Junot protegendo a Cidade de Lisboa.

Junot protegendo a Cidade de Lisboa
(óleo de Domingos Sequeira)
 

  Memória
da Justiça Brasileira - 3
Capítulo 5

Limitação do Poder em Portugal

Que o poder real reconhecesse limitações não era, propriamente, uma novidade em Portugal.

Fossem ou não apócrifos os Autos das Cortes de Lamego – invocados, em 1640, por D. João de Bragança para justificar sua pretensão ao trono de Portugal – bastariam as publicações de Francisco Andrade Leitão, António Souza de Macedo, Aspilcueta Navarro, Francisco Suarez e Frei Luís de Sá – escritas em defesa da Restauração e amplamente divulgadas através da universidade, da imprensa e do púlpito – para constituir uma sólida base doutrinária em torno às idéias da origem popular do poder e do caráter delegado do exercício da autoridade.

Não há necessidade de insistir muito sobre estes conceitos, já tratados nos volumes anteriores. Construída com base num complexo jogo de controles e concessões, a monarquia portuguesa precisava dos nobres, para sua defesa, do clero, para legitimar seu domínio e pôr freio às pretensões dos outros nobres, e do povo – especificamente, dos "homens bons" que integravam os "conselhos" municipais – para sustentar e – por que, não? – controlar o poder das outras duas classes. Obrigava-se, por sua parte, com todos e cada um deles, através de privilégios, forais, cartas de doação e outros instrumentos escritos, bem como pela palavra dos Três Estados, reunidos em Cortes, que, embora tivesse apenas caráter consultivo, não raro derivava em imposição de fato, que o monarca acabava aceitando, a contragosto, para evitar maiores inconvenientes.

Muito especialmente, a exemplo do já apontado com relação a outras monarquias européias, a criação de novos impostos e a majoração dos já existentes dependiam da sua aprovação em Cortes. Caso contrário, os contribuintes chegavam a sentir-se desobrigados e eximir-se, de fato, do recolhimento dos tributos. Não faltam, na história, exemplos dessa negativa, às vezes derivando em agitação popular e até mesmo em insurreição armada.

Essa situação, que perdurou por séculos, foi drasticamente modificada entre o final do século XVII e a primeira metade do XVIII. Afastadas as conseqüências da longa guerra contra a Holanda, a produção colonial voltou a crescer e o Brasil, antes desconhecido e negligenciado, transformou-se numa fonte de recursos que parecia inesgotável. Especialmente o ouro, alimentando um fluxo de capitais cujo limite ainda não se vislumbrava, submergia à tradicionalmente modesta monarquia portuguesa numa opulência nunca antes experimentada.

De fato, a produção das colônias ultrapassava em muito – chegando a tornar dispensável – à das províncias peninsulares. Por outra parte, as colônias eram posse da Coroa como conseqüência do descobrimento e da conquista. Seus habitantes não gozavam de foros largamente consolidados e tanto as leis quanto os impostos podiam ser modificados unilateralmente pela Coroa, que devia cuidar-se, apenas, de não exagerar na pressão tributária a ponto de provocar a rebelião espontânea dos moradores.

Assim, embora as garantias e privilégios já concedidos continuassem vigorando, as Cortes se fizeram mais esparsas até desaparecerem por completo. O governo tornou-se, progressivamente, mais centralizado e, a exemplo da França e outras nações centro- européias, Portugal foi assumindo as características de uma monarquia absoluta.

Do Marquês de Pombal a D. José II

A transformação processava-se gradualmente e sem grandes declarações. Independentizado, pela exploração das colônias, da necessidade de gerar recursos internos, o reinado de D. João V ia mergulhando na abundância e aproximando-se do poder absoluto, mas não achava necessário – ou prudente – modificar explicitamente a estrutura legal em vigor. As Ordenações Filipinas, herdadas do já longínquo domínio espanhol, continuaram a vigorar formalmente, enquanto a nova ordem era construída de fato. As poucas reformas que era preciso explicitar eram oficializadas por via de legislação extravagante.

D. José I, já confortavelmente baseado no resultado de várias décadas de prosperidade e centralização progressivas, atreveu-se a concretizar reformas mais explícitas. Não era alheia a isso a presença do Marquês de Pombal, que vinha de desenvolver funções diplomáticas em nações absolutistas. Fortemente influenciado pelo Iluminismo, concentrou-se em reformar a organização e aumentar a eficiência do Estado. Simultaneamente meio e fim, a centralização do poder permitiria aumentar não somente a fazenda real como a prosperidade dos seus súditos. Déspota esclarecido, como os governantes que conhecera nas suas viagens, Pombal unia aos excessos de autoritarismo reformas verdadeiramente louváveis nos aspectos político, econômico, social e religioso.

