Por Desembargador Cássio Miranda
Em novembro de 1896, no sertão da Bahia, a recém-instalada República deflagrou uma guerra insana e criminosa contra Canudos. Resultaria incompreensível tal absurdo não fosse a força da mentira como arma política. E quanto mais se compreende o que aconteceu, menos se admite que tenha acontecido. Pelo menos para os homens de consciência livre.
Do grego Ésquilo, o pai da tragédia, que dizia que “numa guerra, a primeira vítima é a verdade”, passando por Joseph Goebbels, o “anão venenoso” nazista que costumava repetir a máxima “caluniai, caluniai, há de restar alguma coisa”, atribuída ao dramaturgo francês Pierre Beuamarchais, a verdade tem sido imolada para atender a fins inconfessáveis. E tanto pior quando se apresenta como uma meia-verdade, o que equivale a uma meia-mentira. E assim como uma mulher não pode estar mais ou menos grávida, a meia-verdade não é outra coisa senão uma mentira estilizada. Mentiu-se muito sobre Canudos. Antes, durante e depois da guerra. Ainda se mente. Ainda se mentirá. Recolhemos, por ora, apenas sete mentiras, porque esse número, dizem, representa a busca da verdade acima do conhecimento superficial.
A primeira e mais conhecida mentira difundida é apontar Antônio Conselheiro como um louco, um fanático religioso despropositado; e seus seguidores como vítimas de uma histeria coletiva, conforme concluíram Nina Rodrigues e Euclides da Cunha. Não bastassem as lições do renomado psiquiatra argentino Nero Rojas no sentido de que “el hombre absolutamente normal es una anormalidad” e de Millôr Fernandes ao acentuar que “todo mundo é maluco, depende de onde você cutuca”, o Conselheiro, malgrado sua intensa religiosidade, por vezes extravagante, era um homem pragmático que apregoava aos desvalidos que não era preciso morrer para ter uma vida melhor no além; que isso era possível aqui mesmo numa comunidade onde o trabalho coletivo beneficiaria a todos.
Para Edmundo Moniz, “Antônio Conselheiro ia além do ideal religioso, da fé em Deus, da obediência aos ensinamentos de Jesus, tais como constam nos Evangelhos. A igualdade pregada pela Igreja, no Paraíso, pretendia estabelecê-la nesse mundo”.
Em verdade, a sua “loucura” foi posicionar-se contra a escravidão, contra a República, que dizia ser o anticristo, porquanto oriunda de um golpe de Estado que destituiu a monarquia, que ele julgava ser a única forma de governo legitimada por Deus; e engendrou uma opção popular contra o sistema opressor dos latifundiários; ousou contrariar a elite da Igreja Católica, historicamente aliada dos poderosos coronéis do sertão; e, sobretudo, atreveu-se a conduzir seus seguidores às margens do rio Vaza Barris, no sertão profundo, para construir e fazer valer uma experiência comunitária inspirada na utopia do cristianismo primitivo, já que o governo só aparecia na vida do pobre para punir e cobrar impostos, enquanto beneficiava os ricos num sistema perverso sem esperança para os fracos.
A segunda mentira, numa concepção euclidiana, é tomar o Conselheiro como “um gnóstico bronco” que optara por uma “vadiagem franca”. Bastaria a leitura das prédicas escritas pelo Conselheiro para fazer prova de sua inteligência singular. A sua biografia desmantela essa opinião leviana que lhe imputa vadiagem ao desconsiderar, no mínimo, seu trabalho na construção de igrejas, cemitérios e açudes, sertão adentro. Antônio Vicente Mendes Maciel, antes de ser o Conselheiro, foi comerciante, professor de português, matemática, geografia, latim e francês. Foi, em seguida, advogado provisionado, isto é, rábula, conhecido como advogado dos pobres. Também foram rábulas Luiz Gama, Cosme de Farias, Evaristo de Moraes e tantos outros melhores advogados do que uma infinidade de bacharéis sem prumo. Lera a Utopia de Thomas Morus e nela inspirou-se para fundar e tentar levar a efeito uma sociedade igualitária, reprimida pela brutalidade republicana que defendia os privilégios da classe dominante e cujo presidente Prudente de Morais, o primeiro eleito por voto popular, mas cuja capacidade cognitiva era acentuadamente inferior à visão de mundo do Conselheiro, a ponto de acreditar que este representava um perigo para o status quo, mandou para Canudos, na quarta expedição da maior vergonha do Exército brasileiro, seja pela macabra missão, seja pelas derrotas fragorosas que lhe impuseram os combatentes sertanejos mal armados, o seu Ministro da Guerra, marechal Carlos Machado Bittencourt, para comandar o inominável fratricídio numa impiedosa e covarde guerra de extermínio, a pretexto de fulminar um reduto monarquista. O povo de Canudos, composto por explorados de todo canto e de toda sorte, queria apenas viver em paz.
