O Porto da Capital da Colônia era o mais importante do Atlântico Sul, parada obrigatória para o conserto de avarias nas naus, em razão dos estaleiros e oficinas existentes. O movimento de passageiros e cargas era intenso, inclusive de escravizados vindos da África.
No ano de 1668, o naufrágio do Galeão Sacramento, nas proximidades do Forte de Santo Antônio, comoveu a população de Salvador e precipitou os estudos para a instalação do Farol da Barra, o primeiro do Brasil, ocorrida em 1698. Na fortificação que serve de base, encontram-se expostos diversos objetos da embarcação submersa, recuperados na década de 1970.
Em 1685, a epidemia de febre amarela irrompe no Recife, trazida por um navio cuja rota incluía São Tomé e Santo Domingo, nas Antilhas, onde a doença grassava. Não demoraria para se espalhar em Salvador, pois a derrubada da Mata Atlântica propiciava a proliferação do mosquito transmissor.
No dia 04 de abril de 1686, dois homens foram as primeiras vítimas. Um dos sintomas, a pele amarelada, serviu para nominar a moléstia.
Num curto espaço de tempo, “o mal da bicha”, como foi apelidado o surto, ceifou a vida de Dom João Madre de Deus Araújo, Arcebispo Primaz do Brasil, em 13 de junho daquele ano.
A tragédia que se abateu sobre os soteropolitanos levou a população a invocar a intercessão de São Sebastião, São Gonçalo e São Francisco Xavier. Este último, também conhecido como Apóstolo do Oriente, por ter sido jesuíta evangelizador e sucumbido diante de uma epidemia, quando se aproximava da costa chinesa, ganhou logo a devoção. Ele era espanhol e morreu em 1552, aos 46 anos.
A contaminação se alastrou, até mesmo no Recôncavo, alcançando quem havia ali se abrigado.
As autoridades, o clero, a elite e os populares viram, na doença disseminada, uma punição aos pecados. Procissões foram organizadas, inclusive com a imagem de São Francisco Xavier e sua relíquia (parte de um osso de seu corpo), trazida pelos jesuítas, que percorreu o perímetro do atual Centro Histórico. Consequentemente, a Câmara de Vereadores reconheceu, no dia 10 de maio de 1686, aquele Santo como o padroeiro de Salvador, o que constou da Provisão Régia, de 03/03/1687, referendada pela Sagrada Congregação dos Ritos, em 13/03/1688.
Até mesmo o Governador-geral Matias da Cunha faleceria no dia 24 de outubro de 1688, em decorrência da febre amarela, tendo sido constituído um governo provisório dirigido pelo novo Arcebispo, D. Frei Manoel da Ressurreição, com a participação do Chanceler (Presidente) da Relação, Desembargador Manoel Carneiro de Sá.
Na Capital da Colônia, de 1686 a 1692, cerca de 25 mil pessoas adoeceram e novecentas pereceram, inclusive dois médicos e alguns jesuítas. Poucos escravos foram a óbito, talvez por terem os anticorpos contra o vírus.
Entre 1685 e 1687, faleceram cinco Desembargadores, vitimados pela enfermidade: MANOEL DA COSTA PALMA, JOÃO DE GÓES E ARAÚJO, JOÃO DE COUTO DE ANDRADE, JOSÉ DA GUARDA FRAGOSO e JERÔNIMO DE SÁ E CUNHA.
Somente em1692, a “peste” findou.
Desde 1686, anualmente, no dia 10 de maio, a mesma imagem de São Francisco Xavier é conduzida pelos Vereadores da Câmara Municipal até a Catedral Basílica, onde é celebrada Missa, em agradecimento. Da sacristia do templo, antiga Igreja dos Jesuítas, o padroeiro de Salvador continua protegendo a Cidade, das epidemias, ao longo dos séculos.
Desembargador Lidivaldo Reaiche*
Fontes de pesquisa:
Burocracia e Sociedade Colonial: a Suprema Corte da Bahia e seus Juízes – Stuart Schwartz – Ed. Companhia Das Letras
Crônica do Viver Baiano Seiscentista – Obras Completas de Gregório de Matos – O Boca do Inferno – Ed. Janaína
História do Brasil – 1500-1627 – Frei Vicente do Salvador
Carta Ânua – Antônio Vieira
A Relação da Bahia – Affonso Ruy
História Geral do Brasil – Visconde de Porto Seguro
Memória da Justiça Brasileira, volume 1 – Tribunal de Justiça do Estado da Bahia
Memórias Históricas e Políticas da Província da Bahia – Anotações de Braz do Amaral – Inácio Accioli de Cerqueira Silva
Dicionário dos Desembargadores – 160-1834 – José Subtil
Tribunal de Justiça do Estado da Bahia – 410 anos fazendo história
História da Febre Amarela no Brasil – Odair Franco
Os santos e a peste no brasil colonial (1685-1754) – Edson Tadeu Pereira
A peleja de São Francisco contra o mal da bicha – Diogo Tavares
*O Desembargador Lidivaldo Reaiche Raimundo Britto retrata a História do Tribunal da Bahia, desde a época que funcionou como o Tribunal da Relação. Estudioso e pesquisador do tema, o Desembargador Lidivaldo é Presidente da Comissão Temporária de Igualdade, Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos Humanos (Cidis) e membro da Comissão Permanente de Memória.
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