Pombal não tinha a má consciência dos governantes anteriores. Imbuído da legitimidade da sua missão modernizadora, não entendia suas reformas como transgressões a uma ordem tradicionalmente aceita, senão como medidas visionárias, destinadas a tirar o Reino dos antigos erros e colocá-lo na trilha que outros países já transitavam. Assim, não teve dúvida em reformar à Universidade e até mesmo em mandar rescrever as Ordenações, que teriam assumido um definido caráter absolutista se chegassem a ser compiladas sob a sua direção. Mas a morte de D. José, acontecida em 1777, deixou sem sustentação a autoridade do dinâmico ministro. D. Pedro III, orientado por conselheiros adversos a Pombal, deflagrou o processo da "Viradeira". Não se tratava de questionar o absolutismo ou elaborar novas formas de governo, mas de desmontar as reformas de Pombal e restaurar os privilégios perdidos por seus opositores. No fundo, D. Pedro e D. Maria eram tão absolutistas quanto os seus predecessores mas, como se verá, tinham um controle menos estreito sobre os atos dos seus homens de confiança.

Em 1778, poucos meses após a queda do Marquês, a reforma das Ordenações foi encomendada a uma comissão de juristas. Não se contavam, ainda, entre eles, aqueles que viriam a ser seus principais protagonistas. A grande controvérsia – sinal de que nem todas as vozes autorizadas eram partidárias do absolutismo – polarizou-se entre Ribeiro dos Santos e Pascoal de Melo Freire, incorporados à comissão, por decisão da Rainha, em 1783. Absolutista convicto, por razões de cunho teocrático, Melo Freire julgava esta ideologia automaticamente decorrente da concepção do poder como delegação divina. Já Ribeiro dos Santos, mais vinculado à tradição nacional e conhecedor das experiências inglesas na limitação constitucional da monarquia, advogava pela volta das Cortes, cuja suspensão – postulava – não deveria ter sido decidida sem o mútuo consentimento da Coroa e do povo. Resgatava não apenas os Autos das Cortes de Lamego como inúmeras normas, escritas e consuetudinárias, que davam ao poder da Coroa o caráter de delegação, não de Deus, mas do povo, manifestando que a soberania residia originalmente na Nação e que até mesmo o regime absolutista acontecia pelo consentimento tácito da população, que, assim como o dera, poderia retirá-lo se as circunstâncias o fizessem necessário. Postulava, ainda, uma Justiça exercida por magistrados de carreira e politicamente independentes do Poder Executivo.

Obviamente, esses critérios eram irredutivelmente opostos aos professados por Melo Freire. A Coroa, pouco interessada em discussões ideológicas, e sem uma orientação clara nos seus planos de governo, não conseguia arbitrar o conflito. Assim, as discussões se alastraram até o final da década e acabaram sendo sobrepujadas por assuntos mais urgentes ou mais preocupantes, como o falecimento de D. Pedro, a Revolução Francesa e a Inconfidência Mineira. A inquietação, interna e externa, e as irreparáveis perdas pessoais levaram a Rainha a um estado de desesperação que acabaria mergulhando-a na demência e deixando o Reino em virtual acefalia. A sua doença demorou décadas para ser formalmente assumida. Enquanto isso, todos os atos de governo eram encarados como medidas transitórias e constantemente se esperava o seu próximo restabelecimento, embora todos aqueles que conheciam o caso de perto intuíssem que isso nunca aconteceria. À semelhança de diversos outros projetos de longo alcance, a reforma das Ordenações passou a ser vista como um problema menor e, de fato, nunca chegou a sair do rascunho.

Enquanto isso, as idéias liberais se alastravam rapidamente e as reações começavam a assumir o caráter de autodefesa. Menos avalizado que Ribeiro dos Santos, o advogado Francisco da Costa pagou com o desterro a ousadia de afirmar que o poder reside originariamente no povo, sendo por ele transmitido aos reis. Era o ano 1781 e, aproveitando a queda de Pombal, D. Martinho de Mascarenhas, Marquês de Gouveia, reivindicava a restituição dos bens e honras que perdera em virtude da sentença de 1759 contra seu pai, o Duque de Aveiro.

