Junot protegendo a Cidade de Lisboa.

D. Pedro presta juramento às Bases da Constituição de Lisboa
(gravura de J. B. Debret)
 

  Memória
da Justiça Brasileira - 3
Capítulo 7

Nacionalismo e
Constitucionalismo no Brasil

Não parece que, majoritariamente, a população do Brasil à época da Independência estivesse maciçamente imbuída do ideário liberal e constitucionalista. A maior parte dessa população estava constituída por pretos e mulatos – escravos e forros – com pouco ou nenhum grau de instrução.

Mesmo entre os brancos, uma formação intelectual elevada distava muito de ser a regra. Excluídas, quase por completo, as mulheres, cuja instrução não era considerada prioritária; excluídos, também, amplos setores da população rural, que não contavam com muitas oportunidades de estudo; excluída boa parte da população urbana, economicamente impossibilitada de concorrer às aulas, o ensino atingia, apenas as classes mais abastadas: aristocratas, senhores de engenho, comerciantes e prepostos da Coroa.

Outro empecilho era a falência da estrutura educacional, que, durante boa parte do período colonial, dependera exclusivamente dos jesuítas e, em menor grau, de outras ordens religiosas, com pouco ou nenhum envolvimento do Estado. Expulsos os jesuítas, todo o peso da educação caiu sobre a Coroa, que não tinha infra-estrutura nem experiência adequadas para afrontar tal ônus. Não era alheia a essa incapacidade a fragilidade da monarquia, que, após a "viradeira", não apenas perdeu o dinamismo de Pombal e o seu entorno como ficou anos a fio nas mãos de uma rainha demente e de um regente sem vocação de governo.

Poucos, assim, alcançavam um grau razoável de instrução. Menos, ainda, chegavam à formação superior. Apesar do crescimento explosivo da economia brasileira durante os séculos XVII e XVIII, nenhuma universidade chegara a estabelecer-se na Colônia e apenas os filhos dos agricultores e comerciantes mais abastados – aqueles que iriam constituir o embrião da futura nobreza do Império – podiam dar-se ao luxo de viajar para estudar em Évora, Coimbra, Paris ou Londres. Precisamente esses estudantes é que introduziram o ideário liberal em todas as colônias americanas. Restrita a publicação e importação de obras literárias, mesmo a população alfabetizada dificilmente tinha acesso às obras do Iluminismo ou das revoluções americana e francesa, a não ser pelos poucos livros que os estudantes retornados traziam na bagagem.

É difícil saber até onde as idéias assim importadas constituíam sólidas convicções ou simples modismos. Pela sua origem e nascimento, esses estudantes estavam fortemente vinculados às classes dominantes que, por sua vez, dependiam estreitamente de um bom relacionamento com a Coroa portuguesa. Não podia escapar-lhes, entretanto, que, se esse bom relacionamento servia para garantir seus privilégios, também drenava seus recursos com um excesso de carga impositiva e limitava seus lucros e possibilidades de expansão em razão do monopólio característico do regime colonial. Não era outra a motivação principal da Inconfidência Mineira, muito mais preocupada com a independência que com a limitação do absolutismo ou a justiça social.

Seja como fosse, o esgotamento dos minérios, o arrocho impositivo e o empobrecimento geral constituíam um caldo explosivo para o cultivo dos ideais revolucionários. A população passava necessidades, não apenas aquela que sempre fora pobre ou escrava, mas também os filhos e descendentes daqueles que, poucas décadas atrás, enriqueceram com a extração ou comercialização de minerais preciosos. Esses, sim, sabiam ler. Talvez não pudessem viajar ou obter livros, mas devoravam avidamente os que seus colegas mais afortunados traziam da Europa.

Iniciavam-se, assim, círculos formadores de opinião aos que podiam aproximar-se inclusive daqueles que não sabiam ler. Não que chegassem a constituir grandes movimentos populares. Muito pelo contrário, operavam como fraternidades mais ou menos secretas, geralmente vinculadas à Maçonaria, agregando, além dos setores já indicados, alguns funcionários públicos, militares e profissionais liberais da confiança dos conspiradores. Essa era a conformação essencial dos grupos que fizeram a Independência e a Constituição, embora, nas situações de conflito, tropas inteiras e massas populares fossem arrastadas como elemento de pressão.

Antecedentes Constitucionais

Não houve projeto de constituição na Inconfidência Mineira nem na Conspiração dos Alfaiates. Abortados ambos os movimentos antes mesmo de tornar-se públicos, mal tiveram tempo de pensar em outra coisa senão nos objetivos gerais da insurreição. Já a Revolução Pernambucana, mesmo que brevemente, chegou a ser governo e teve a oportunidade de redigir o primeiro documento de caráter constitucional elaborado em território brasileiro.

À semelhança dos movimentos anteriores, tratava-se de uma conspiração relativamente fechada, concentrada mais em tomar o poder do que em mudar estruturas de base. Alcançado esse objetivo, concentrou-se em estruturar o novo governo elaborando uma Lei Orgânica que, até providências futuras, faria as vezes de Constituição. Não houve consulta popular nem convocação de constituintes. A lei foi elaborada pelos próprios revolucionários e, sufocado o movimento apenas dois meses depois de deflagrado, não chegou a ser publicada em versão impressa.

