Junot protegendo a Cidade de Lisboa.

Debate nas Cortes de Lisboa
(óleo de Oscar Pereira da Silva)
 

  Memória
da Justiça Brasileira - 3
Capítulo 6

Revolução no Porto e Cortes em Lisboa

Em 1817, foi descoberta a primeira tentativa abertamente revolucionária. Na Espanha, Fernando VII recuperara o trono, proclamando-se rei absoluto. Vinha de longo cativeiro. Seu reino passara vários anos sob o domínio de Napoleão. Sem a autoridade do rei, as colônias iam ganhando a independência e até mesmo dentro da península, em Cádiz, o último reduto que resistia ao domínio francês, o governo feito em seu nome ganhava expressivo cunho liberal. Constituídas uma Junta Suprema Nacional e uma Regência, os resistentes reunidos em Cádiz chegaram a elaborar uma Constituição, a primeira da Espanha.

Porém, com a retirada dos franceses, Fernando VII voltara a proclamar-se rei absoluto, derrogando a Constituição de Cádiz. Traída a sua confiança no rei, afastados violentamente do poder, os revolucionários de Cádiz tentavam reorganizar-se na oposição e buscavam, nos países vizinhos, o apoio necessário para levar adiante a sua luta. Entre esses países, Portugal ocupava uma posição preferencial, não apenas pela proximidade geográfica mas também – e principalmente – por uma certa vocação pan-ibérica que os revolucionários alimentavam.

Foi nesse contexto que o general espanhol Francisco Javier Cabanes entrou em contato com o tenente-general Gomes Freire de Andrade, grão-mestre da maçonaria portuguesa. A participação maçônica em grupos de orientação liberal continuava sendo intensa, a ponto de confundir-se, em muitos casos, a condição de maçom com a mística liberal revolucionária.

Não consta que Gomes Freire tenha sido líder ou cabeça da conspiração. No máximo, ficou provado que teve entendimentos com alguns conspiradores, que o visitaram na sua residência, convidando-o a fazer parte do movimento. Interrogado, admitiu o encontro, durante o qual teria declarado concordar com eles e estar disposto a ajudá-los quando fosse necessário. Na sua defesa, alegou ter agido assim para impedir tumultos e evitar a anarquia.

A figura de Gomes Freire era emblemática da maçonaria e do liberalismo. Nascido em Viena, filho de um diplomata português, recebeu uma educação privilegiada, destacando-se, depois, na carreira militar. Em 1808, já oficial graduado, partiu em apoio de Napoleão, no comando de uma divisão da Legião Portuguesa organizada por Junot. Quando os franceses abandonaram Portugal, muitos oficiais retornaram à pátria, mas ele preferiu continuar servindo ao Imperador, com cujo ideário comungava, e somente voltou à península depois da sua derrota final, em 1815.

Exposto a influências as mais variadas, Gomes Freire tinha uma mentalidade aberta – "cosmopolita", dir-se-ia hoje –, e logo integrou-se aos círculos mais progressistas de Portugal. Essa afinidade, unida ao seu prestígio como militar valoroso e à mancha de, durante muito tempo, ter servido aos franceses, considerados inimigos da pátria, tornava-o particularmente suspeito aos olhos dos seus juízes e abonava a necessidade de uma punição exemplarizadora, muito mais fortemente derivada de critérios políticos do que jurídicos.

Quanto a Cabanes, é um mistério. Contrariando as suas obrigações como militar a serviço de Fernando VII, parece ter-se aproximado a Gomes Freire à procura da colaboração dos liberais portugueses para organizar uma ação revolucionária conjunta nos dois países. Entretanto, outras informações o dão como agente duplo a serviço do próprio Fernando VII, cuja missão seria a de estudar a capacidade defensiva de Portugal frente a uma eventual ação expansionista por parte da Espanha.

Como acontecera com outros movimentos similares, a conspiração foi abortada pela indiscrição de um dos seus membros. Chegada a informação a ouvidos de Beresford, pouco lhe custou infiltrar espiões no grupo de conspiradores. Fora as reformas de signo liberal, eram objetivos essenciais do grupo a expulsão dos ingleses e do próprio Beresford, o que explica ainda mais a diligência com que este se dedicou a devassar o movimento e prender os responsáveis.

Além das motivações políticas e dos propósitos exemplarizadores, a sentença confirma um critério que já apontamos ao analisar o julgamento dos movimentos brasileiros. Muito embora as novas teorias filosóficas e jurídicas desautorizassem essas práticas, os magistrados não podiam furtar-se à aplicação rigorosa do disposto nas Ordenações, muito especialmente quando a segurança do Estado e o interesse dos governantes aumentavam as pressões em prol de uma punição pública e rigorosa. Doze acusados foram condenados à forca, oito dos quais – Gomes Freire entre eles – com a infâmia adicional de serem seus corpos decapitados e incinerados, sendo-lhes negada a cristã sepultura. Dos que foram poupados, três sofreram o degredo – um de por toda a vida, para Angola, outro, por dez anos, para Moçambique, e o terceiro por cinco, também para Angola –. Os bens dos mortos e os do degredado de por toda a vida foram confiscados na íntegra e por metade os dos degredados por períodos menores. O Barão de Eben – salvo, segundo os boatos, pela interferência de um alto dignitário da Corte inglesa – foi apenas banido, sendo proibido de voltar a Portugal sob pena de ser degredado, por toda a vida para África. Apenas dois acusados foram considerados inocentes.

