Em 1936, na pacata cidade do Conde, a 179 Km da capital Salvador, nas entranhas da Bahia, nascia José Bispo Santana, homem negro que no futuro percorreria os caminhos da Justiça baiana. Um jovem, filho de um humilde lavrador, o sr. José Bispo dos Santos e de uma incansável lavadeira a senhora Maria Faustina de Jesus, José Bispo — como ficou conhecido — teceu sua própria trajetória de superação e dedicação aos estudos que culminou em um feito extraordinário: tornar-se desembargador no estado da Bahia.
A jornada desse filho da região da Costa dos Coqueiros na Bahia começou em uma casa simples, onde o calor do fogão a lenha era o ponto de encontro das aspirações e dos sonhos. Aos finais de semana, a mãe dedicada também se transformava em uma habilidosa quituteira, levando seus manjares à feira da cidade, não apenas para garantir o sustento, mas também para fomentar os anseios de uma qualidade de vida melhor.
O jovem, desde cedo, nutria um sonho grandioso: tornar-se juiz. Era comum enquanto sua mãe preparava as refeições ao pé do fogão a lenha, José Bispo pegar um ou dois pedaços de carvões e escrever nas paredes de casa a frase “José Bispo Juiz de Direito”. Não acreditando na possibilidade devido às circunstâncias sociais e condições financeiras, sua mãe sempre o repreendia. Pois, assim como a maioria dos moradores da cidade, achavam tudo aquilo uma grande utopia. Afinal, quem em sã consciência acreditaria que aquele menino pudesse se estudar na Capital do estado e até se tornar Juiz de Direito e chegar ao cargo de Desembargador?
Consciente de que o caminho seria árduo, ele não hesitou em buscar oportunidades de estudo. Vez que, para o seu nível social e para a época, seu acesso à educação alcançaria apenas a oitava série. Foi então que, com uma determinação própria, decidiu escrever uma carta a próprio punho destinada ao então presidente Getúlio Vargas (1882 – 1954). Naquela carta, o futuro juiz e desembargador, mesmo diante da sua pouca idade, conseguiu expressar sua história de lutas, desvelando os obstáculos que a sua realidade lhe impunha.
Atravessando os sofrimentos das estradas de chão e o labor de diversas realidades da época, a carta chegou aos corredores do poder do Palácio do Catete no estado do Rio de Janeiro, bem como às mãos do presidente do Brasil, que ao ler aquelas palavras carregadas de esperança e determinação, decidiu estender a mão ao jovem promissor. Foi assim que aquele jovem conseguiu uma bolsa de estudos, e esta lhe dava acesso a um internato na cidade de Salvador-Ba, abrindo as portas para um futuro repleto de possibilidades.
Daí por diante, a vida daquele jovem ganhou novas cores e perspectivas. Sob o teto da academia, ele mergulhou de cabeça nos estudos, demonstrando uma aptidão brilhante para o conhecimento jurídico. Em 1964, orgulhosamente, ele se formou em Direito pela Universidade Federal da Bahia, marcando o início de uma jornada que culminaria em feitos notáveis.
Contudo, a caminhada rumo à magistratura ainda estava em seu início. O jovem bacharel não mediu esforços para galgar degrau por degrau. Em 1966, aprovou-se em um concorrido concurso para juiz de direito, dando início a uma carreira que se destacaria pela ética, humanidade e dedicação ao jurisdicionado. Seus passos o levaram às mais diversas comarcas do estado da Bahia, com passagem em cidades como Itambé e Vitória da Conquista, no sudoeste do estado. Ele deixava sua marca de justiça e empatia. Era um magistrado que não se restringia apenas aos rigores da Lei, mas que também compreendia as nuances e desafios enfrentados por aqueles que buscavam resolução na Justiça.
Sua trajetória não foi isenta de obstáculos e desafios, mas cada adversidade era encarada como uma oportunidade de crescimento. A humildade e a dedicação que o acompanharam desde os dias de São Francisco do Conde eram pilares inabaláveis em sua jornada.
Em 2002, após 36 anos de ter sido aprovado como Juiz de Direito, e após uma carreira repleta de méritos e dedicação, o Dr. José Bispo, que outrora sonhara em se tornar juiz, viu seu esforço e talento serem reconhecidos. E aquela alma ainda jovem é convocada a tomar posse como Desembargador do Tribunal de Justiça da Bahia. Assim, aquele senhor, que enquanto garoto materializou nas paredes de casa o sonho de escrever uma carta ao então presidente Getúlio Vargas pedindo apoio para dar continuidade aos seus estudos, agora ocupava uma posição de destaque na magistratura baiana. Porém, a sua escolha foi se tornar desembargador por antiguidade. E assim, aconteceu.