A Lei Orgânica instituía os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, sendo todos providos por eleição direta e irrestrita; periódica, no caso dos dois primeiros, eventual, no caso do Judiciário, cujo provimento seria vitalício.

O governo revolucionário mandou remeter cópias manuscritas a todas as Câmaras, solicitando a convocatória dos vizinhos mais destacados para analisarem o projeto e, após ampla discussão, remeterem, por escrito, críticas e sugestões que permitissem o seu aperfeiçoamento.

As principais objeções concentraram-se em questões de princípios, precisamente nos conceitos de liberalismo que mais conflitavam com interesses setoriais. O projeto de Lei Orgânica consagrava a liberdade de pensamento, o que foi visto como uma afronta à religião católica, que, apesar de algumas pregações anti-clericais, ainda era praticada pela esmagadora maioria da população. Essa acusação não prosperou. Era claro, para quem conhecesse de perto os revolucionários, que o novo regime mantinha as melhores relações com a Igreja: Comparecera em peso ao Te-Deum promovido pelo Vigário da Freguesia de Santo Antônio do Recife, mandara benzer a nova bandeira, e até incluía vários clérigos entre os conspiradores.

Já o segundo ponto foi bem mais polêmico. A afirmação de que todos os homens são iguais em direito levava implícita a ilegitimidade da escravidão, que poderia ser abolida a qualquer momento com grave prejuízo econômico para os proprietários. O Governo Provisório viu-se obrigado a emitir uma proclamação, esclarecendo que "se bem que pensa que os homens, por serem mais ou menos tostados, não degeneram do original typo de igualdade; está tambem convencido de que a base de toda a sociedade regular é a inviolabilidade de qualquer especie de propriedade; e, portanto, assegura aos patriotas que as suas propriedades, ainda as mais expostas ao ideal de justiça, serão sagradas". E concluía, taxativamente: "o governo haverá de emprestar meios de diminuir o mal, mas sem fazel-o cessar pela força".

Apesar dessa capacidade de negociação – extremamente política, diga-se de passagem – a Lei Orgânica não chegou a ser aprovada. Em 19 de maio de 1817, as forças de terra, comandadas por Cogominho Lacerda, e as de mar, sob o comando de Pires Batista, entraram na cidade do Recife. A revolução estava vencida.

Não conhecemos outros antecedentes constitucionais até a chegada do convite para que deputados brasileiros se incorporassem às Cortes de Lisboa. A repercussão foi variada. No Pará – primeira capitania a tomar conhecimento – iniciou-se um movimento espontâneo, depondo o governo e formando uma Junta Provisória que jurou obediência ao Rei, à dinastia de Bragança, às Cortes Gerais e à Constituição que delas resultasse. O mesmo aconteceu na Bahia e no Maranhão. Em Pernambuco, Ceará e Paraíba, os próprios governos se adiantaram na sublevação, convocando as Câmaras e o povo para anunciarem sua concordância com os objetivos das Cortes e sua intenção de rogar ao Rei que aderisse a elas.

No Rio, a reação foi cautelosa. Mesmo considerando irregular a reunião das Cortes sem que mediasse uma convocatória por sua parte, D. João VI optou por "permitir" que continuassem funcionando, desde que fosse apenas em caráter consultivo, comprometendo-se a receber "benevolamente" suas sugestões.

O rei, já de ordinário inseguro, achava-se no meio de múltiplas opiniões, conselhos e interesses. Enquanto alguns achavam preferível que a Coroa retomasse a iniciativa e outorgasse espontaneamente uma Constituição liberal antes que outros a fizessem pela força, não faltaram o que outros consideravam isso uma claudicação atentatória contra o princípio da autoridade régia. Nessa opinião, a insurreição deveria ser debelada pela força das armas e qualquer concessão, deveria depender da magnanimidade da Coroa, uma vez que o último dos rebeldes fosse vencido e castigado.

Se essa repressão era realmente possível, ninguém sabia ao certo. Enfraquecida e distante no exílio, humilhada pelos franceses, excessivamente dependente da proteção da Inglaterra, a monarquia portuguesa encontrava-se no seu ponto mais baixo desde a Restauração de 1640. A situação internacional também não era tranquilizadora. A lembrança da guilhotina, que tirara a vida de Luís XVI, tirava, também, o sono de D. João VI.

Por outra parte, os interesses locais criavam novos cuidados. Portugal, carente da proteção real e empobrecido desde que os portos brasileiros foram autorizados a comerciar com o resto do mundo, alternava as proclamas libertárias e anti-absolutistas com as pressões para voltar à velha ordem e recolonizar o Brasil. Do lado de cá, os brasileiros e os portugueses estavelmente assentados procuravam consolidar seus ganhos, dificultando o retorno da corte a Portugal. Uns e outros desgostavam do rei; uns e outros pressionavam para tê-lo por perto. Até a própria família real estava dividida. Enquanto a rainha sonhava em voltar a Lisboa, D. João se deixava estar no Brasil e o príncipe, seu filho, considerava-se praticamente brasileiro.