Mas a expansão das novas idéias era inevitável. Enquanto ele, um simples advogado, enfrentava, por suas alegações, o degredo para o Brasil – onde, possivelmente, iria engrossar as fileiras dos independentistas – o próprio príncipe herdeiro, D. José, lia e comentava impunemente as teorias mais revolucionárias. Viria o futuro rei – D. José II, se a vida o permitisse – governar como déspota esclarecido ou como liberal revolucionário? Nunca vamos sabê-lo. A sua morte prematura – acontecida em 11 de setembro de 1788 – não permitiu que cingisse a coroa e deixou estas perguntas, para sempre, no terreno das especulações.

Junot, os Três Estados e o Juiz do Povo

Apesar das medidas preventivas e punitivas, no final do século XVIII proliferavam, tanto em Portugal quanto nas colônias, idéias e grupos de opinião de orientação liberal. Nem todos assumiam características ou atividades abertamente revolucionárias, limitando-se muitos deles a um certo diletantismo intelectual, mas a crescente circulação de impressos proibidos se unia ao espírito crítico da maçonaria, que já contava com a participação de nobres, intelectuais e, até, de alguns clérigos.

Um dique contra o crescimento dos movimentos liberais era, inicialmente, a presença da Corte, precipitadamente removida da península em 1807. A administração que ficou em Lisboa, mais preocupada em assegurar sua própria subsistência, conservando boas relações com a força invasora, pouco podia fazer para evitar a expansão dos conspiradores.

Por outro lado, o próprio Junot, alertado pelo acontecido em outros países conquistados, começava a conceber ambiciosas esperanças, astutamente estimuladas pelos portugueses. Napoleão Bonaparte, auto-coroado Imperador, esforçava-se em exportar a "pax francesa" a toda Europa, criando, nos territórios dominados, repúblicas e monarquias constitucionais, todas elas satélites do seu império. Mesmo isso constituindo uma séria afronta às autonomias nacionais dos territórios conquistados, grandes parcelas da população submetida o aceitavam de bom grado, fosse por simples colaboracionismo orientado à obtenção de vantagens pessoais, fosse pelo sinceiro interesse no que de renovador e positivo tinham as reformas napoleônicas.

Três irmãos do Imperador já encabeçavam monarquias satélites: Luís, na Holanda, José, em Nápoles, e Jerônimo, na Vestfália. A preferência do Imperador estava dirigida à sua própria família, mas Junot sabia-o generoso com seus colaboradores e especialmente cuidadoso com os grandes chefes militares, em cujo esforço se baseava uma parte considerável do seu poderio. Muitos deles já ocupavam posições preponderantes na administração das conquistas, e Junot, apoiado e adulado pela elite portuguesa, considerava-se no direito de passar a integrar esse seleto grupo.

Quanto aos que o adulavam, não é provável que fossem simples traidores. Alguns, certamente, visavam à obtenção de vantagens pessoais ou à conservação dos privilégios de que já desfrutavam com D. João e D. Maria, mas não faltava quem se preocupasse honestamente, em evitar males maiores para a população, agradando aos invasores para garantir a tranqüilidade pública, bem como os que, não menos honestamente, viam na situação uma conjuntura favorável para substituir o velho e opressivo regime por um governo que, mesmo manchado pelo sacrifício da nacionalidade, garantisse a aplicação de princípios universais mais elevados e colocasse Portugal a par das transformações que agitavam à Europa.

E essa esperança não era sem fundamento. A despeito dos seus abusos – muitas vezes, tirânicos – Napoleão espalhara benéficas transformações pelos territórios conquistados. Em todos eles, o Código Civil francês fora estabelecido como lei, foram abolidos o feudalismo e a servidão e foi garantida a liberdade religiosa. Ainda mais importante para os ideais liberais, em todos os novos Estados foi imposto o sufrágio universal – ao menos, para os homens –, foram redigidas uma Constituição e uma Declaração de Direitos e foi estabelecido um Parlamento que representasse permanentemente a vontade da Nação. As estruturas administrativas e judiciárias foram renovadas e estabelecimentos de educação pública foram criados ou aperfeiçoados. É verdade que as garantias constitucionais nem sempre passavam de promessas, mas as mudanças econômicas e sociais eram visíveis e excitavam, principalmente, aos setores que, até o momento, tinham sido mantidos à distancia do poder e submetidos a uma exploração quase indiscriminada.