Os Revolucionários do Porto

Mal se apagaram as fogueiras que consumiam os corpos de Gomes Freire e seus companheiros, novas articulações começaram a formar-se. A despeito da publicidade das execuções e do extremo rigor da punição, o descontentamento era demasiado grande e a convicção dos liberais demasiado generalizada para deixar-se intimidar por um governo que sabiam fraco e ineficiente.

Mudavam, sim, as formas de proceder. Os conspiradores de 1817 perderam-se pela excessiva confiança, que os levou a abrir suas fileiras a qualquer pessoa que manifestasse apoio à sua luta. Os de 1818 seriam mais cautelosos. Não se deixariam iludir pelo crescimento numérico descontrolado nem iriam se expor fazendo uma publicidade explícita dos seus atos ou mesmo das suas idéias.

O Sinédrio, grupo iniciado em 22 de janeiro de 1818, constava, apenas, de quatro membros: Manuel Fernandes Tomás, desembargador da Relação do Porto, José Ferreira Borges, advogado da mesma Relação, José da Silva Carvalho, Juiz dos Órfãos, e João Ferreira Viana, comerciante "de grosso trato". A bem da verdade, Ferreira Borges era, também, secretário da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, o que elevaria a dois o número de membros vinculados às atividades comerciais. Entretanto, a sua atividade na Relação e o destaque que Fernandes Tomás teve na formação do grupo e na condução da Revolução do Porto nos levam a considerar a atividade forense como a determinante da sua aproximação.

Manuel Fernandes Tomás nasceu em Figueira da Foz em 1771. Contava, portanto, 47 anos ao iniciar sua atividade no Sinédrio. Formado em Cânones, exercera previamente a magistratura como Juiz de Fora em Arganil, Superintendente das Alfândegas e do Tabaco em Aveiro, Coimbra e Leiria, Provedor de Comarca em Coimbra e Deputado Comissário do Exército. Restabelecida a paz, em 1812, foi restituído ao cargo de Provedor, já com a comissão de Desembargador da Relação do Porto. Em 1817 incorporou-se efetivamente à Relação e, pouco depois, iniciou a sua participação no Sinédrio.

Não era a sua primeira incursão na política. Desde sua época de estudante, professava entusiástica fé nas teorias liberais que, pouco a pouco, conseguiam abrir-se passo na Universidade, mas poucas oportunidades tivera de praticá-las, no exercício de uma magistratura apegada às Ordenações não renovadas em dois séculos. Quanto à legislação extravagante, apenas no período pombalino objetivara transformações estruturais e essas transformações foram orientadas por critérios bem diferentes. Mesmo assim, ele procurava estimular a discussão e publicara, em 1814, as "Observações sobre o discurso que escreveu Manuel de Almeida e Sousa em favor dos direitos dominicais da Coroa, donatários e particulares", onde fustigava os abusos cometidos pela nobreza contra os pequenos agricultores.

A nova agrupação não postulava ações armadas. Era, apenas, um grupo de discussão que deveria reunir-se mensalmente, todo dia 22, limitando-se a trocar idéias e manter-se informado e vigilante à espera de uma oportunidade para agir. Cauto, também, na captação de novos aderentes, entre janeiro e agosto admitiu, apenas, mais quatro membros. Com essa conformação – apenas oito integrantes – atravessou os meses restantes e o ano todo de 1819.

A situação começou a mudar em 9 de março de 1820, quando uma nova revolução liberal forçou Fernando VII a jurar a já derrogada Constituição de 1812. Novamente no poder, mas prevenidos pelos reveses passados, os revolucionários estavam cientes de que a Espanha constitucional não subsistiria numa Europa dominada pelo absolutismo. Às articulações da Santa Aliança – conglomerado de regimes monarquistas constituído em 1815, após a derrota de Napoleão – era preciso opor articulações contrárias, encorajando o maior número possível de nações a lutarem por mudanças similares. Portugal, tão próximo geográfica, histórica e culturalmente, não poderia ficar à margem dessas articulações.

Assim, uma ampla rede de agitadores espalhou-se pelos países vizinhos. "O mesmo club que instruiu mr. d’Onis para revolucionar o reino de Nápoles – escrevia o ministro português em Madri – foi o que instruiu mr. Pando para revolucionar o reino de Portugal, e é o que tem agentes em Liorne, Paris, Veneza, Gênova, Polônia e Prússia". "Mr. Pando" era D. José María de Pando, Ministro Plenipotenciário da Espanha em Portugal, que, às suas atribuições especificamente diplomáticas, unia uma ativa campanha proselitista em favor da revolução liberal.

Auxiliava-o, nesse empenho, o tenente-coronel José Maria Barrero, que – misteriosamente, posto que a existência do grupo era ignorada até para os portugueses – conseguiu, em junho de 1820, entrar em contato com os conspiradores do Sinédrio. Ao que consta, Barrero manteve uma entrevista com Fernandes Tomás, oferecendo-lhe total apoio militar e econômico para um eventual movimento revolucionário, mas o preço – que o magistrado negou-se veementemente a aceitar – seria a reunião de Portugal e Espanha num único reino.

"Da Hespanha, nem vento nem casamento", anotamos, no primeiro volume desta série, a respeito do justificado receio que os portugueses alimentavam por seus vizinhos. Entretanto, a proposta não era tão absurda. Respondia, em verdade, a um projeto pan-ibérico não raro entre os liberais de ambos os lados da fronteira. Já em abril de 1820, Marialva – obviamente, contrário – denunciava um plano espanhol que visava à formação de um só reino. A capital – talvez precisamente para amenizar os receios portugueses – seria estabelecida em Lisboa. Em agosto, Saldanha da Gama expunha uma alternativa mais audaciosa: a abolição da monarquia e a criação de sete repúblicas confederadas, duas das quais em território português: a Lusitânia Ulterior e a Lusitânia Citerior.