Outro fator de conflito era a própria representação às Cortes. Deslocados do seu ambiente e em minoria, pouca influência poderiam exercer os deputados brasileiros nas Cortes peninsulares e não faltava quem achasse mais produtivo convocar outras no Brasil. Afinal, se a sede da Coroa tinha sido transferida para o Rio de Janeiro, porque as Cortes deveriam realizar suas sessões em Lisboa? Adicionalmente, uma medida como essa recolocaria a iniciativa em mãos da Coroa, evitando que parecesse agir a reboque dos acontecimentos e das pressões revolucionárias.

Em 18 de fevereiro de 1821, D. João aprovou a que parecia ser a solução mais equilibrada: reconheceria as Cortes de Lisboa, porém convocando paralelamente outras similares no Brasil. Em resposta às pressões por seu retorno, não voltaria a Portugal mas enviaria seu "muito Amado e Prezado Filho", com a dupla finalidade de acalmar os que pediam a presença da família real e um preposto da sua confiança acompanhando os trabalhos da constituinte lisboeta. O inteiro teor do documento é o seguinte:

"Exigindo as circumstancias em que se acha a Monarchia justas e adequadas providencias para consolidar o Throno, e assegurar a felicidade da Nação Portugueza, Resolvi Dar a maior prova do constante desvelo que Me anima pelo bem dos Meus Vassallos, Determinando que o Meu muito Amado e Prezado Filho D. Pedro, Principe Real do Reino Unido de Portugal, Brazil e Algarves, vá a Portugal munido da Auctoridade e instrucções necessarias para pôr logo em execução as medidas e providencias que Julgo convenientes afim de restabelecer a tranquillidade geral daquelle Reino, para ouvir as representações e queixas dos Povos, e para estabelecer as reformas e melhoramentos e as Leis que possam consolidar a Constituição Portugueza; e tendo sempre por base a justiça e o bem da Monarchia, procurar a estabilidade e prosperidade do Reino Unido; e devendo ser-Me transmittido pelo Principe Real a mesma Constituição, afim de receber, sendo por Mim approvada, a Minha Real Sancção.

Não podendo, porém, a Constituição, que, em consequencia dos mencionados Poderes, se hade estabelecer e sanccionar para os Reinos de Portugal e Algarves, ser igualmente adaptavel e conveniente em todos os seus artigos e partes essenciaes á povoação, localidade e mais circumstancias tão ponderosas como attendiveis deste Reino do Brazil, assim como ás das Ilhas e Dominios Ultramarinos que não merecem menos a Minha Contemplação e Paternal Cuidado: Hei por conveniente Mandar convocar a esta Corte os Procuradores que as Camaras das Cidades e Villas principaes, que têm Juizes Letrados, tanto do Reino do Brazil, como das Ilhas dos Açores, Madeira e Cabo Verde elegerem: E Sou outrosim Servido que ellas hajam de os escolher e nomear sem demora, para que reunidos aqui o mais promptamente que fôr possivel em Junta de Côrtes com a Presidencia da pessoa que Eu houver por bem escolher para este Logar, não somente examinem e consultem o que dos referidos artigos fôr adaptavel ao Reino do Brazil, mas tambem Me proponham as mais reformas, os melhoramentos, os estabelecimentos, e quaesquer outras providencias que se entenderem essenciaes ou uteis, ou seja para a segurança individual e das propriedades, boa administração de Justiça e da Fazenda, augmento do Commercio, da Agricultura e Navegação, Estudos e Educação Publica, ou para outros quaesquer objectos conducentes á prosperidade e bem geral deste Reino e dos Dominios da Corôa Portugueza.

E para accelerar estes trabalhos, e preparar as materias de que deverão occupar-se: Sou tambem servido crear desde já uma Commissão composta de pessoas residentes nesta Côrte, e por Mim nomeadas, que entrarão logo em exercicio, e continuarão com os procuradores das Camaras que se forem apresentando, a tratar de todos os referidos objectos, para com pleno conhecimento de causa Eu os Decidir."

Mas a solução não agradou aos liberais mais exaltados. Embora a convocatória a Cortes no Brasil satisfizesse reivindicações nacionalistas, o fato de serem convocadas e controladas pela Coroa fazia prever que seriam utilizadas para fortalecer o absolutismo, mudando apenas o necessário, para que nada mudasse. Era previsível que as de Lisboa, longe do rei e em mãos dos liberais, teriam resultados politicamente mais avançados. Em 26 de fevereiro, o 3º Batalhão de Caçadores postou-se no Largo do Rossio, dando origem a um levantamento militar a que logo se agregaram outros batalhões.

Oficialmente, o rei incumbiu D. Pedro de conversar com os insurretos. Não é certo, entretanto, que o próprio príncipe não tenha se oferecido para esta função, interessado como estava em ficar no Brasil e influenciado como era ele próprio pelos movimentos liberais. Voltou com um recado taxativo e absolutamente vexatório para o rei. Deveria aprovar a Constituição de Lisboa antes mesmo de ser elaborada. E o rei o fez:

"Havendo Eu dado todas as providencias para ligar a Constituição que se esta fazendo em Lisboa com o que é conveniente ao Brasil, e tendo chegado ao Meu conhecimento que o maior bem que Posso fazer aos meus Povos é desde já approvar essa mesma Constituição, e sendo todos os Meus cuidados, como é bem constante, procurar-lhes todo o descanço e felicidade: Hei por bem desde já approvar a Constituição, que alli se está fazendo e recebel-a no Meu Reino do Brasil e nos demais dominios da Minha Coroa."

