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Impunidade. O câncer social
8 de julho de 2022 às 15:34
Impunidade. O câncer social

Como é de sabença geral, o câncer, em seus vários tipos, é uma patologia grave, que, de acordo com as estatísticas, é de maior letalidade no mundo e, na maioria dos casos, o tratamento exige a remoção da parte afetada a fim de salvar o restante do corpo. Por isso, a ciência médica recomenda que a doença seja combatida com antecedência, aumentando as chances de cura. Em suma, sem combate, o mal se alastra em metástase pelo resto do corpo até levar a óbito o doente.

Tomando como parâmetro os efeitos e consequências incidentes sobre a citada moléstia, no ambiente social ocorre algo semelhante quando o assunto é a impunidade sob o olhar complacente do poder público, de modo que, uma conduta aparentemente simples ou de pouca ofensividade, como o descarte de uma latinha pela janela do automóvel na via pública, vai se tornando corriqueira, “normal”, alastrando-se no trânsito da cidade, até causar um acidente no veículo que trafega atrás daquele, quando nada mais se pode fazer a não ser acrescentar mais um processo no acervo monstruoso do judiciário, visando a reparação do dano causado. A ausência de repressão e de fiscalização a condutas deste jaez, tal como uma metástase cancerígena, faz com que se alastrem no meio social a ponto de se tornarem banais e “aceitáveis”, levando a “óbito” a civilidade almejada por todos os demais integrantes daquela comunidade. Em muitos casos, há leis específicas proibitivas destas condutas mas, se não são aplicadas pelos órgãos competentes, de nada servem.

A situação narrada não é fenômeno dos tempos hodiernos, mas remonta à origem da humanidade quando, por exemplo, o mais forte impunha a sua vontade contra os mais fracos, a injustiça se alastrava até causar uma revolta, com várias mortes e outros males, isso porque é inerente à natureza humana o impulso egoístico de obter proveito, ainda que olvidando as normas de boa conduta social e o ordenamento jurídico. Urge, portanto, o combate eficaz e punitivo para o restabelecimento da ordem pública e social, sob pena de ocorrer situação descrita no poema “No Caminho, Com Maiakovski”, muitas vezes atribuído ao poeta russo Vladimir Maiakóvski, mas, segundo publicado na Folha de São Paulo, edição de 20.09.2003, a autoria é do também poeta Eduardo Alves da Costa: “Na primeira noite eles se aproximam e roubam uma flor do nosso jardim. E não dizemos nada. Na segunda noite, já não se escondem: pisam as flores, matam nosso cão, e não dizemos nada. Até que um dia, o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a luz e, conhecendo nosso medo, arrancam-nos a voz da garganta, e já não podemos dizer nada”.

Diz o brocardo latino impunitas peccandi illecebra, ou seja, a impunidade gera delinquência. Quando, verbi gratia, o indivíduo avança o sinal vermelho ou furta um objeto de pequeno valor, sem qualquer consequência punitiva, a reiteração de tal conduta vai se banalizando, servindo de incentivo para que outras pessoas assim procedam, na certeza de que nada vai lhes acontecer. Todavia, se a conduta infracional é combatida e punida, o efeito é inverso, reduzindo os conflitos sociais e conduzindo para uma convivência pacífica. O fato é que a conduta ilícita, criminosa ou não, precisa ser combatida eficazmente, com punição ao infrator, para que não seja banalizada e sirva de incentivo para que seja seguida pelos demais, expandindo-se rapidamente.

A experiência do dia a dia vem demonstrando a eficácia das penas pecuniárias, citando como exemplo mais veemente e atual a presença de radares fotográficos nas rodovias e vias urbanas para o controle da velocidade dos veículos e à obediência ao semáforo, dando azo à imposição de multa pecuniária ao infrator. O que se nota é que, quando não há o equipamento de controle, os veículos simplesmente ignoram o limite de velocidade e, muitas vezes, o sinal vermelho. Afinal, como diz o dito popular, a parte mais fraca do corpo é o bolso.

Para quem vivenciou a chamada ditadura militar brasileira, nos idos de 1964, presenciou a obediência ao decreto de “toque de recolher”, com ruas totalmente desertas a partir do horário estabelecido pelos militares, uma vez que o desatendimento era punido com prisão, torturas e outras formas de violência, sem que o infrator pudesse obter amparo legal para a sua liberdade e integridade física. Superado esse período triste da história brasileira, foi restaurada a democracia com a Constituição Federal em 1988, também chamada de Constituição Cidadã, consagrando importantes direitos, destacando-se, para ilustrar esta matéria, o direito de liberdade de expressão, previsto no inciso IV do art.5º daquele diploma.