Seu legado vai além das salas de audiência e dos corredores do tribunal. José Bispo foi um exemplo vivo de que a determinação, aliada ao acesso à educação, pode transformar vidas e superar as barreiras impostas pelo meio. Sua história é um exemplo para as pessoas que ousam sonhar alto, mesmo diante das adversidades.
Hoje, se estivesse vivo, e se pudesse olhar para trás e contemplar toda a jornada percorrida, com certeza ele reafirmaria a sua gratidão às raízes que o moldaram, à família que o apoiou e aos mentores que o guiaram. Cada desafio enfrentado e cada vitória conquistada foram tijolos que construíram o caminho que o levou da simplicidade do campo à grandiosidade da corte. Aquele Desembargador, com sabedoria e experiência, continua a inspirar não apenas aqueles que têm o privilégio de trabalhar ao seu lado, mas também uma nova geração de estudantes e profissionais do direito. Sua jornada é uma prova irrefutável de que, com esforço e dedicação, é possível romper fronteiras e alcançar as estrelas.
Para finalizarmos essa narrativa de vida e conquistas, podemos considerar que o exemplo de José Bispo Santana ressoa não apenas no âmbito da justiça, mas em todas as esferas da sociedade, lembrando a todos que os limites são apenas fronteiras a serem desafiadas. Que sua jornada inspire não apenas os jovens que aspiram à advocacia, mas a todos que buscam transcender as circunstâncias e alcançar o extraordinário.
O jovem que um dia sonhou em ser juiz se tornou um farol de esperança e possibilidade. Sua história é um lembrete de que, independentemente de onde uma jornada ou um sonho comece, com determinação e paixão pelo conhecimento, é possível alcançar e tornar nossos objetivos de maneira inimaginável, e que apenas o céu pode ser o limite.
E assim, foi a trajetória do jovem que saiu do campo para conquistar a corte, permanecendo como um testemunho de que os sonhos mais audaciosos podem se tornar realidade quando regados pela persistência, resiliência e, acima de tudo, pelo amor à Justiça. Que sua história inspire gerações presentes e futuras a trilharem seus próprios caminhos rumo a um futuro de possibilidades sem limites.
A reflexão sobre a falta de diversidade racial no sistema judiciário brasileiro é essencial para compreendermos as complexidades e desafios que permeiam nossa sociedade. O diagnóstico apresentado pelo Conselho Nacional de Justiça evidencia uma realidade alarmante: apenas 1,7% dos juízes e juízas se identificam como pretos, enquanto a grande maioria, 83,8%, é branca.
Essa disparidade reflete não apenas uma questão de representatividade, mas também de acesso igualitário às oportunidades no campo da justiça. É crucial questionarmos por que a diversidade racial ainda é tão sub-representada em um setor tão fundamental para a garantia dos direitos e a promoção da justiça social.
A ausência de equidade racial no judiciário brasileiro representa uma lacuna na efetivação dos princípios democráticos e na construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. A diversidade de perspectivas, experiências e vivências é fundamental para uma atuação judiciária mais sensível às diferentes realidades e para a construção de decisões mais equitativas.
Diante desse quadro, torna-se evidente a urgência de implementar medidas mais eficazes para promover a equidade e a representatividade racial no sistema judiciário. A política de cotas, por exemplo, é um passo importante, mas como apontado no texto, ainda não está cumprindo seu papel de forma plena.
Além disso, é fundamental investir em programas de ação afirmativa que vão além das cotas, proporcionando condições igualitárias de concorrência e acesso à educação e formação para candidatos negros. Isso implica em um esforço conjunto da sociedade, das instituições de ensino e do próprio sistema judiciário.
A falta de diversidade no judiciário não é apenas uma questão estatística, mas tem impactos profundos na forma como a justiça é administrada e percebida pela população. A representatividade é um componente essencial para a construção de uma instituição mais acessível, confiável e legitimada.
Portanto, ao refletirmos sobre esse diagnóstico, somos desafiados a repensar e reforçar nossos compromissos com a promoção da diversidade e inclusão no campo da justiça. Somente por meio de ações concretas e comprometidas poderemos transformar essa realidade e garantir que a justiça seja, de fato, para todos.
Uma pontuação:
Sim, podemos afirmar que esse personagem protagonizou um verdadeiro êxodo rural em sua trajetória. Originário da cidade do Conde, uma cidade de perfil majoritariamente rural, ele almejava algo mais. Seu desejo de ascender na vida por meio do estudo e da educação o levou a dar o passo crucial de deixar o ambiente rural para buscar oportunidades nas áreas urbanas.