Em 7 de março, D. João iniciou os preparativos para retornar a Lisboa. Na mesma data, publicou as instruções para eleição dos deputados pelo Brasil às Cortes portuguesas. Das que deveriam ser realizadas no Brasil, não se falava mais. A decisão de D. João provocou profundo mal-estar, questionando-se a possibilidade de o Brasil ser recolonizado, o prejuízo que iria fazer nas finanças a fuga dos capitais que a Corte levaria de volta a Lisboa e a capacidade do príncipe para exercer a Regência.

Em 20 de abril, reunidos os eleitores paroquiais para escolha dos eleitores de comarca, foi lido o decreto de nomeação de D. Pedro. Foi o estopim de mais uma revolta. Emisários foram enviados às fortalezas para impedir a saída da divisão que deveria acompanhar o retorno da família real aos navios para desembarcar o tesouro e ao próprio Palácio de São Cristóvão para intimar o rei a aceitar a Constituição de Cádiz até que as normas portuguesas que estavam sendo elaboradas pudessem substitui-la. Mais uma vez, D. João transigiu:

"Havendo tomado em consideração o termo de juramento, que os Eleitores Parochiaes desta Comarca, a instancias e declaração unanime do Povo della, prestaram á Constituição Hespanhola, e que fizeram subir á minha Real Presença, para ficar valendo inteiramente a dita Constituição Hespanhola, desde a data do presente até á installação da Cons jurar com toda a minha Côrte, Povo e Tropa, no dia 26 de fevereiro do anno corrente: Sou servido ordenar, que de hoje em diante se fique estricta e litteralmente observando neste Reino do Brasil a mencionada Constituição Hespanhola, até o momento em que se ache inteira e definitivamente estabelecida a Constituição deliberada, e decidida pelas Côrtes de Lisbôa.".

Porém, D. Pedro, bem mais ousado que seu pai, resolveu enviar forças para controlar a situação. A Praça do Comercio foi atacada a tiros de mosquete, com o saldo de três mortos e numerosos feridos. A multidão dispersou-se e o príncipe, já dono da situação, convenceu D. João a recuar da concessão efetuada:

"Subindo hontem á Minha Real presença uma Representação, dizendo-se ser do Povo, por meio de uma Deputação formada dos Eleitores Parochiaes, a qual Me assegurava, que o Povo exigia para Minha felicidade, e delles, que Eu Determinasse, que de hontem em diante este Meu Reino do Brasil fosse regido pela Constituição Hespanhola. Houve então por bem decretar, que essa Constituição regesse até a chegada da Constituição, que sabia e socegadamente as Côrtes convocadas na Minha muito nobre e leal Cidade de Lisboa: Observando-se, porém, hoje, que esta Representação era mandada fazer por homens mal intencionados, e que queriam a anarchia, e vendo que o Meu Povo se conserva, como Eu lhe agradeço, fiel ao Juramento que Eu com elle de commum accordo prestamos na Praça do Rocio no dia 26 de Fevereiro do presente anno; Hei por bem determinar, decretar, e declarar nullo todo o Acto feito hontem, e que o Governo Provisorio que fica até a chegada da Constituição Portugueza, seja da forma que determina o outro Decreto, e Instrucçoes que mando publicar com a mesma data deste, e que Meu filho o Principe Rea1 há de cumprir e sustentar até chegar a mencionada Constituição Portugueza.".

Em 24 de abril, o rei embarcou para Lisboa. Ia abatido, mais fraco do que nunca. Só Carlota Joaquina parecia contente com a situação. Conta-se que, ao abordar o navio, sacudiu seu calçado, dizendo que nem a poeira do Brasil queria levar. "Afinal vou para terra de gente" – teria dito a rainha, ao partir.

Brasileiros nas Cortes de Lisboa

Como bem receavam os brasileiros, sua situação em Lisboa não seria nada vantajosa. Se, em Portugal, a falta de atualização dos censos era gritante, no Brasil era catastrófica. Assim, mesmo já contando com uma população bem superior à de Portugal, o Brasil tinha direito a apenas 76 deputados, dos quais, por diversas razões, somente 72 foram eleitos e apenas 46 chegaram a ocupar efetivamente suas bancadas. Os portugueses eram mais de cem.

Por outra parte, eles não constituíam uma representação coesa. Em verdade, muitos deles zelavam pelos interesses de suas próprias capitanias, destacando-se, pelas posições diferenciadas, os da região norte, que, desde tempos coloniais, tinha vínculos comerciais e administrativos mais fluentes com a península que com as restantes capitanias. Mesmo administrativamente, durante boa parte do período colonial, constituíram um governo independente – o estado do Maranhão e Grão Pará –, a partir de 1619 contaram com sua própria Ouvidoria Geral e, em 1812, ganharam um tribunal específico: A Relação de São Luís. Os processos, em grau de recurso, não eram encaminhados para a Bahia ou para o Rio de Janeiro. Iam diretamente à Casa da Suplicação, em Lisboa.

Também não eram ideologicamente homogêneos. Enquanto os paulistas, tradicionalmente ciosos da sua liberdade, defendiam posições mais liberais e nacionalistas, baianos e cariocas, mais próximos da hierarquia administrativa instituída pela Coroa, compactuavam com o absolutismo e até propugnavam o retorno do Brasil à condição anterior a 1808. De fato, Luiz Nicolau Fagundes Varella, deputado pelo Rio de Janeiro, e José Lino Coutinho, representante da Bahia, defenderam em alta voz a desativação dos tribunais criados por D. João VI no Brasil.