Vale lembrar que, anos antes da promulgação da citada Carta Magna, o último presidente do regime militar, o General João Batista Figueiredo, responsável pela transição ao regime democrático, já anunciava que o povo brasileiro ainda não estava preparado para conviver numa democracia plena. Lamentavelmente, S.Exa. estava certo no que disse, e o que se constatou é que muitos, ainda hoje, confundem liberdade de expressão com liberdade para ofender, atacar instituições sem qualquer limite, tanto quanto, prerrogativas parlamentares com arbitrariedade, direito de reunião e protesto com manifestações agressivas de populares, com barricadas e fechamento de vias públicas, impeditivas do direito de ir e vir dos demais, restando evidente às escâncaras que se não houver repressão imediata e eficiente à esses abusos de direito o caos social será inevitável. A propósito, em boa hora o Supremo Tribunal Federal recentemente julgou e condenou um deputado federal por afronta à Constituição Federal e também àquela Corte Suprema a título de suposto exercício do direito de expressão e das prerrogativas parlamentares, tornando-se caso emblemático e exemplar no Poder Judiciário brasileiro.

Citem-se, ainda, como exemplo os institutos da graça, do indulto e da anistia, previstos na supra mencionada Carta, cuja finalidade de sua aplicação vem sendo constantemente desvirtuada pelos beneficiários e aplicadores, as vezes beneficiando a quem não merece ou por simples interesse político e pessoal, permitindo que condenados se aproveitem do benefício para se eximirem do cumprimento integral da pena, situações estas que desaguam na impunidade, com inevitável desgaste da imagem do judiciário perante o público em geral, até porque a imprensa apenas noticia a concessão do benefício, sem informar as causas que levaram ao deferimento.

Nos tempos atuais, na capital deste Estado, vem ocorrendo com frequência nunca vista antes, a expansão de assaltos a ônibus, a lojas e restaurantes e, até mesmo, a transeuntes por motoqueiros travestidos de entregadores de pizzas, levando à impressão de ausência ou omissão das forças policiais na repressão destes crimes e, o que é lamentável, na soltura dos infratores, por ocasião da audiência de custódia presidida pelo Juiz das Garantias, prevista na Lei nº13.964, de 24 de dezembro de 2019, nos parágrafos 1º e 2º do art. 3º B e em Tratados Internacionais. Sem dúvidas que tal situação leva à sensação de impunidade, a incentivar outros meliantes à reiteração da prática delituosa, com a certeza de que nada vai lhes acontecer, e se forem presos logo serão soltos. O fato é que ninguém hoje se sente seguro ao sair com a família para jantar em um restaurante, ir a uma loja ou usar o transporte coletivo. Urge, assim, sejam adotados critérios mais rígidos e factíveis quando da realização da audiência de custódia e da soltura do custodiado, para que a evasão deste não se torne rotina, a exemplo do que ocorreu com o presidiário narcotraficante André Oliveira Macedo, procurado pelas polícias nacionais e internacionais durante longos anos, finalmente preso, mas, segundo noticiou a imprensa, diante da ausência da citada audiência, foi solto para responder em liberdade ao processo pelo Ministro Marco Aurélio, do STF, e nunca mais retornou, restando inúteis os elevados recursos públicos dispendidos para a sua captura ao presídio para o total cumprimento da pena, resultando em impunidade incentivadora a tantos outros em situação idêntica.

Diante de um cenário deste, um outro efeito colateral vem ocorrendo com a atividade policial que, inobstante seja responsável pela manutenção da ordem pública, combatendo a criminalidade, sente-se desmotivada, na medida em que enfrenta alto risco de morte de seus agentes na captura de marginais, para vê-los dias depois soltos e praticando novos delitos, a ponto de merecer o jargão popular de que “a polícia prende e a justiça solta”.

No tocante ao enfrentamento ao narcotráfico, a situação é grave. O desaparelhamento da polícia militar, em comparação ao arsenal dos traficantes, abastecidos com armas potentes, de grosso calibre e alta tecnologia, com domínio total dos esconderijos e rotas de fugas, sendo os policiais e seus equipamentos alvos fáceis, resultando em uma batalha desigual, onde pessoas de bem se tornam vítimas do fogo cruzado.