A terceira mentira, assim chamada porque fake news é coisa de aculturado americanófilo e não usaremos o eufemismo inverdade, é dizer que o Conselheiro partiu em sua missão apostolar porque sua esposa Brasilina Laurentina de Lima fugira com um furriel da força pública cearense chamado João da Mata. A partir daí, ele muda de vida e passa a exercer várias profissões, inclusive a de vendedor ambulante, em diversas localidades no interior do Ceará. Para Ataliba Nogueira, isso seria indicativo de que pretendia encontrar os amantes para vingar-se. Edmundo Muniz discorda, dando conta que Brasilina passara a viver em Sobral. Certo é que Antônio Maciel reconstruiu sua vida afetiva com Joana Imaginária, que esculpia imagens de santos em barro e madeira, com quem teve um filho batizado João Aprígio. Apegado ao cristianismo e influenciado pelo padre José Antônio de Maria Ibiapina, um filantropo cearense que trocara a magistratura pela batina, Antônio Maciel resolveu sair em peregrinação evangelizadora nômade, mas Joana Imaginária não quis acompanhá-lo. Foi o exemplo do padre Ibiapina, e não o de Brasilina, que fez de Antônio Maciel o Conselheiro.
A quarta mentira chegou em forma de uma terrível calúnia vinte anos antes da guerra, em 1876, quando o Conselheiro, já reconhecido como tal, estava em Itapicuru, na Bahia. “Diziam-no assassino da esposa e da própria mãe. Era uma lenda arrepiadora”, escreveu Euclides da Cunha em Os Sertões. Preso, não permitiu que seus seguidores reagissem; conduzido para Salvador sob maus tratos e constrangimentos, nada reclamou. Perguntado pela autoridade policial sobre os espancamentos sofridos durante a viagem, “limitou-se a responder que mais do que ele havia sofrido Jesus Cristo; e que apenas se ocupava em apanhar pedras para edificar igrejas”, conforme Oleone Fontes. E nada mais disse. Levado para o Ceará, lá constatou-se sua inocência. Era órfão de mãe desde a primeira infância e sua ex-esposa, abandonada pelo amante, fora encontrada esmolando em Sobral. Retornou a Itapicuru no dia em que prefixara no momento de sua prisão, o que fortaleceu sua credibilidade.
A quinta mentira, apregoada pela imprensa republicana Brasil afora, dizia que Canudos resistia porque contava com um exército de mercenários europeus comandados pelo Conde d’Deu, o insosso marido francês da Princesa Isabel, o que dispensa qualquer comentário, exceto pelo fato de que os jornais que tentavam desmentir a existência de um reduto monarquista no sertão da Bahia, foram empastelados no Rio de Janeiro.
A sexta mentira, reproduzida pelo Coronel do Exército Davis Ribeiro de Sena, em 1993, é a de que em Canudos havia um enclave. Segundo ele, “O exército recebeu uma missão de destruir Canudos. Certo ou errado, alguém superior ao exército deu esta ordem (…). Canudos foi construída dentro do nosso país. Era uma secessão. E essa secessão tinha que ser debelada (…). Houve um separatismo. Ele criou um reino do Belo Monte dentro do país. Agora, a maneira açodada que chegaram lá as expedições, aí já é outro problema”. Com todo respeito, essa é uma tentativa equivocada de justificar o injustificável, sequer serve como explicação. Jamais houve qualquer indício de separação, de proclamação de Canudos como território independente do Brasil. Canudos era o Brasil; era o povo pobre tentando erguer-se contra a injustiça social e a opressão. O Conselheiro não se imiscuía em questões políticas partidárias, ao contrário do padre Cícero Romão Batista, no Ceará. De Canudos não se tem notícia de qualquer insurgência armada contra a República, muito menos de separar-se do Brasil. Com sua economia de subsistência, o povo vivia trabalhando sem a perseguição do fisco. Apenas defendeu-se com bravura quando injustamente atacado. O Conselheiro criou um reino sem rei; um reino que objetivava uma prosperidade coletiva, afinal abortada violentamente pelo governo. O exército cumpriu sua missão infame de não deixar pedra sobre pedra. Das 5.200 casas, número talvez superestimado pelo exército para tentar diminuir a vergonha de suas derrotas militares, sobraram apenas ruínas da segunda igreja, hoje submersas no açude de Cocorobó.
Por fim, a sétima mentira consiste em tratar o Conselheiro como um embusteiro que se apresentava como fazedor de milagres com ares de santo. Ataliba Nogueira diz que a ele nunca se atribuiu milagre algum. Jamais usurpou funções sacerdotais, nem de médicos, farmacêuticos ou curandeiros. E ressalta: “Não lhe chamam Bom Jesus. Não se inculca enviado de Deus. Não é profeta. Apenas prega a doutrina dos evangelhos e da tradição da igreja católica romana”. E, principalmente, permaneceu ao lado dos pobres, dos desvalidos, dos sem eira nem beira, dos Zé Ninguém, dos invisíveis, dando-lhes mais do que uma vã esperança, o que se faz com mero discurso, uma vida digna que se constrói com trabalho, em um lugar chamado Canudos, que ele renomeou para Belo Monte e que Euclides da Cunha apelidou de a Jerusalém de Taipa. A Jerusalém sertaneja destruída pelos infiéis republicanos oligarcas para que não se multiplicasse como exemplo conselheirista do bem-viver.