Não parece que projetos semelhantes circulassem tão abertamente em território português. Ainda submetidos a um regime absolutista e, talvez, receosos da sinceridade dos espanhóis, os liberais portugueses guardavam prudente reserva. Entretanto, José Liberato Freire de Carvalho, editor de um periódico em Londres, já em junho aventurava veladamente essa hipótese, pedindo, do governo português, "mui prontas e judiciosas providências" para afastar do povo "a lembrança de participar de felicidades alheias". Três meses depois, já mais ousado e confiante, o mesmo jornal vaticinava: "ou o governo Português há de pronta e liberalmente melhorar a sorte de Portugal, restituindo-lhe suas Cortes, e dando-lhe instituições análogas às luzes e desejos do século; ou vai expor-se a que o mesmo Portugal, já enfastiado do seu estado colonial, possa lembrar-se de que é melhor ser sócio de uma grande e livre nação vizinha do que ser colônia do Brasil".

Mesmo não concordando com a proposta de Barrero – ou, tal vez, precisamente por causa dela, visando evitar que grupos menos nacionalistas acabassem aderindo – o Sinédrio saiu da sua etapa contemplativa. Em maio, incorporaram-se a ele o médico militar Francisco Gomes da Silva e o desembargador João da Cunha Soto-Maior; em junho, o coronel José de Melo de Castro e Abreu, das Milícias do Porto, e o ex-Provedor da Comarca de Vianna, José Maria Xavier de Araújo. Pela primeira vez, o Sinédrio abria suas portas a militares. Essa mudança denotava a intenção de tornar suas articulações mais ativas, se não decididamente revolucionárias, e a tendência continuou durante os meses seguintes. Cuidadosamente selecionados, oficiais que ocupavam postos-chave na defesa da ordem interna do território – e, principalmente, da região norte, onde a agitação revolucionária era mais intensa – foram incorporados ao grupo.

Porém, com os membros militares chegaram as primeiras contradições. Enquanto, numa visão mais ampla, os magistrados almejavam transformações políticas profundas, os militares aderiam ao movimento quase exclusivamente em razão do seu descontentamento com os ingleses e, particularmente, com o comando de Beresford. Visavam, apenas, reivindicações castrenses e patrióticas, rejeitando, no mais, qualquer postulação que colocasse em risco as instituições monárquicas absolutistas.

Ainda em 21 de agosto – apenas três dias antes da data marcada para o levantamento – os chefes militares declararam que não apoiariam outra reivindicação que a constituição de um governo provisório limitado a promover o pronto retorno do rei e representar perante ele as reivindicações do povo. Foi a custo de árduas negociações que aceitaram incluir, na proclamação revolucionária, a convocatória de Cortes e a elaboração de uma Constituição.

Finalmente, em 24 de agosto, o movimento foi deflagrado na mais completa paz. Fora o consenso geral existente na população, todos os postos decisivos estavam sob controle de pessoas que simpatizavam com a idéia e é provável que o próprio Chefe da Polícia, desembargador Correia de Lacerda, compactuasse com os conspiradores. Nunca comprometeu publicamente seu apoio, mas suspeita-se que, disfarçadamente, tenha evitado a tomada de medidas preventivas ou repressivas eficazes.

Prudentemente, os conspiradores não se apresentavam como revolucionários mas como restauradores. Com a restauração das Cortes, Portugal resgataria a herança dos seus ancestrais, "que fizeram tremer a África, que conquistaram a Índia, e que assombraram o mundo conhecido, ao qual acrescentaram outro para dilatar ainda mais o renome das suas proezas". Numa visão fortemente idealizada mas, por isso mesmo, apropriada às circunstâncias, afirmava-se que "todos estes bens dimanavam perenemente da constituição do Estado, porque ela sustentava em perfeito equilíbrio, e na mais concertada harmonia, o direito do soberano e dos vassalos".

Assim, a Junta Provisória de Governo fazia questão de esclarecer que as mudanças por ela preconizadas não atacavam "as bases estáveis da monarquia", e anunciava: "A religião santa de nossos pais ganhará mais brilhante esplendor, e a melhora dos costumes, fruto também de uma iluminada instrução pública, até hoje por desgraça abandonada, fará a nossa felicidade e das idades futuras. As leis do reino, observadas religiosamente, segurarão a propriedade individual, e a nação sustentará a cada um no pacífico gozo de seus direitos, porque ela não quer destruir, quer conservar". "O nosso REI, o SENHOR D. JOÃO VI – proclamavam, por sua parte, os chefes militares – como bom, e como benigno, e como amante de hum povo, que o idolatra, ha de abençoar nossas fadigas".

Com tal excesso de prudência, não era difícil, para as autoridades já existentes, coincidirem – pelo menos, superficialmente – com essas postulações. Porém, os Governadores do Reino, desde Lisboa, tinham autoridade suficiente para convocar as Cortes e assim o fizeram, numa astuta tentativa de esvaziar o movimento do Porto. "Se isto, pois, que vós proclamastes, é só o que sinceramente quereis; – declaravam insidiosamente – nada resta já a desejar, e só falta agora que, desprendendo-vos de uma autoridade que exerceis sem título algum legal, e desde agora, até sem pretexto algum, deis ao mundo e à posteridade uma prova evidente de que não sois movidos por paixões ocultas nem ambiciosas".