Contudo, não é só a falta ou deficiência no combate às condutas infracionais que conduz à impunidade. Vários outros fatores contribuem para tanto, merecendo destaque neste breve comentário a prescrição da pretensão punitiva do Estado, decorrente, às vezes, da inadequação da legislação processual penal ou da morosidade da justiça. Quanto à primeira, observa-se que a fluência do prazo prescricional, em determinadas situações, deveria ser interrompido ou suspenso, tornando inócuos alguns expedientes adotados para prolongar a tramitação processual ao máximo, visando a prescrição e, consequentemente, a não punição do infrator, a exemplo dos rotineiros pedidos de vista dos autos, extravio de processos e interposição de incidentes processuais de caráter meramente protelatório. A propósito, nota-se que tais expedientes geram também discriminação social e descrédito na justiça, na medida em que muitos infratores ficam encarcerados além do tempo equivalente ao que seria de sua pena, se condenados fossem, à mingua de recursos financeiros para a contratação de bons advogados, enquanto outros, detentores deste privilégio, pagam fiança, respondem ao processo em liberdade, ou sequer são processados, ou até mesmo, na pior das hipóteses, subornam aqueles que deveriam cumprir a lei com imparcialidade.

Ainda no tocante à inadequação da legislação vigente, vale lembrar a questão da imediata execução da pena restritiva de liberdade na condenação em segunda instância, que divide opiniões, resultando na soltura de condenados em razão da ausência do trânsito em julgado da sentença condenatória, por força de dispositivo constitucional que impede a prisão antes deste trâmite processual, privilegiando uma elite detentora de poder econômico ou prestígio político para prolongar ao máximo o andamento do processo, com infindáveis recursos. Diante deste cenário, surgiu a Proposta de Emenda Parlamentar nº 199/2019, que se arrasta há anos no Senado Federal ante ao forte conflito de interesses políticos em jogo, dando azo a merecida censura do ex-juiz Sergio Moro no sentido de que “Não se justifica travar toda a efetividade do sistema, gerando impunidade – e normalmente é uma impunidade seletiva, nós normalmente estamos falando aqui em impunidade dos poderosos, política e economicamente – em detrimento dos direitos da vítima e da sociedade. Isso vale para todos os crimes: crimes de sangue, crimes de colarinho branco, crimes patrimoniais, enfim, todo o espectro aí da criminalidade.” (Fonte: Agência Câmara de Notícias).

Como é do conhecimento público, o Sérgio Moro, então Juiz de Direito julgador dos processos oriundo da chamada Operação Lava a Jato da Polícia Federal, destacou-se pelo combate ferrenho e intransigente à corrupção praticada por agentes públicos e empresas, envolvendo o desvio de muitos milhões de reais do erário público, ensejando a recuperação de boa parte destes recursos públicos e a prisão dos infratores, ministros, dirigentes de empresas e até mesmo do ex-presidente da república Luis Inácio Lula da Silva, todos posteriormente soltos pela Cortes Superiores em razão de nulidades processuais, chancelando lamentável impunidade e valioso enriquecimento ilícito dos infratores, por certo, beneficiários do transcurso do prazo prescricional da pretensão punitiva do Estado.

Quanto ao segundo item acima citado como importante causa de impunidade – a morosidade da justiça – trata-se de questão complexa, que envolve inúmeros fatores cuja abordagem aqui torna-se inviável diante da extensão de suas causas. Todavia, focando apenas nos efeitos resultantes da demora na tramitação dos processos judiciais e administrativos, impõe-se reconhecer que um deles é a impunidade. Antes porém, vale reconhecer que muito se fez nos últimos anos para reduzir o tempo de duração dos processos, destacando-se como o mais importante a virtualização através dos sistemas informatizados, PJe, eSAJ e outros, suprimindo totalmente a utilização de documentos e peças processuais em papel, cuja manipulação cartorária para juntada aos autos, numeração das folhas, carimbos e movimentação física dos processos demandavam longo tempo de serviço, adotando-se a digitalização de todas as peças. Contudo, nada disso substitui o trabalho intelectual de todos os operadores responsáveis pela celeridade processual, de sorte que a demanda reprimida e crescente à via judicial para a solução dos conflitos, resultante, inclusive, do próprio avanço tecnológico, ainda torna morosa a tramitação dos processos, favorecendo, muitas vezes, o infrator processado que, sabendo da notória demora no julgamento do processo em afronta ao decurso inexorável do prazo prescricional da pena, sente-se motivado a persistir e reiterar a conduta infracional na certeza de que nada vai lhe atingir, servindo de mal exemplo para tantos outros em situação idêntica e – como uma metástase cancerígena – expandindo-se a impunidade.