Porém, à medida em que os ânimos se acirravam com os portugueses, os brasileiros foram assumindo posições mais coordenadas e agindo em função do interesse comum a todas as capitanias. Assim, incumbidos de redigirem os artigos complementares que adequariam a Constituição portuguesa às Colônias, os brasileiros apresentaram o seguinte projeto, de autoria de José Feliciano Fernandes Pinheiro, Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, José Lino Coutinho, Francisco Villela Barboza e Pedro de Araújo Lima:

"1. Haverá no Reino do Brazil e no de Portugal e Algarves dous Congressos, um em cada Reino; os quaes serão compostos de representantes eleitos pelo povo, na forma marcada pela Constituição.

2. O Congresso Brazileiro ajuntar-se-ha na capital, onde ora reside o Regente do Reino do Brazil, emquanto senão funda no centro daquelle uma nova capital, e começará as suas sessões no meado de janeiro.

3. As provincias de Asia e Africa portugueza declararão a que Reino se querem encorporar, para terem parte na respectiva representação do Reino a que se unirem.

4. Os Congressos das Côrtes especiaes de cada Reino de Portugal e Algarves, e do Brasil, legislarão sobre o regimento interior, e que diga sobretudo especialmente respeito ás suas provincias, e terão além disto as attribuições designadas no capitulo 3º do projecto da Constituição, a excepção dos que pertencerem ás Côrtes Geraes do Imperio Luso Brasiliano.

5. A sancção das leis feitas nas Côrtes especiaes do Reino do Brazil pertencerá ao Regente do dito Reino, nos casos em que pela Constituição houver logar a dita sancção.

6. Sanccionada e publicada a lei pelo Regente em nome e com a auctoridade do Rei do Reino Unido, será provisoriamente executada; mas só depois de revistas pelas Côrtes Geraes, e sanccionadas por El-Rei, he que terá inteiro e absoluto vigor.

7. Em Portugal os projectos de lei, depois de discutidos nas Côrtes especiaes, e redigidos na fórma em que passaram, serão revistos pelas Côrtes Geraes, depois do que e da devida sancção real nos casos em que dia ha lugar, he que terão a realidade de leis.

8. Na capital do Imperio Luso Brasiliano, além das Côrtes especiaes ao respectivo Reino, se reunirão as Côrtes Geraes de toda a Nação, as quaes serão compostas de cincoenta Deputados tirados das Côrtes especiaes dos dous Reinos, vinte e cinco de cada uma, eleitos pelas respectivas legislaturas á pluralidade absoluta de votos.

9. Começarão as suas sessões um mez depois de findas as sessões das Côrtes especiaes, que deverão começar em 14 de Julho; e durarão estas Côrtes Geraes por espaço de tres mezes, acabados os quaes, dissolver-se-hão, elegendo antes entre si uma deputação permanente na forma do capitulo 4º do titulo 3º, á qual competirá as attribuições marcadas no dito capitulo no que interessar a Nação em geral.

10. Ás Cortes Geraes pertence:

1) Fazer as leis que regulam as relações commerciaes dos dous Reinos entre si, e com os estrangeiros.

2) Fazer as leis geraes concernentes á defesa do Reino Unido e á parte militar da guerra e da marinha.

3) Rever e discutir de novo as leis passadas nas Côrtes especiaes, para que, sendo approvadas e sanccionadas por El Rei, continuem em seu vigor, e sendo regeitadas, quanto as do Brasil, se mande sustar a sua execução. Este exame reduzir-se-há a dous pontos somente; que não se opponham ao bem do Reino irmão, e não offendam a Constituição geral do Imperio.

4) Decretar a responsabilidade dos ministros dos dous Reinos pelos actos, que directamente infringirem a Constituição, ou por abuso do poder legal, ou por usurpação, no que tão somente toca á Nação em geral.

5) As attribuições contidas no capitulo 3º, art. 97 do projecto da Constituição, desde o n. I até o n. VIII.

6) Fixar annualmente as despesas geraes e fiscalizar as contas da sua receitae despesa.

7) Detterminar a inscripção, valor, lei, typo e denominação das moedas; e bem assim pesos e medidas, que serão as mesmas em ambos os Reinos.

8) Promover a observancia da Constituição e das leis, e geralmente o bem da Nação Portugueza.

11. Na capital do Brasil haverá uma delegação do Poder executivo, que exercerá todas as attribuições do poder Real, a excepção das que abaixo irão designadas. Esta delegação será confiada actualmente ao successor da Corôa e, para o futuro, a elIe ou a uma pessoa da casa reinante, e na sua falta a uma Regencia.

12. O Principe herdeiro ou qualquer outra pessoa da casa reinante não serão responsaveis pelos actos da sua administração, pelos quaes respondem tão somente os ministros. A Regencia, porém, será responsavel da mesma maneira que os ministros.

13. O Regente do Reino do Brasil não poderá:

1) Apresentar, para os arcebispados e bispados, para cujo provimento deverá mandar as listas triples referendadas pelo secretario de Estado da repartição, dos que forem mais idoneos, para El-Rei delles escolher um.