Mas esses esforços se mostraram inúteis. Faltava aos governadores a credibilidade necessária, e a agitação liberal já se alastrava também em Lisboa. Em 15 de setembro, antes mesmo de receberem a resposta negativa da Junta do Porto, foram destituídos por um movimento de similares características.

As Duas Juntas e as Cortes

Se, de um lado, a eclosão de um movimento similar em Lisboa facilitou as coisas para a Junta do Porto, de outro deflagrou uma desnecessária luta pelo prestígio e pela paternidade da revolução. Parece evidente que os revolucionários do Porto tinham um projeto político mais claro. Porém, Lisboa, acostumada durante séculos a ser sede do governo, não abriria mão facilmente da condução do processo. Por fim, não sem bastante dificuldade, as duas juntas concordaram em fundir-se num só governo.

Ainda mais problemática era a convivência de liberais e conservadores. Enquanto se falava em expulsar os ingleses e restaurar o orgulho e as finanças nacionais – que muitos consideravam perdidos desde que o Rei e a Corte residiam no Brasil – praticamente todos estavam de acordo. Já quando se colocava a necessidade de reformar o Estado, fazendo com que a população toda fosse representada nas Cortes e que uma Constituição limitasse o poder real, as divergências tornavam-se quase inconciliáveis. Procurando viabilizar o entendimento, Fernandes Tomás e outros moderados optaram por transigir e formar um governo de ampla coalizão, limitado, porém, a garantir a continuidade jurídica e administrativa e deixando para as Cortes – para isso legitimadas pela representação popular – a necessária mas ingrata tarefa de brigar pela modernização das instituições.

Essa transigência importou em adiar, durante bastante tempo, reformas que já poderiam ter sido iniciadas desde logo, por decretos da Junta a serem depois referendados pelas Cortes, mas conseguiu, em compensação, que a maioria da população e mesmo uma grande parte da nobreza coincidisse em apoiar e prestar juramento de fidelidade ao governo provisório. Um duro teste para esse acordo foi o retorno de Beresford, que, ciente do movimento que já se pressentia, viajara até o Rio de Janeiro para induzir o Rei a dar-lhe poderes ainda mais amplos. Conseguiu, mas durante a sua ausência aconteceu a Revolução e, ao retornar, encontrou o novo governo pronto, consolidado e disposto a resistir. Não pôde desembarcar. Isolado e desarmado, por ordens da Junta, foi despachado para a Inglaterra, precedido de duas comunicações diplomáticas que justificavam a iniciativa. O governo inglês, exposto a um desgaste que a imprevisibilidade dos acontecimentos não tornava aconselhável, optou por não pronunciar-se, atribuindo toda a responsabilidade pelos atos de Beresford ao Rei de Portugal.

A Junta, recém unificada, tornou a dividir-se em duas, dessa vez organizadas por âmbito de competência: a Junta Provisional do Supremo Governo do Reino e a Junta Provisional Preparatória das Cortes. Enquanto a primeira cuidava dos aspectos administrativos, a segunda encarava a difícil tarefa de definir a forma em que as Cortes seriam constituídas. Todos concordavam em que elas deveriam ser convocadas, mas o acordo não era tão unânime quanto a como e por quem os deputados seriam eleitos e, em última análise, a quem estariam representando.

O discurso restaurador que ambas as juntas mantinham era inseparável da recuperação das instituições antigas. Daí que, melhor do que convocar uma assembléia, convenção ou qualquer outra forma de colegiado herdado das revoluções americana ou francesa, se insistisse em chamar às Cortes, forma de representação tradicionalmente praticada em Portugal.

Mas não era para isso que os mais ousados conspiraram com tanto esforço. Mesmo nas épocas de maior influência, as Cortes não passaram de ter um caráter consultivo. Algumas vezes, pressionavam a ponto de forçar as decisões do rei, mas nunca essa pressão foi reconhecida explicitamente como um poder autônomo. Alguns celebravam a sua pujança em momentos-chave para a nacionalidade, mas outros lembravam o seu aviltamento sob a monarquia absoluta, que D. João VI ainda representava. De que valeria – pensavam esses – restaurar uma instituição que, em 1667, chegara à indignidade de confirmar D. Pedro II na usurpação do trono contra seu próprio irmão e, mesmo em vida do rei deposto, aprovar o seu casamento com a rainha?

Mais objetivamente, outros questionavam a representatividade de tal organismo. As Cortes refletiam uniformemente os três estados da sociedade tradicional. Assim, clero e nobreza, apesar de, numericamente, constituírem apenas uma pequena parcela da população, controlavam, somados, dois terços da representação nacional. Já a Revolução Francesa enfrentara esse anacronismo e, mesmo sem considerar explicitamente o exemplo daquele movimento – de nem sempre prudente menção – não faltava quem preconizasse uma mudança com base nas próprias características da sociedade portuguesa.

"Nem a nobreza, nem o clero – diziam –, já conservavam as mesmas prerrogativas que antes tinham como classes mui distintas, e quasi independêntes no Estado". Embora a burguesia e o nascente proletariado industrial não estivessem tão desenvolvidos como em outros países, era evidente que esses novos setores tinham expectativas e meios de pressão para fazer-se ouvir nos círculos do poder. Essa diluição dos limites das classes tradicionais levava a postular que a Nação não fosse considerada "como um composto de classes, porém como um composto de indivíduos".