De tudo o quanto foi dito, forçoso é concluir que, a despeito das muitas providências saneadoras da impunidade a serem adotadas, é impossível extingui-la, e isso se torna mais evidente em países de regimes penais mais severos, inclusive naqueles em que vigora a pena de morte, a exemplo dos Estados Unidos da América (alguns estados), Indonésia, China, Malásia e muitos outros, nos quais a criminalidade foi apenas reduzida. No primeiro país citado, ao adotar o regime de “tolerância zero”, obteve-se uma redução significativa da impunidade, mas, em contrapartida, a população carcerária tornou-se uma das maiores do planeta. E neste ponto, no Brasil, estamos diante de um problema de difícil ou, quiçá, impossível solução, uma vez que a superlotação das cadeias é generalizada, transformadas em depósitos de presos, verdadeiras fábricas de delinquentes, ao invés de ressocializá-los, sendo este um dos motivos para aplicação de penas alternativas ou relaxamento da prisão em flagrante por parte dos julgadores, ainda que isso não implique em ausência de julgamento do respectivo processo penal.

Em quase quatro décadas de vigência, a Lei de Execução Penal contempla um sistema prisional totalmente divorciado da realidade brasileira, com muitos dispositivos que são letras mortas, a exemplo do que ocorre com a própria Constituição Federal, e nada tem sido feito para a implementação das determinações previstas naquele diploma legal que, no seu introito, já prevê que “a execução penal tem por objetivo efetivar as disposições da sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado” (grifei).Vale citar também a exigência de que cada penitenciária disponha de uma Comissão Técnica de Classificação, responsável pela fixação das condições individualizadas para cada condenado visado o cumprimento da pena, composta por psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais, dispondo, ainda, que toda a unidade prisional deve manter um banco de dados com perfil genético de cada preso, o qual, após cumprir a pena, terá direito a apoio do estado para sua colocação no mercado de trabalho, além de tantas outras providências visando o mínimo de dignidade ao condenado e a ressocialização do egresso (art.7º e segs.). Coisas de primeiro mundo. Na verdade, à mingua de investimento público no setor, o atual sistema carcerário brasileiro é caótico e dispendioso, além de fomentar a delinquência, na medida em que o egresso é estigmatizado após o cumprimento da pena: sem recursos financeiros e sem qualquer condição de conseguir uma atividade remunerada lícita, só lhe resta a criminalidade como profissão, uma vez que muito dificilmente alguém ou alguma empresa contrataria um ex-presidiário.

A realidade brasileira que vem se verificando com o passar dos anos é que o investimento financeiro federal em educação é insuficiente, sofrendo cortes de verbas, gerando estagnação na qualidade do ensino e perda de bons profissionais para o setor privado. A propósito, tramitam no Congresso Nacional dois projetos de leis, Lei Aldir Blanc 2 (PL 1.518/2021) e Lei Paulo Gustavo (PL 73/2021) que, além de outras providências, destinam recursos financeiros para a educação e para a cultura, mas sofreram vetos do Presidente da República na parte referente ao repasse de verbas, derrubados a seguir pelo Poder Legislativo. Aliás, o corte de verbas públicas vem ocorrendo também em outros setores como o da ciência e tecnologia, inviabilizando o avanço científico. O censo demográfico, de igual modo, deixou de ser efetivado pelo IBGE na época prevista por falta de recursos financeiros. Em contrapartida, as verbas para representação e emendas parlamentares alcançam cifras de bilhões de reais, servindo de moeda de troca para aprovação de matérias de interesse do governo federal. Todavia, como é cediço, a solução de longo prazo para a crise social e, em última ratio, para a redução drástica da criminalidade, depende de investimento maciço e sistemático em educação e cultura, sem o que sempre estaremos apagando incêndio sem atacar suas causas, diretas e indiretas, a anunciar um futuro nebuloso.

Por outra vertente, o fato que desponta e inflama a sociedade de uma maneira geral é o cometimento de delitos de todo o gênero sem que haja a imediata prisão do delinquente, gerando a sensação de impunidade. Assim, como solução de curto prazo, dentre outras, urge sejam adotadas políticas públicas voltadas para a construção de mais presídios, dotando todos eles com recursos humanos e técnicos para que, de fato, possam cumprir o previsto na citada lei, sob pena de ausência gradativa do estado, abrindo espaço para o império da força, da violência, da justiça pelas próprias mãos a desaguar em comoção social. É o que modestamente penso.

Moacyr Montenegro Souto. Desembargador aposentado. TJBA.

Texto publicado: Desembargador Moacyr Montenegro Souto