2) Prover os lugares do tribunal supremo de justiça, competindo-lhe somente a proposição, na forma da lei, referendada pelo secretario da repartição.

3) Nomear embaixadores, consules e mais agentes diplomaticos e commerciaes com os estrangeiros.

4) Conceder titulos em recompensa de serviços.

5) Declarar a guerra offensiva e fazer a paz.

6) Fazer tratados de alliança offensiva ou defensiva, de subsidios ou de commercio.

14. Haverá no Reino do Brasil um tribunal supremo de justiça, formado da maneira acima dita, que terá as mesmas attribuições, que o tribunal supremo de justiça do Reino de Portugal e Algarve.

15. Todos os outros magistrados serão escolhidos segundo as leis pelo Regente, debaixo da responsabilidade do competente secretario de Estado. Quanto aos outros funccionarios, tratar-se-ha nos mais artigos addicionaes."

Apesar do seu tom mesurado, o projeto era profundamente revolucionário e foi acolhido com expressões de escândalo pelos representantes peninsulares. Apenas alguns conceitos seriam aproveitados. As Cortes exigiram que os artigos adicionais fossem novamente redigidos, imposição à qual apenas Villela Barboza se sujeitou. Os outros quatro recusaram-se a integrar a nova comissão.

Agitação no Brasil

Enquanto isso, no Brasil, a agitação crescia quotidianamente. D. Pedro, subitamente dono da situação na sua nova condição de regente, logo teve que amargar uma nova insurreição militar por parte das tropas portuguesas estacionadas no Rio de Janeiro, vendo-se forçado a jurar fidelidade às Bases da Constituição chegadas de Lisboa. Os amotinados exigiram também a demissão do Conde dos Arcos, homem de confiança do regente, a formação de uma comissão militar incumbida do comando das forças armadas e a instituição de uma junta de governo, responsável perante as Cortes de Lisboa, sem cujo consentimento nenhuma lei ou decisão importante pudesse ser concretizada. D. Pedro teve que cumprir todas as exigências, emitindo, ainda, ordem para que em todas as províncias fossem juradas as Bases da Constituição.

Crescia, em todos os âmbitos, a certeza de que a margem de manobra da monarquia precisava ser limitada e de que as regras do jogo político deviam ser claramente definidas numa Constituição publicamente instituída e soberana. Não era alheio a esse convencimento o trabalho da imprensa, particularmente efervescente nesse período. Com extrema incisividade, alertava-se contra os "anti-constitucionaes", apelidando-os de "corcundas", "emperrados" ou "caranguejos" e classificando-os em "disfarçados", "declarados" e outras categorias igualmente sugestivas.

Mas a progressiva radicalização nas Cortes de Lisboa veio em ajuda de D. Pedro. Elas já não falavam do "Reino Unido do Brasil", mas, apenas, das "Províncias Ultramarinas". Debatia-se a dissolução não apenas dos tribunais, mas de todos os órgãos criados por D. João VI, alegando que apenas serviram para a instalação da Corte e que, retornando esta à península, não mais eram necessários e transformavam-se num peso improdutivo no erário do reino. Chegou-se a cogitar da volta à separação colonial em dois governos gerais, com sedes na Bahia e no Rio de Janeiro, e até se falou em que as capitanias do norte ficassem diretamente subordinadas às autoridades peninsulares.

O vaso colmou-se com uma ordem considerada iníqua. As Cortes exigiam o retorno do Príncipe Regente a Portugal. O Brasil já perdera o rei. Se perdesse o príncipe, retornaria irremissivelmente à sua antiga condição. Até mesmo aqueles que pouco tempo atrás dele receavam e queriam restringir, a todo custo, o seu poder, passaram a apoiá-lo e a exigir sua permanência.

Destacava-se, nesse aspecto, a Junta Governativa de São Paulo, talvez a mais nacionalista e a menos liberal. Tradicionalmente desconfiados dos portugueses, os paulistas preferiam prestigiar o regente a professar, uma ilusória fidelidade às Cortes lisboetas. Em nome da Junta, o vice-presidente, José Bonifácio de Andrada e Silva, dirigiu uma carta ao Regente onde afirmava: "Se V. A. Real estiver (o que não é crível) deslumbrado pelo indecoroso decreto de 29 de setembro, além de perder para o mundo a dignidade de homem e de príncipe, tornando-se escravo de um pequeno grupo de desorganizadores, terá também que responder, perante o céu, do rio de sangue que decerto irá correr pelo Brasil".

Também Minas Gerais manifestou-se pela permanência do príncipe. No Rio, o povo em massa convergiu à Câmara, onde D. Pedro recebeu uma petição com mais de oito mil assinaturas. Na ocasião, José Clemente Pereira, presidente da Câmara, dirigiu-se ao regente com argumentos extremamente pragmáticos: "Será possível que V. A. R. ignore que um partido republicano, mais ou menos forte, existe semeado aqui e ali, em muitas das Províncias do Brasil, por não dizer em todas elas? Acaso as cabeças que intervieram na explosão de 1817 expiraram já? E se existem, e são espíritos fortes e poderosos, como se crê que tenham mudado de opinião? Qual outra lhes parecerá mais bem fundada que a sua? E não diz uma fama pública, ao parecer segura, que nesta cidade mesma, um ramo desse partido reverdeceu com a esperança da sahida de V. A. Real, que fez tentativas para crescer e ganhar forças, e que só desanimou á vista de que V. A. R. se deve demorar aqui, para sustentar a união da pátria?".