"São êstes" – postulava-se – "em todas as sociedades bem organizadas, os que parcialmente devem ser protegidos na propriedade de suas pessoas e bens; são êstes ainda os que parcialmente concorrem com suas pessoas e fazenda para a sustentação do Estado. Logo são êstes, isto é, logo são os indivíduos, e não as classes que podem e devem ser representados". Em conseqüência, todos os deputados deveriam constituir uma só Assembléia, eleita pelo sufrágio universal e representando, coletivamente, à Nação portuguesa, gozando todos da mesma situação jurídica e usufruindo dos mesmos direitos de voto e deliberação.

O conteúdo potencialmente revolucionário desses enunciados era evidente, até mesmo para os liberais mais exaltados, e as possíveis conseqüências políticas exigiam certa mesura. Evitando atingir o fundo do problema, os legalistas postularam que não era da alçada das Juntas alterarem as regras essenciais da representação política. Apenas as próprias Cortes poderiam, exprimindo extensivamente a vontade da Nação, confirmar ou modificar os usos eleitorais que a tradição consagrara. A observação parecia atinada, mas deixava nos setores progressistas uma séria dúvida: Sancionaria uma Assembléia dominada pelo clero e a nobreza uma legislação que automaticamente iria afastá-los do poder?

Até mesmo a Academia das Ciências de Lisboa entrou no debate, propondo uma fórmula mista. Alegava que era tradicional a representação dos três estados, mas não a proporção em que cada um deles influenciava nas decisões finais. Tendo essa influência variado consideravelmente nas diversas épocas, era perfeitamente admissível a determinação de novas regras, segundo as quais as Cortes fossem constituídas pelos Estados mas os deputados votassem individualmente. Com matemática bastante curiosa, a Academia procurava demonstrar que, embora os representantes populares avantajassem à soma das outras duas ordens na proporção de quatro a um, o prestígio e a autoridade moral desses setores iria influenciar nas decisões, garantindo assim uma representação equilibrada.

Não seria de admirar que os representantes das classes privilegiadas rejeitassem um equilíbrio baseado em argumentos tão incertos, principalmente em momentos em que tanto o prestígio como a autoridade moral se encontravam abalados pela expansão do ideário liberal; mas foi dos liberais que partiram as ações mais agressivas. Mais uma vez o Juiz do Povo foi o estopim da revolta. À cabeça da Casa dos Vinte e Quatro, elevou à Junta "a opinião e voto dos grémios e do povo", no sentido de que os deputados às Cortes fossem escolhidos "indistintamente da massa geral da Nação, seguindo-se para se obter êste fim a mesma forma determinada na digna Constituição Espanhola, alterando-se tam sómente naquela parte que diz respeito à diferença da população".

Mesmo antes de se conhecer a resposta da Junta, o Juiz do Povo entrou em contato com o comandante em chefe, Gaspar Teixeira, obtendo imediatamente o apoio de grande parte da oficialidade, que, em comunicação escrita no dia seguinte, instruía a considerar "o voto expressado na representação do povo como o seu próprio, pois que acham que o sobredito método é o único que nos pode conduzir à posse de uma constituição liberal".

A agitação das ruas e o apoio da imprensa eram tais, que até o geralmente cauteloso Fernandes Tomás optou por assumir publicamente essa posição, secundado, entusiasticamente, por Borges Carneiro. No dia 31 de outubro, quebraram-se as últimas resistências dentro da Junta e, em 10 de novembro, foram publicadas as instruções oficiais para a eleição.

Cedendo amplamente às pressões liberais, as instruções davam direito a voto, indistintamente, a todos os chefes de família, incluindo os analfabetos e desprezando por completo os foros particulares da nobreza e do clero. Além de responder a uma estrutura social fortemente baseada nas famílias, essa opção respondia à impossibilidade, do ponto de vista político, de adiar a eleição até a realização de um censo. O número de fogos (assentamentos familiares) era de mais fácil estimação que o de indivíduos e, em muitos casos, essa estimação já existia por estar relacionada a diversos procedimentos administrativos de rotina. As votações iniciais seriam indiretas e declaradas de viva voz, concentrando-se nas Câmaras Municipais e, no caso particular de Lisboa, no templo mais cômodo de cada freguesia. Delas surgiriam os eleitores, que reunindo-se por comarcas, iriam eleger os deputados, sendo esta segunda eleição realizada pelo voto secreto.

Mas essas condições não satisfizeram os mais exaltados, que preconizavam a adoção sem alterações da Constituição de Cádiz. O Juiz do Povo insistiu, pedindo ao comandante do Exército para "proclamar a constituição espanhola, a qual, sendo modificada pelas Côrtes convocadas à maneira espanhola, se adote e aproprie aos usos, costumes e terreno de Portugal, sem que se lhe alterem o seu essencial e as ideas liberais que ela contém". O exército, que receava da influência dos magistrados, não se fez rogar. Mesmo antes de receber a representação do Juiz do Povo, Teixeira mandara as tropas ficarem de prontidão. Em 11 de novembro – dia de São Martinho – o Terreiro do Paço, o Rossio e outras praças principais de Lisboa amanheceram guarnecidas de artilharia. O movimento passaria à história como "a martinhada".

A proclamação dos rebeldes reproduzia, em linhas gerais, os dizeres do Juiz do Povo, previamente combinados para justificar o alçamento militar. Até a reunião das Cortes, seria reconhecida como própria a Constituição de Cádiz e por ela seriam regidas as eleições. Apenas as Cortes teriam autoridade para fazer nela "as modificações que fôssem convenientes, não sendo jamais para tornarmos menos liberais". Mas não era apenas o fervor liberal que animava os militares; sendo, dentre os diversos grupos que protagonizavam a revolução, o mais condicionado por interesses setoriais, aproveitavam para continuar a sua velha luta pelo poder e exigiam a incorporação ao Governo de mais quatro membros de sua escolha e a promoção do próprio Teixeira ao comando em chefe de todas as forças armadas do reino.