Mas havia um empecilho. Mesmo com o empenho dos conspiradores; mesmo que o próprio Imperador concordasse, a população portuguesa não iria aceitar Junot por rei sem que fosse legitimado pelos órgãos representativos da Nação. Para tal fim, admitindo-se – não sem certo prejuízo dessa legitimidade – que a coroa pudesse ser retirada de D. Maria – incapacitada e ausente no Brasil – e conferida ao iniciador de uma nova dinastia (conculcando, portanto, os direitos do também ausente príncipe D. João, regente e sucessor legítimo da rainha), era necessária, no mínimo, a manifestação livre e integral dos representantes dos Três Estados, reunidos em Cortes, alternativa que não foi considerada prudente porque as conseqüências dessa volta das Cortes seriam imprevisíveis e incontroláveis. Mesmo os mais ferrenhos defensores do progresso e dos valores universais conheciam o efeito que uma prédica nacionalista podia produzir na população de um país invadido.

Mais politicamente, o velho José de Seabra da Silva – o mesmo que, em tempos de Pombal, fora, presumidamente, autor da famosa "Deducção Chronologica" – sugeriu a reunião da Junta dos Três Estados, representação reduzida das Cortes, e que cuidava em forma permanente do cumprimento das suas decisões, especialmente em matéria de impostos. A sua função original era, apenas, supervisionar a aplicação do acordado nas Cortes, enquanto elas não se encontrassem em sessão, mas não era raro, em situações excepcionais, tomarem resoluções de maior alcance, especialmente desde que a reunião efetiva das Cortes se tornara menos freqüente. Obviamente, essa representatividade não era suficiente para modificar a estrutura e forma de governo do Estado, mas Seabra aconselhava aumentar a Junta com representantes do povo, da nobreza e do clero que, obviamente, seriam escolhidos pelo próprio Junot e pela Junta governativa.

A astuta manobra deveria constituir uma assembléia com certa aparência de representatividade, mas tal representatividade era pouco convincente, visto não ter surgido de eleições municipais que a legitimassem. Era evidente que os representantes agregados, escolhidos pelos principais interessados na reforma, seriam fiéis executores dos seus desígnios. Assim, para a escolha não parecer tão forçada, os conspiradores resolveram incorporar, na medida que acharam prudente, alguns dos representantes naturais dos diversos setores, mesmo que nem todos eles fossem do gosto de Junot. Esse foi o caso do tanoeiro José de Abreu Campos, Juiz do Povo e, em conseqüência do seu cargo, porta-voz extra-oficial das camadas mais baixas da população.

Filhos diretos da monarquia absoluta, os membros da Junta estavam muito longe de querer instaurar uma monarquia constitucional, mas amplos setores da população esperavam essa oportunidade e não iriam deixá-la passar. Mal correu a notícia da convocatória, maçons e liberais começaram a mobilizar-se em Lisboa, Porto, Viana e outras cidades peninsulares. Em 22 de maio de 1808, o Juiz do Povo foi convidado à casa do Desembargador Francisco Duarte Coelho, ouviu o plano dos liberais e prontificou-se a colocá-lo em deliberação.

Logo no dia seguinte, em sessão ordinária da Junta dos Três Estados – já engrossada pela participação dos novos membros – o tanoeiro expôs o plano dos liberais, sob a forma de um projeto de petição ao Imperador. Ultrapassando, largamente, às pretensões dos conspiradores iniciais, o projeto advogava não apenas por "um rei" mas por "uma constituição e um rei constitucional", sendo a Constituição baseada na que Napoleão outorgara ao Grão Ducado de Varsóvia, exceto na forma de escolha dos representantes do povo, que tradicionalmente eram eleitos pelas Câmaras Municipais. Esse critério deveria ser mantido "a fim de nos conformarmos com os antigos usos". No mais, solicitava a conservação do catolicismo como religião do Estado, sendo "admitidos os princípios da última concordata entre o Império francês e a Santa Sé", o que envolvia a liberdade de cultos quanto à "tolerância civil" e ao "exercício público". Pedia, também, a liberdade da Imprensa, a igualdade dos cidadãos perante a lei e a equiparação das colônias com as províncias peninsulares no referente a direitos e representatividade na conformação do governo central do Reino.

Como reformas estruturais, sugeria a criação de um Ministério da Instrução Pública, a instituição de um Conselho de Estado, de um Poder Legislativo bicameral e de um Poder Judiciário independente. Não existindo, ainda, um Código Civil português, seria temporariamente aplicado o Código Napoleônico. Também a administração "civil, fiscal e judicial" seria "conforme o sistema francês", reduzindo-se, em conseqüência, "o número imenso dos funcionários públicos". Entretanto, todos os empregos – conforme garantia similar inserida na Constituição de Varsóvia – seriam reservados a cidadãos portugueses e os funcionários afastados em razão da reforma administrativa continuariam recebendo seus salários "ou, pelo menos, uma proporcionada pensão" e teriam a preferência sempre que novos cargos fossem criados.