Dificilmente o regente se veria incomodado com exortações como essas. No fundo, ele mesmo desejava ficar e só precisava do apoio necessário para enfrentar às Cortes. No mesmo termo de vereação consta a sua lacônica resposta. "Como é para bem de todos, e felicidade geral da Nação, estou prompto: Diga ao Povo – Que Fico".

A Caminho da Independência

Após a "Jornada do Fico", José Bonifácio ganhou, progressivamente, a confiança do regente. À sua instância, foi convocado o Conselho de Procuradores Geraes das Provincias do Brasil. Era um corpo exclusivamente consultivo, mas parecia suficiente para, num primeiro passo, estabelecer a noção de que existia um governo central em território brasileiro e que todas as províncias estavam representadas, sem, no entanto, melindrar os restos de absolutismo ainda muito atuantes, inclusive no ânimo do príncipe, que oscilava entre seus próprios interesses e o ideário liberal que representava a modernidade da época.

Mas isso não era suficiente para os espíritos mais exaltados. Não bastava serem ouvidos. Os liberais queriam ter direito a voto e limitar as decisões do governo. Destacava-se entre eles Joaquim Gonçalves Ledo, que, através da imprensa, defendia explicitamente a convocatória de uma Assembléia Constituinte.

Do lado contrário, os moderados pretendiam consolidar o poder do príncipe frente às Cortes, mesmo que fosse em troca da cessão de uma parte dos pretendidos direitos constitucionais. Tal como os holandeses da independência, não se achavam fortes o suficiente para subsistir sem o apoio de um príncipe. No mês de maio, reunidos o povo e as tropas no Largo do Rossio, D. Pedro foi solicitado a aceitar o título de "Protector e Defensor Perpetuo e Constitucional do Reino do Brasil", ao que ele respondeu "Que acceitava e continuaria a desempenhar como até aqui o titulo, que o Povo e a tropa desta Côrte lhe conferiram".

Que tais interesses não eram inconciliáveis ficou demonstrado dez dias depois. Mais uma vez, D. Pedro foi chamado ao Senado da Câmara. Mais uma vez, José Clemente Pereira tomou a palavra:

"Vossa Alteza Real achará neste Senado venerando a firmeza da sua constitucionalidade; a solida segurança da sua coroa; a estrada certa da verdadeira gloria que promette elevar o nome de Vossa Alteza Real acima dos mais famosos principes do universo; o descanso nas suas fadigas; a salvaguarda nos seus maiores perigos; a força irresistivel das suas armas; a riqueza do thesouro publico; a consolação de ver feliz um povo que tão voluntario se declarou subdito fiel de Vossa Alteza Real; a invejada sorte finalmente de lançar a primeira pedra fundamental do imperio brasileiro, que, principiando por onde outros acabam, fará a inveja e a admiração do mundo inteiro.

Mas para que é, Senhor, produzir motivos para persuadir aonde o arbitrio na escolha falta?

Está escripto no livro das leis eternas que o Brasil deve passar hoje, oh grande dia! á lista das nações livres.

É decreto do arbitro do universo.

Há de cumprir-se, queiram ou não queiram os mortaes que impedir sua marcha a nenhum é dado.

Obedecei, Senhor, a esta lei eterna, e, cumprindo assim com um dever sagrado, fareis a vossa gloria, a salvação de Portugal, e do Brasil a dita.".

Observam-se, neste documento, frases já sintomáticas do que iria acontecer poucos meses depois, tais como "deve passar á listas das nações livres" e "a pedra fundamental do imperio brasileiro". Mas o objetivo da sessão era outro. Os representantes queriam entregar ao regente uma representação popular solicitando a convocação de uma "Assembléa Geral das Provincias do Brasil".

Com caráter de urgência, mesmo faltando os representantes de três províncias, o Conselho de Procuradores foi instalado em 2 de junho. Logo no dia seguinte, os procuradores apresentaram ao regente o seguinte requerimento:

"Senhor. – A Salvação publica, a Integridade da Nação, o Decoro do Brasil e a Gloria de V. A. Real instam, urgem e imperiosamente commandam que V. A. Real faça convocar com a maior brevidade possivel uma Assembléa Geral de Representantes das Provincias do Brasil.

O Brasil, Senhor, quer ser feliz: este desejo, que é o principio de toda a sociabilidade, é bebido na Natureza, e na Razão que são immutaveis: para preenchel-o é-lhe indispensavel um Governo, que dando a necessaria expansão ás grandissimas proporções que elIe possue, o eleve áquelle gráo de prosperidade e grandeza para que fôra destinado nos planos da Providencia. Foi este desejo, que ha longos annos o devorava, e que bem prova a sua dignidade, que o fascinou no momento em que ouviu repercutido nas suas praias o Echo da liberdade, que soou no Doiro, e no Tejo para não desconfiar do Orgulho Europeu, nem acreditar que refalsado Machiavelismo apparentasse principios liberaes para attrahil-o, adormecel-o, e restribar depois sobre a sua ruma e recolonização o edificio da felicidade de Portugal.