Sobrepujada pela força, a Junta cedeu aos reclamos, mas a população não mais se deixava iludir por delírios militaristas. O autoritarismo – essencialmente conservador – só por breves momentos podia aliar-se aos grupos mais renovadores. Obtido o triunfo, os vencedores retomaram as suas rixas e a opinião pública levantou-se em apoio dos moderados. Tão rapidamente como escalaram posições, os rebeldes começaram a recuar. Gaspar Teixeira passou do comando em chefe à presidência da comissão que distribuía as medalhas e condecorações, e Antônio da Silveira – ainda líder do setor militar – foi recluído na sua quinta, com ordens expressas de não sair dela sem licença da Junta. A constituição espanhola foi mantida exclusivamente como guia para a eleição dos deputados, ficando as restantes disposições inaplicáveis até que as próprias Cortes retificassem ou ratificassem a sua vigência.

As novas instruções eleitorais, publicadas em 22 de novembro, eram cópia fiel dos artigos correspondentes da Constituição de Cádiz. Apenas, em caracteres itálicos, acrescentava-se as modificações necessárias à sua aplicação em Portugal. A situação particular do termo administrativo de Lisboa era contemplada em sete artigos adicionais. O sufrágio passava a ser individual e não familiar, sendo chamados a votar todos os cidadãos com vinte e um anos completos que exercessem emprego, ofício ou ocupação útil. Mantinha-se a votação indireta, sendo escolhido um eleitor por cada 200 fogos e criando-se um complexo sistema de eleições sucessivas para que as povoações com menos desse número não ficassem sem representação. Como na lei anterior, esses eleitores se reuniriam por comarcas, elegendo proporcionalmente um deputado por cada 30.000 almas. As sucessivas eleições seriam realizadas aos domingos, durante o mês de dezembro, e as Cortes teriam início programado para 6 de janeiro de 1821.

Enfim, as Cortes

Essa data não foi cumprida, mas o atraso foi relativamente pequeno. Em 24 de janeiro foram verificados os poderes dos 74 deputados já presentes (alguns, em razão da distância, demorariam a se integrar) e foi redigida a fórmula de juramento. Em 26, após a missa do Espírito Santo e da prestação do juramento na Sé, aconteceu a primeira sessão oficial.

Conforme previsto, predominava entre os eleitos a ideologia liberal, embora nem sempre levada às últimas conseqüências. Mormente clérigos, magistrados e "homens bons" das diversas províncias e colônias, os deputados invocavam o povo como sustento dos seus discursos, mas poucos dentre eles pertenciam efetivamente às classes populares.

"Os fidalgos provincianos – afirma Latino Coelho – que haviam levado a abnegação ao extrêmo de se constituírem patronos e fautores da liberdade, faziam os mais patrióticos idílios sobre a igualdade, salva sempre a generosidade da sua prosápia, e a pureza dos seus escudos e brazões; mas entibiava-se-lhes a consciência ao menor assomo de reformação da propriedade, e à menor indicação de nivelamento nos proventos e nos encargos sociais".

"O desembargador – continua – achava na jurisprudência razões e argumentos favoráveis à liberdade, e punha as pandectas de sentinela ao capitólio da pátria regenerada; mas julgaria infamada a majestade da toga judiciária, se alguém ousasse meter ordem no caos da lei civil, e na oligarquia infrene da velha magistratura".

"O militar oferecia a sua espada e o seu braço para a defensão da liberdade, mas [...] estremecia com a só idea de alterar num ápice a aristocracia das armas, e o carácter patriciano da profissão guerreira. Cada um cedia nas aras da pátria os privilégios das outras classes, mas perseverava obstinado na conservação das suas próprias prerogativas".

E por cima de todas essas fragilidades, assomava a figura do rei longínquo, a encher de dúvidas os espíritos dos revolucionários. Embora distante, D. João VI não estava ainda vencido e – mesmo a contragosto de alguns – todas as reformas eram e seriam realizadas em seu nome. Só que ninguém sabia ao certo a atitude que ele iria assumir diante da rebelião.

Adiadas as decisões de fundo até à convocação das Cortes, tornava-se agora imprescindível acelerá-las para gerar uma pressão baseada em fatos consumados. O rei estava vindo e seria muito mais fácil conseguir a sua aceitação se fosse apresentada a ele uma decisão monolítica a favor de um programa altamente estruturado. Idealmente, ele deveria encontrar uma Constituição pronta, sustentada numa ampla maioria da população, restando-lhe, apenas, a opção entre a monarquia constitucional e a guerra civil.

Mas era materialmente impossível fazer-se uma Constituição em tão pouco tempo. Fora as lógicas dificuldades em conciliar as opiniões de uma assembléia tão numerosa, era evidente que a deputação das colônias – tão distante quanto numerosa – demoraria tanto ou mais que o rei para chegar à Lisboa. Ciente disso, na sessão de 29 de janeiro, Fernandes Tomás propôs a elaboração de um acordo preliminar que sintetizasse, em essência, o conteúdo da futura Constituição e fosse jurado e obedecido como se a própria Constituição fosse, enquanto ela não estivesse pronta para vigorar.