Como era previsível, a proposta do Juiz do Povo não encontrou grande apoio na Junta dos Três Estados. Mesmo com a ampliação dos seus quadros e os cuidados para aparentar representatividade, a maioria continuava em mãos absolutistas. Entretanto, o principal empecilho era de ordem pessoal. Dirigindo-se ao Imperador, o documento solicitava que o escolhido para rei constitucional fosse "príncipe de sangue da vossa real família", o que daria automaticamente por terra com as pretensões de Junot. Mal a proposta foi discutida, um projeto contrário foi apresentado e, no dia seguinte, aprovado, indicando nominalmente Junot como futuro rei do Portugal napoleônico. Mas as incidências do confronto militar se encarregariam de desfazer ambos os projetos. Saindo Junot da península, a fidelidade à D. Maria e ao Príncipe Regente foi restaurada. Do escuro jogo de conspirações de 1808, apenas a proposta de Abreu Campos restaria, como primeiro antecedente concreto do constitucionalismo em Portugal.

Agitação e Propaganda

O último quartel do século XVIII e o primeiro do XIX foram marcados por um amplo e multiforme desejo de renovação. Nunca antes o poder dos reis assumira características tão opressivas e, à diferença dos movimentos anteriores, a rebeldia desse período não se limitava a reivindicações particulares, mas pretendia construir um projeto alternativo de poder e governo. Contribuía para essa situação a facilidade com que as idéias eram difundidas através da imprensa, que já constituía um meio de comunicação bastante ágil e de custo acessível, ao menos para as camadas alfabetizadas da população.

Essa facilidade estimulara também, durante todo o século XVIII, a atividade dos pensadores, que encontraram nela um meio abrangente de publicar as suas idéias. Pela primeira vez, a filosofia e a teoria política tinham um mercado e chegavam a constituir um meio de subsistência para seus autores. Por outra parte, a vida urbana, mais intensa que nos séculos anteriores, facilitava o contato entre as pessoas, possibilitando o confronto de opiniões e a difusão oral do conhecimento para aqueles que não tinham acesso à leitura.

A Independência dos Estados Unidos e a Revolução Francesa – provavelmente os dois maiores acontecimentos políticos desse século – não apenas resultaram dessa mobilização como a realimentaram intensamente, demonstrando, na prática, que o absolutismo e o colonialismo podiam, sim, ser enfrentados e vencidos. Essa possibilidade inflamava não apenas os espíritos dos submetidos mas, também, os de não poucos membros das classes opressoras, atraídos pelo idealismo das novas propostas.

É impossível compreender, fora desse contexto, os movimentos conspiratórios que agitaram o Brasil e o próprio Portugal durante esse período. Não bastassem os exemplos francês e estadounidense, lutas independentistas marcaram as primeiras décadas do século XIX em todas as colônias hispânicas e a própria Espanha, invadida por Napoleão, aproveitou a fraqueza da Coroa vencida para construir as bases de sua organização constitucional.

Não parece que a Inconfidência Mineira tivesse um projeto político claro. Na transição entre os movimentos meramente reivindicatórios e os deliberadamente revolucionários, a Inconfidência emulava o exemplo dos Estados Unidos e queria, apenas, tornar-se independente de Portugal. Caso triunfasse, ver-se-ia, certamente, na necessidade de definir a estrutura e forma de governo do novo Estado, mas isso não chegou a acontecer e não parece que os seus impulsionadores tivessem avançado muito nessa previsão. Já a Conjuração Baiana de 1798 e a Revolução Pernambucana de 1817, levantaram plataformas decididamente ideológicas e políticas, tencionando mudar, essencialmente, a forma de governo e as estruturas de poder que regiam a sociedade.

Também em Portugal a mobilização era intensa e, como único centro de estudos jurídicos do Reino, Coimbra era um ponto especialmente agitado. As reformas pombalinas quebraram o cômodo tradicionalismo do período anterior e, apesar de a "viradeira" ter resultado na destruição de boa parte dessas transformações, professores e estudantes não eram mais os mesmos. Escasso era o efeito dessas mudanças na judicatura, ainda limitada pelas já vetustas Ordenações Filipinas, mas, na sua vida particular, não poucos magistrados assumiam declaradamente posições políticas, quer em prol das mudanças, quer contra elas. Lisboa e o Porto, principais centros de atividade da magistratura, exibiam muito particularmente essa influência.