No ardor da indignação que lhe causou a perfidia dos seus Irmãos, que reluz por entre todos os veos que lhe procuram lançar, e que nasceu daquelles mesmos principios de generosidade e confiança que os deviam penhorar de gratidão, o Brasil rompia os vínculos moraes de Rito, Sangue e costumes, que quebrava de uma vez a Integridade da Nação, a não ter deparado com V. A. Real, o Herdeiro de uma Casa que elle adora, e serve ainda mais por amor e lealdade, do que por dever e obediencia.

Não precisamos Senhor, neste momento fazer a enumeração das desgraças com que o Congresso, postergando os mesmos principios que lhes deram nascimento, autoridade e força, ameaçava as ricas Províncias deste Continente. A Europa, o Mundo todo, que o tem observado, as conhece, as aponta, as enumera. O Brasil já não póde, já não deve esperar que delle, que de mãos alheias provenha a sua felicidade. O arrependimento não entra em corações que o crime devora.

O Congresso de Lisboa, que perdeu o Norte que o devia guiar, isto a felicidade da maior parte, sem attenção a velhas etiquetas, já agora é capaz de tentar todos os tramas, e de propagar a anarchia para arruinar o que não pede dominar. Maquinam-se dissenções, alentam-se esperanças niminosas, semeam-se inimisades, cavam-se abysmos aos nossos pés: ainda mais, consentem-se dous centros no Brasil dous principios de eterna discordia, e insistem na retirada de V. A. Real que será o instante que os hade pôr a um contra o outro.

E deverá V. A. Real cruzar os braços, e immovel esperar que rebente o vulcão sobre que está o throno de V. A.? É este, Senhor, o grande momento de felicidade, ou da ruina do Brasil. Elle adora a V. A. Real, mas existe uma oscillação de sentimentos, movida pelo receio de seus antigos males, pelo receio do Despotismo, que as facções secretas muito fazem valer, muito forcejam para aproveitar. A ancora que pode segurar a Náo do Estado, a Cadêa que pode ligar as Provincias do Brasil aos pés do Throno de V. A. Real é a convocação de Côrtes, que em nome daquellas que representamos, instantemente requeremos a V. A. Real.

O Brasil tem direitos inauferiveis para estabelecer o seu Governo, e a sua independencia; direitos taes, que o mesmo Congresso Luzitano reconheceu, e jurou. As Leis, as Constituições, todas as instituições humanas são feitas para os Povos, não os Povos para ellas. É deste principio indubitavel, que devemos partir: as Leis formadas na Europa podem fazer a felicidade da Europa, mas não da America.

O systema Europeu não pode, pela eterna razão das cousas, ser o sistema Americano; e sempre que o tentarem será um Estado de coacção, e de violencia, que necessariamente produzirá uma reação terrível.

O Brasil não quer attentar contra os direitos de Portugal, mas desadora que Portugal Deputados do Congresso de Lisboa: o Brasil quer a sua Independencia, mas firmada sobre a União bem entendida com Portugal, quer emfim apresentar duas grandes Familias, regidas pelas suas Leis, presas pelos seus interesses, obedientes ao mesmo Chefe.

Ao decoro do Brasil, á Gloria de V. A. Real não pode convir que dure por mais tempo o estado em que está.

Qual será a Nação do Mundo que com elle queira tratar emquanto não assumir um caracter pronunciado? emquanto não proclamar os direitos que tem de figurar entre os Povos Independentes? E qual será a que despreze a amizade do Brasil, e a amizade do seu Regente? É nosso interesse a Paz; nosso inimigo só será aquelle que ousar atacar a nossa Independencia.

Digne-se, pois, V. A. Real ouvir o nosso requerimento: pequenas considerações só devem estorvar pequenas almas. Salve o Brasil, Salve a Nação, Salve a Realeza Portugueza."

O regente, que, obviamente, estava ciente e participava do projeto, respondeu, no mesmo dia, com o seguinte decreto:

"Havendo-Me representado os Procuradores Geraes de algumas Providencias do Brasil já reunidos nesta Côrte, e differentes Camaras e Povo de outras, o quanto era necessario, e urgente para a mantença da Integridade da Monarchia Portugueza, e justo decoro do Brasil, a convocação de uma Assembléa Luso-Brasiliense, que investida daquella porção de Soberania, que essencialmente reside no Povo deste grande, e riquissimo Continente, constitua as bases sobre que se devam erigir a sua Independencia, que a Natureza marcara, e de que já estava de posse, e a sua União com todas as outras partes integrantes da Grande Familia Portugueza, que cordialmente deseja: E Reconhecendo Eu a verdade e a força das razões que Me foram ponderadas, nem vendo outro modo de assegurar a felicidade deste Reino, manter uma justa igualdade de direitos entre elle e o de Portugal, sem perturbar a paz, que tanto convem a ambos, e tão propria é de Povos irmãos: Hei por bem, e com o parecer do Meu Conselho de Estado, Mandar convocar uma Assembléa Geral Constituinte e Legislativa, composta de Deputados das Provincias do Brasil novamente eleitos na forma das instrucções, que em Conselho se acordarem, e que serão publicadas com a maior brevidade."

Estavam dados os passos essenciais para a primeira Constituição do Brasil e, – por que não dizer? – também da Independência.


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