A Invasão Holandesa havia deixado um rastro de destruição e pobreza em Salvador, que foi ocupada pelo comandante espanhol da esquadra libertadora, Almirante Fradique de Toledo. Sabedor de uma investigação conduzida no âmbito do Tribunal da Relação, para apurar os fatos que desencadearam a queda da Capital da Colônia, requisitou os respectivos autos, todavia o pleito não encontrou guarida, e ele ordenou a execução de supostos traidores.
Ademais, o referido militar, aproveitando o clima de antissemitismo em Salvador, determinou a prisão de dezenas de cristãos novos e os condenou à morte, pois eram apontados, por parte da população, como colaboradores dos holandeses. A perseguição contra os judeus recrudescera após a segunda Visitação do Santo Ofício (Inquisição), em 1618 (a primeira ocorreu no ano de 1591).
O Chanceler (Presidente) da Corte de Justiça, Antão de Mesquita de Oliveira, enfrentou o Almirante, sustentando que ele estava extrapolando as suas funções, imiscuindo-se na jurisdição, perseguindo os cristãos novos (um grupo de cinco fora executado), tendo Portugal determinado a soltura dos prisioneiros.
Já na Espanha, Fradique de Toledo tratou de depreciar o trabalho desenvolvido pelos Desembargadores, retaliando-os pelo enfrentamento.
A débil situação financeira de Salvador, depois da Invasão Holandesa, exigiu uma impactante contenção de despesas. O indesejável aumento de impostos e taxas foi discutido e aprovado na Câmara Municipal. O aprimoramento do sistema de defesa da Capital da Colônia resultaria na construção de novas fortalezas. Logo, a manutenção do Tribunal da Relação passou a ser questionada, por representar um gasto dispensável.
A remuneração dos integrantes e principais servidores da Corte de Justiça, utilizando a moeda da época (real-réis), era assim distribuída: CHANCELER-410$000; PROCURADOR DA FAZENDA-400$000; DESEMBARGADORES-350$000 e 300$000; MEIRINHO DA RELAÇÃO-160$000; MEIRINHO DO OUVIDOR GERAL-84$000; e GUARDA MOR DA RELAÇÃO-50$000. No total, incluindo os funcionários restantes, a despesa fixa correspondia a 4:954$000, uma elevada soma. Portugal pagava muito bem aos Magistrados que trabalhavam além-mar. Os Desembargadores recebiam diárias nos deslocamentos pela Colônia, um bônus especial e a garantia de amparo à família, em caso de acidente; o incentivo compensava as agruras e o “difícil acesso”.
Se o custo do Tribunal já configurava justificativa suficiente para a sua desativação, por falta de dotação orçamentária, no período pós-guerra, a ausência de apoio político seria o motivo preponderante.
A instalação da Corte de Justiça, em 1609, desagradou muitos grupos, que se sentiram prejudicados. O clero, os militares, os ricos comerciantes e os políticos nunca aceitaram a independência do Sodalício, que representava um freio nas arbitrariedades e esperança para os pobres, até então completamente desamparados e desassistidos.
As capitanias, principalmente as do Sul, eram refratárias às inspeções dos Desembargadores. Pernambuco, a área mais rica da Colônia, nunca se conformou com a submissão ao Governo-Geral de Salvador, tampouco à Relação.
Não adiantou o documento elaborado por soteropolitanos, nominado “Razão q. darão os moradores da Bahya para não se extinguem a Relação” (redação original), apócrifo, que indicava os avanços, na sociedade colonial, com o funcionamento do Tribunal, malgrado reconhecesse excessos e desvios de alguns Magistrados, mazelas semelhantes às da Casa de Suplicação de Lisboa.
Outro episódio iria gerar desgaste político para a Relação, ao desconsiderar a ordem do Governador-Geral interino, Matias de Albuquerque, também Governador de Pernambuco, que determinara a soltura dos criminosos, a fim de que pudessem trabalhar na defesa de Salvador. Contrariando o Tribunal, a Coroa, em 1º de abril de 1626, ordenou a libertação dos presos, mesmo porque, no dia anterior, o Rei Felipe IV (III para os portugueses) havia acatado a sugestão do Conselho de Estado e decretado a extinção da Corte de Justiça, cujo ato foi publicado a 05 de abril.
Com a supressão, permaneceram, em Salvador, o Chanceler Antão de Mesquita de Oliveira, como Magistrado Real e Ouvidor-Geral, e o Desembargador Diogo de São Miguel Garcês, na função de Provedor dos Defuntos. Os pares retornaram a Portugal, servindo na Casa de Suplicação de Lisboa, na Relação do Porto ou nos Conselhos do Reino.
Em 14 de abril seguinte, reeditou-se o Regimento da Ouvidoria-Geral.
A abolição da Relação do Brasil comprometeu uma estrutura burocrática judiciária consolidada, integrada por Advogados que se instalaram na Capital da Colônia, atraídos pelo aumento do movimento forense.
Nos dezessete anos de funcionamento da Corte de Justiça, os Desembargadores atuaram em diversas frentes, deslocando-se por regiões inóspitas, cumprindo os deveres diante das adversidades, levando a prestação jurisdicional aos rincões mais distantes e contribuindo para o desenvolvimento do incipiente Poder Judiciário brasileiro. Só o tempo diria se a experiência do primeiro Tribunal das Américas havia alcançado seu objetivo ou fracassado na sua missão.
Desembargador Lidivaldo Reaiche*
Referências bibliográficas:
História do Brasil – 1500-1627 – Frei Vicente do Salvador
Carta Ânua – Antônio Vieira
A Relação da Bahia – Affonso Ruy
Burocracia e Sociedade Colonial: a Suprema Corte da Bahia e seus Juízes – Stuart Schwartz
História Geral do Brasil – Visconde de Porto Seguro
Memória da Justiça Brasileira, volume 1 – Tribunal de Justiça do Estado da Bahia
Memórias Históricas e Políticas da Província da Bahia – Anotações de Braz do Amaral – Inácio Accioli de Cerqueira Silva
Salvador e a invasão holandesa de 1624-1625 – Ricardo Behrens
*O Desembargador Lidivaldo Reaiche Raimundo Britto retrata a História do Tribunal da Bahia, desde a época que funcionou como o Tribunal da Relação. Estudioso e pesquisador do tema, o Desembargador Lidivaldo é Presidente da Comissão Temporária de Igualdade, Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos Humanos (Cidis) e membro da Comissão Permanente de Memória.