Aprovado o projeto, foi constituída uma comissão especial, integrada por Borges Carneiro, Ferreira de Moura, Pereira do Carmo e Castelo Branco, além do próprio Fernandes Tomás, para elaborar as Bases da Constituição Portuguesa. O projeto foi elaborado em apenas dez dias e levou um mês de debates. Apresentado à discussão em 9 de fevereiro, foi posto à votação no dia 8 de março e aprovado por decreto do dia 10 do mesmo mês. Embora constitua apenas um documento preparatório para a Constituição definitiva, essa peça representa, para o ordenamento jurídico imperial brasileiro, uma influência muito mais direta que a da própria Constituição, concluída e publicada quando o regente D. Pedro já tinha proferido o "Grito do Ipiranga".

As bases estão divididas em duas partes, tratando a primeira "Dos Direitos Individuaes do Cidadão" e a segunda "Da Nação Portugueza, sua Religião, Governo e Dynastia".

A primeira parte é uma herança direta das declarações de direitos originadas nas revoluções americana, francesa e espanhola, começando por estabelecer que a Constituição a ser elaborada deve "manter a liberdade, segurança e propriedade de todo o cidadão". A continuação, define a liberdade como o direito "de fazer tudo o que a lei não prohibe" e a segurança pessoal como "a protecção que o Governo deve dar a todos para poderem conservar os seus direitos pessoaes".

Consoante esses princípios, proíbe a prisão "sem culpa formada", exceto nos "casos determinados pela Constituição", mesmo assim devendo a causa da prisão ser informada oficialmente dentro das 24 horas. Quanto às penas, extingue a "confiscação de bens, a infamia, os açoutes, o baraço e pregão, a marca de ferro quente, a tortura, e todas as mais penas crueis e infamantes" e determina que "a pena deve ser proporcionada ao delicto, e nenhuma deve passar da pessoa do delinquente", princípio da máxima importância num sistema penal em que descendentes inocentes dos réus eram penalizados e infamados por várias gerações.

Igualmente importante é a determinação segundo a qual a lei "é igual para todos", extinguindo os numerosos foros especiais que tornavam certas camadas da população virtualmente imunes à ação penal comum. Sempre existiram delitos – tais como o crime de lesa-majestade, a falsificação de moeda, o incesto, a sodomia, a heresia e a apostasia – considerados de tal gravidade que diante deles cessavam todos esses foros mas, nos crimes comuns, a profusão de concessões acumulada durante séculos deixava os poderosos a salvo e os escravos, os pobres e até mesmo as camadas médias da população quase absolutamente indefesos. A mesma orientação igualitária guiava a afirmação de que "Todos os cidadãos podem ser admittidos aos cargos publicos sem outra distincção, que não seja a dos seus talentos e das suas virtudes"

Sendo o liberalismo um movimento essencialmente burguês, não podia deixar de cuidar da propriedade, definida como "um direito sagrado e inviolavel que tem todo o cidadão de dispôr á sua vontade de todos os seus bens segundo a lei" e estabelecendo que, mesmo em caso de "necessidade publica e urgente", o proprietário fosse "indemnisado pela maneira que as leis estabelecerem".

Também não podia faltar a referência à "livre communicação dos pensamentos", garantindo-se a inviolabilidade das cartas e a manifestação das opiniões "sem dependencia de censura prévia". Entretanto, a pressão da Igreja conseguiu, nos debates, subtrair a essa liberdade a publicação dos escritos de matéria religiosa, ficando "salva aos Bispos a censura dos escriptos publicados sobre dogma e moral".

Mas os aspectos mais urgentes, em vista da atual conjuntura, eram os contidos na segunda parte, que começava por definir à Nação portuguesa como "a união de todos os Portuguezes de ambos os hemispherios", máxima da maior importância porque acabava, implicitamente, com a distinção entre Portugal e as Colônias. A seguir, reafirmava – condição imprescindível vista a difícil composição de forças que sustentava a revolução – a religião católica e a monarquia hereditária, deixando explicitamente expresso que "o Rei é inviolavel na sua pessoa" e que a dinastia reinante é "a da Serenissima Casa de Bragança" e o Rei atual "o Senhor D. João VI, a quem succederão na Corôa os seus legitimos descendentes, segundo a ordem regular da primogenitura".

Entretanto, o artigo 18 estabelece que essa monarquia é constitucional e que terá "leis fundamentaes que regulem o exercicio dos tres poderes politicos". Logo em baixo, o artigo 20 determina que "A Soberania reside essencialmente em a Nação. Esta é livre e independente, e não póde ser patrimonio de ninguem" e o 21, que "Somente á Nação pertence fazer a sua Constituição ou lei fundamental, por meio de seus representantes legitimamente eleitos". Às Cortes corresponde, também, a feitura das leis, "com a dependencia da sancção do Rei, que nunca terá um veto absoluto, mas suspensivo, pelo modo que determinar a Constituição" e ressalva-se, ainda, que "Esta disposição porém não comprehende as leis feitas nas presentes Côrtes, as quaes leis não ficarão sujeitas a veto algum". O cerco, portanto, é completo: O Reino não é propriedade do monarca mas da Nação e ele pode apenas administra-lo por sua delegação e conforme as suas normas fundamentais.