A tais grupos, de origem marcadamente intelectual, juntavam-se dois grandes e influentes setores da sociedade portuguesa: os comerciantes, inconformados com a grave crise econômica, e os militares, sujeitos a comando e administração estrangeiros. Não bastassem os prejuízos diretamente provocados pela guerra, a fuga da Corte tinha provocado sérias conseqüências para a economia peninsular. Retirados da base financeira os tesouros do Estado e dos numerosos particulares abastados que acompanharam à família real, a iliquidez adquiriu dimensões alarmantes. A abertura dos portos brasileiros e a liberação das indústrias, necessárias à sobrevivência da Coroa, representaram mais um duro golpe ao comércio peninsular, fortemente dependente dessa relação monopolista.

Por sua parte, os militares, liberados do jugo francês mas não da sujeição à Inglaterra – mais forte ainda desde que ajudara a enfrentar a invasão de 1807 – viam-se forçados a admitir a presença de um numeroso contingente de tropas estrangeiras e até a responder ao comando de um chefe inglês, Beresford, odiado por seus subalternos mas enaltecido pelo Príncipe Regente, que o investira no cargo de Marechal Geral e o honrara com o título de Marquês de Campo Maior. Com esses títulos, gozava de plenos poderes, que, em alguns aspectos, atingiam até mesmo a administração civil, chegando a arranhar a autoridade dos governadores. À sua condição de estrangeiro, Beresford juntava o seu caráter autoritário e as vultuosas despesas militares que, pesando exageradamente sobre um país já empobrecido, granjeavam-lhe o ódio de grandes setores da população. Enquanto a guerra estava em curso, todos esses inconvenientes pareciam necessários e inevitáveis mas, com a volta da paz, os preparativos militares continuaram; essa hipertrofia das forças de segurança, unida à iliquidez financeira, à recessão econômica e à desorganização política, iria derivando numa situação potencialmente explosiva.

A população, então, foi unânime em pedir a volta da Corte. Assim, pensavam, a Coroa voltaria a olhar de perto pelos seus súditos, as possibilidades de peticionar seriam mais amplas, os capitais retirados voltariam aos bancos e o monopólio comercial seria restaurado. Tudo, enfim, voltaria a ser como era antes da invasão.

Não que antes fosse tudo um mar de rosas. Muitos – principalmente os clérigos e os magistrados – tinham bastante claras as fraquezas da legislação em vigor, da estrutura de governo e da própria família real. Poucos, entretanto, ousavam postular abertamente a destituição da Rainha, a reforma do Estado e a construção de um regime democrático. Portugal tinha uma longa tradição monárquica. Amado ou rejeitado, o rei era um referencial comum que aglutinava os diversos setores e condensava, simbolicamente, a essência da nacionalidade. Potencialmente infalível, instituído pela vontade de Deus, tudo o que acontecesse de errado era atribuído a engano ou mal aconselhamento dos seus colaboradores, que, na pior das hipóteses, podiam ser substituídos, sem arranharem a autoridade da Coroa. Por outra parte, os ecos, ainda próximos, da Revolução Francesa, criavam justificados temores. Evoluindo em direção à democracia, a França caíra no terror, na anarquia, na ditadura, no imperialismo e terminara restaurando a antiga monarquia, sob o reinado de Luís XVIII.

Os espíritos mais prudentes aspiravam, no máximo, a impor limites ao poder da monarquia, impedindo a restauração do absolutismo, mas sem questionar a continuidade da dinastia, a religião oficial ou qualquer outro elemento que pudesse derivar em desagregação da nacionalidade. A Rainha e o Príncipe Regente deveriam ser mantidos e, para todos os efeitos, as transformações seriam feitas em seus nomes e confiando na sua aprovação posterior. Enquanto isso, seria preciso criar situações de fato que os forçassem a aceitar as limitações constitucionais, resguardando os direitos dos cidadãos à vida, à propriedade, à representação e às liberdades de religião e de pensamento. Mas a volta da Corte não aconteceu. Em 1813, formalmente solicitado pelos governadores em nome de todo o povo de Portugal, D. João agradeceu as "provas que lhe tinham dado de amor, zêlo e fidelidade a mais perfeita" mas nada disse de concreto sobre o seu retorno.


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