Essa mudança não foi apenas geográfica, mas simbólica. Ao abandonar o campo, ele abandonava também as limitações impostas pelo ambiente rural, abrindo-se para um mundo de possibilidades e crescimento pessoal. Essa transição simboliza não apenas uma mudança de localização, mas uma mudança de perspectiva e mentalidade.
Ao perseguir seus sonhos na cidade, ele demonstrou que o êxodo rural pode ser o ponto de partida para uma jornada de realização pessoal e profissional. Sua história serve como um poderoso exemplo de como a determinação e o acesso à educação podem transformar vidas e abrir portas para um futuro mais promissor.
Um dado importante:
Em matéria publicada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em setembro deste ano de 2023, o Brasil destaca a preocupante falta de equidade racial no sistema judiciário brasileiro, com apenas 1,7% dos juízes e juízas sendo pretos. Isso contrasta significativamente com a maioria branca, que representa 83,8% dos magistrados. Além disso, 12,8% dos juízes se identificam como pardos.
A análise também revela que a política de cotas, que inicialmente previa 20% de magistrados negros ingressando na magistratura brasileira, não está sendo cumprida efetivamente, com apenas 3,5% dos ingressantes beneficiando-se desse sistema. A representatividade é um pouco maior entre os magistrados que se autodeclaram pretos, com 12,4% de aprovação pelo regime afirmativo.
O texto destaca a lentidão no progresso em direção à equidade racial e aponta para a necessidade de um acompanhamento contínuo das questões étnico-raciais no Poder Judiciário para obter análises mais precisas sobre o avanço nessa área. No que diz respeito aos cargos de chefia, as servidoras brancas têm uma representação mais significativa (74,5%) em comparação com as mulheres negras (21,9%), indicando uma disparidade na oportunidade de alcançar cargos de liderança.
A pesquisa também aponta que uma parcela muito pequena dos magistrados ativos foi aprovada por meio das cotas étnicas-raciais, o que indica uma sub-representação das populações negras e pardas no sistema judicial. A juíza Karen Luise de Souza destaca a necessidade de medidas mais abrangentes do que simplesmente cotas para promover a diversidade na magistratura, enfatizando a importância de oferecer condições de concorrência e de estudo para candidatos negros.
A matéria conclui destacando que é crucial considerar também o contexto racial dos estados para uma análise comparativa mais precisa sobre o nível de inclusão alcançado em cada corte.
O Conselho Nacional de Justiça ressalta a falta de diversidade racial no sistema judiciário brasileiro e a necessidade urgente de medidas mais eficazes para promover a equidade e representatividade racial no campo da justiça.
Para refletir sobre o por que
A reflexão sobre a falta de diversidade racial no sistema judiciário brasileiro é essencial para compreendermos as complexidades e desafios que permeiam nossa sociedade. O diagnóstico apresentado pelo Conselho Nacional de Justiça evidencia uma realidade alarmante: apenas 1,7% dos juízes e juízas se identificam como pretos, enquanto a grande maioria, 83,8%, é branca.
Essa disparidade reflete não apenas uma questão de representatividade, mas também de acesso igualitário às oportunidades no campo da justiça. É crucial questionarmos por que a diversidade racial ainda é tão sub-representada em um setor tão fundamental para a garantia dos direitos e a promoção da justiça social.
A ausência de equidade racial no judiciário brasileiro representa uma lacuna na efetivação dos princípios democráticos e na construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. A diversidade de perspectivas, experiências e vivências é fundamental para uma atuação judiciária mais sensível às diferentes realidades e para a construção de decisões mais equitativas.
Diante desse quadro, torna-se evidente a urgência de implementar medidas mais eficazes para promover a equidade e a representatividade racial no sistema judiciário. A política de cotas, por exemplo, é um passo importante, mas como apontado no texto, ainda não está cumprindo seu papel de forma plena.
Além disso, é fundamental investir em programas de ação afirmativa que vão além das cotas, proporcionando condições igualitárias de concorrência e acesso à educação e formação para candidatos negros. Isso implica em um esforço conjunto da sociedade, das instituições de ensino e do próprio sistema judiciário.
A falta de diversidade no judiciário não é apenas uma questão estatística, mas tem impactos profundos na forma como a justiça é administrada e percebida pela população. A representatividade é um componente essencial para a construção de uma instituição mais acessível, confiável e legitimada. Portanto, ao refletirmos sobre esse diagnóstico, somos desafiados a repensar e reforçar nossos compromissos com a promoção da diversidade e inclusão no campo da justiça. Somente por meio de ações concretas e comprometidas poderemos transformar essa realidade e garantir que a justiça seja, de fato, para todos.
Autores:
Guilherme Carvalho, Ouvidor Adjunto do TJBA
Alan Barbosa, Servidor da Ouvidoria