Diversas outras limitações podem ser encontradas, ainda, nos demais artigos. Às Cortes corresponde determinar "a imposição de tributos e a fórma da sua repartição", reconhecer a dívida pública, arbitrar os meios para o pagamento e dotar os "estabelecimentos de caridade e instrucção publica". No aspecto econômico, o cúmulo de humilhação para o rei, outroura dono de tudo pela vontade de Deus, é atingido no artigo 32, que estabelece: "As Côrtes assignarão ao Rei e á Familia Real no principio de cada reinado uma dotação conveniente, que será entregue em cada anno ao administrador que o mesmo Rei tiver nomeado"

Também cabem às Cortes as atribuições de determinar a "força militar permanente de terra e mar", "approvar os tratados de alliança offensiva e defensiva, de subsidios, e de commercio; conceder ou negar a admissão de tropas estrangeiras dentro do Reino; determinar o valor, peso, lei, e typo das moedas" etc. Elas propõem os membros do Conselho de Estado e escolhem, dentre seus membros, "uma Junta composta de sete individuos" que, entre um e outro período de sessões, permaneçam na Capital "para fazerem convocar Côrtes Extraordinarias nos casos que serão expressos na Constituição, e cumprirem as outras attribuições que ella lhes assignalar".

Fácil resulta imaginar a razão dessas disposições. Depois de mais de um século de absolutismo, os deputados podiam diferir em múltiplos aspectos mas coincidiam, essencialmente, em um: todos eles queriam limitar o poder da monarquia, aproveitando que o seu representante principal se encontrava impedido pela distância de participar nas deliberações. Porém, embora, nos terrenos ético e filosófico, fosse indiscutível a importância dos avanços alvejados, politicamente revelavam-se pouco sustentáveis. A complexa relação de forças não permitia uma inversão completa do absolutismo e grandes setores que, conjunturalmente, aderiram às mudanças, em pouco tempo poderiam voltar-se para o trono e procurar, na restauração da autoridade real, a recuperação dos privilégios perdidos.

Procurando não violentar à autonomia das antigas colônias, ora reconhecidas como partes autônomas e soberanas do reino, o projeto aprovado pelas Cortes estabelece que "Esta lei fundamental obrigará por ora sómente aos Portuguezes residentes nos Reinos de Portugal e Algarves, que estão legalmente representados nas presentes Côrtes. Quanto aos que residem nas outras tres partes do mundo, ella se lhes tornará commum, logo que pelos seus legitimos Representantes declarem ser esta a sua vontade".

Os deputados das "outras tres partes do mundo" foram-se incorporando na medida em que chegavam, não sem que existissem sérias dificuldades de integração, apesar das boas intenções da convocatória. Essas dificuldades seriam particularmente graves com os representantes do Brasil, cuja recém conquistada posição de Reino Unido faziam questão de conservar, contrariando amplos setores da representação peninsular, que viam no Brasil o usurpador da sua antiga prosperidade.

O rei, aguardado com ânsia e temor, chegou em 4 de julho e foi recebido como um prisioneiro de luxo. Solenemente conduzido pelas ruas entre aclamações populares, teve, entretanto, sua movimentação rigidamente programada e seus colaboradores imediatos impedidos de desembarcar. A precaução não era gratuita.

Sabendo que a vitória completa era improvável, os liberais estavam dispostos a negociar, mas colocavam, como limite aceitável, as concessões contidas na Constituição outorgada por Luís XVIII, em 1815. Porém, não foi preciso chegar a tanto. D. João VI não era precisamente um governante forte. Encurralado e separado do seu círculo de confiança, acabou por aceitar e jurar as Bases conforme foram elaboradas pelas Cortes e até, no moderado discurso que pronunciou na ocasião, aceitou passivamente a repreensão por afirmar que o poder legislativo reside "na reunião do monarca e deputados eleitos pelo povo".

Paralelamente à discussão das Bases e à elaboração da Constituição, as Cortes se ocuparam de legislar sobre assuntos particulares que não admitiam mais adiamento. Junto com as Bases, essa legislação seria de grande importância para o movimento constitucionalista brasileiro, posto que várias dessas normas chegaram a vigorar antes da Independência ou motivaram medidas ulteriores do Governo imperial. Destacam-se entre elas as relativas à liberdade de imprensa e à repressão de seus abusos, que, pela primeira vez, introduziriam na nossa legislação o juízo por jurados.

Como é previsível num movimento revolucionário, especial cuidado foi posto em anistiar os crimes políticos e deserções militares acontecidos a partir de 1807. No aspecto educacional, destaca-se a concessão de liberdade de ensino e de abertura de escolas de primeiras letras sem dependência de exame ou de licença, medida da maior necessidade para superar a insuficiência da estrutura educativa posterior à expulsão dos jesuítas. Também foi extinta a "leitura dos bacharéis", processo de habilitação que – se por um lado tendia a garantir a capacidade dos postulantes à magistratura, por outro restringia o acesso a ela aos "cristãos velhos, limpos de sangue e de raça" e, na prática, se constituía em veículo das maiores arbitrariedades.

Não foi possível, durante a discussão das Bases, obter maioria para aprovar a liberdade de cultos, apesar das numerosas vozes que se alçaram em sua defesa. A representação católica era demasiadamente numerosa e a religiosidade da população não permitia liberalismos extremos. Mesmo assim, na Constituição definitiva foi possível inserir um artigo protegendo, se não a liberdade geral de cultos, ao menos o direito dos estrangeiros a manter e professar a sua religião.

Finalmente, os símbolos mais expressivos do fim da antiga ordem foram as abolições do Juízo da Inconfidência e do Tribunal do Santo Ofício. O outrora todo-poderoso tribunal eclesiástico encontrava-se tão desacreditado que, em 24 de março, a sua extinção foi aprovada por unanimidade. A proposta, apresentada pelo deputado Simões Margiochi, teve o seu mais entusiástico defensor no cônego da Sé de Lisboa, o inquisidor José Maria Soares Castelo Branco.


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