o conde da Provenza, irmão do monarca guilhotinado, ascendeu ao trono com o nome de Luís XVIII. De caráter pouco enérgico, porém inteligente e liberal, o novo monarca não tentou restaurar o absolutismo, optando por instaurar uma monarquia constitucional. A sua Constituição, outorgada em 4 de junho de 1814, foi elaborada por uma comissão ad hoc, depois de desacolher um projeto insatisfatório oriundo do Senado. Estabelecia um Poder Executivo, integrado pelo rei e seus ministros, e um Legislativo bicameral, com senadores nomeados pelo rei e deputados eleitos por voto censitário.

A restauração de Luís XVIII era precária, sustentando-se apenas no apoio e na proteção das potências aliadas. A população o rejeitava majoritariamente. Interrompida a ordem política e administrativa imposta por Napoleão, enfraquecidas as finanças pela guerra e, principalmente, ameaçadas as conquistas revolucionárias pelos nobres que retornavam e reclamavam de volta suas propriedades e privilégios, a França beirava à guerra civil. Esse processo foi bruscamente interrompido por Napoleão, que em 26 de fevereiro de 1815, após exortar os franceses a arrancar "as cores que a Nação proscreveu e que durante 25 anos serviram de símbolo para os inimigos da França" fugiu inesperadamente da sua reclusão em Elba e entrou em Paris, sendo carregado em triunfo.

O Derradeiro Vôo da Águia

Mais uma vez Imperador, Napoleão procurou reorganizar o governo através do Ato Adicional às Constituições do Império que, no artigo 1º, reconhece, explicitamente, a validade das normas anteriores, confirmando e mantendo todas as disposições não modificadas pelo mesmo Ato. O preâmbulo declara visar, "de um lado, conservar do passado o que há de bom e de salutar e, do outro, tornar as constituições de nosso império conformes em tudo aos votos e às necessidades nacionais, bem como ao estado de paz que desejamos manter com a Europa". Assim, as novas disposições tendiam "a modificar e aperfeiçoar estes atos constitucionais, a rodear os direitos dos cidadãos de todas suas garantias, a dar ao sistema representativo toda sua extensão, a investir os corpos intermediários da consideração e do poder desejáveis; em resumo, a combinar o mais alto ponto de liberdade política e de segurança individual com a força e a centralização necessárias para fazer respeitar pelo estrangeiro a independência do povo francês e a dignidade da nossa coroa".

A estrutura de governo, fortemente centralista, atribui ao Imperador não apenas o Poder Executivo como também o Legislativo, secundado, nesse aspecto, por duas Câmaras: os Pares, nomeados pelo Imperador, em forma irrevogável e hereditária, e os Representantes, eleitos pelo povo. Os membros da família imperial, na ordem da hereditariedade, são "pares de direito". O Ato Adicional conclui com um título dedicado aos "Direitos dos Cidadãos" que, após enumerar garantias já contidas em declarações anteriores, estabelece que o povo francês "não tem entendido e não entende dar o direito de propor o restabelecimento dos Bourbons ou de nenhum príncipe desta família sobre o trono, mesmo em caso de extinção da dinastia imperial, nem o direito de restabelecer a antiga nobreza feudal, os direitos feudais e senhoriais, os dízimos, nem nenhum culto privilegiado e dominante".

Tal providência teria pouco ou nenhum efeito. As mesmas potências que obrigaram o Imperador a retirar-se em 1814, já organizavam uma nova aliança. Apesar do declarado "estado de paz que desejamos manter com a Europa", ninguém acreditava que Napoleão fosse ficar dentro de suas fronteiras. Áustria e Inglaterra preconizavam uma nova ordem européia, baseada no equilíbrio do poder, e não estavam dispostas a permitir que um novo ciclo imperialista restaurasse a hegemonia francesa. Após um curto reinado de pouco mais de três meses, Napoleão foi definitivamente vencido em Waterloo.


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