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O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DA BAHIA E A REVOLTA DOS MALÊS
22 de maio de 2023 às 14:48
O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DA BAHIA E A REVOLTA DOS MALÊS

No início de 1835, quando da abertura do ano legislativo da Assembleia Provincial, o cidadão Luiz da França de Athaíde Moscozo imputou “crime de responsabilidade” aos DESEMBARGADORES HONORATO JOSÉ DE BARROS PAIM e JOÃO JOSÉ DE OLIVEIRA, do Tribunal da Relação da Bahia, que também eram Deputados, bem como aos suplentes. Uma das atribuições da Casa Legislativa consistia na suspensão e na demissão de Magistrados pela prática daquela infração, com base no art. 11, § 7º, da Lei nº 16, de 12 de agosto de 1834. Instalou-se uma Comissão, questionada ao longo de dez sessões, diante da inconsistência da acusação (cumulação de cargos – permitida à época), o que resultou no arquivamento da denúncia.

Em meio ao processamento da representação, que atraiu a curiosidade, a população veria irromper um levante escravo, sem precedentes.

De 1807 a 1835, dezenas de insurreições de escravizados ocorreram em Salvador e no Recôncavo. Após as Revoltas dos Haussás, o sistema escravagista optou pela compra de iorubanos/nagôs, da atual Nigéria, que começaram a desembarcar na capital baiana a partir de 1815, trazendo o culto dos Orixás e a fé islâmica, pois muitos deles eram muçulmanos. Embora a origem do termo malê gere muitas controvérsias, no idioma iorubá, “imalê” significa seguidor do Islã.

Como os outros cativos, os malês nunca se adequaram ao jugo da escravidão, protagonizando fugas e rebeliões, mas a de 1835 seria considerada a maior revolta escrava urbana do continente americano.

Os muçulmanos mantinham suas tradições religiosas, adaptando-se aos costumes locais. Encontravam-se no domingo, dia santo católico, malgrado considerassem a sexta-feira sagrada. A alimentação reproduzia a culinária africana islâmica, com o sacrifício de carneiros nas datas especiais, observando-se o mês de jejum do Ramadã, e era preparada por Emereciana, Edum, Maria das Chagas e Maria da Conceição. Eles não viam, com bons olhos, os negros que cultuavam os Orixás.

A Barra e o Corredor da Vitória (este concentrava as mansões dos ingleses) abrigavam escravos islamizados, que se reuniam nas respectivas áreas. No quintal da casa de Abraham Crabtree, seus servos James e Diogo haviam erigido uma Mesquita de palhoça, onde recebiam irmãos de fé das cercanias, quando oravam e discutiam questões atinentes à escravidão. O Inspetor do 5º Quarteirão da Vitória, André Marques, percebeu o perigo e falou com o Juiz de Paz da Freguesia, Francisco José da Silva Machado, que comunicou ao proprietário do imóvel, tendo o pequeno templo sido destruído.

Reuniões também eram realizadas no quarto alugado por Pacífico Licutan (alufá e líder muçulmano), na rua das Laranjeiras; no porão, na Ladeira da Praça, que servia de moradia a Manuel Calafate (atuava nos reparos de embarcações) e Aprígio (vendedor de pão e carregador de cadeira de arruar); assim como na loja de Elesbão Dandará, chefe religioso. Uma insurreição estava sendo tramada.

O plano, transmitido oralmente, previa uma marcha até o Cabrito e ali os revoltosos se uniriam a grupos da Mata Escura e do Cabula. Segundo um depoente, visavam à derrubada do governo e à morte de “todos os brancos, cabras e crioulos”, com a escravização dos “mulatos”. Na Ilha de Itaparica e no Recôncavo, existiam discípulos do movimento.

Entretanto, no dia 24 de janeiro de 1835 (sábado), à tarde, o liberto Domingos Fortunato, na atracação de saveiros, no bairro do Comércio, viu o desembarque de negros vindos do Recôncavo e ouviu comentários sobre uma insurreição escrava. A companheira de Domingos, Guilhermina Rosa de Souza, naquela noite, por volta das 21h, dividiu o boato com a comadre Sabina da Cruz, esta já desconfiada da atitude do companheiro Victório Sule, que havia saído de casa. Guilhermina, então, comentou o fato com seu vizinho branco, André Pinto da Siveira, que estava recebendo as visitas de Antônio de Souza Guimarães e Francisco Antônio Malheiros. Os três transmitiram a novidade ao Juiz de Paz do 1º Distrito da Freguesia da Sé, José Mendes da Costa Coelho, que ouviu a delatora e comunicou ao Presidente da Província Francisco de Souza Martins. Este alertou as autoridades, inclusive o Chefe de Polícia e Juiz Municipal Francisco Gonçalves Martins.

Os malês escolheram o dia da Festa Lailat Al-Quadr (conhecida como Noite da Glória ou Dia da Revelação do Corão a Maomé), na qual se celebra o fim do Ramadã, mês religioso do Islã. Os rebeldes estavam vestidos de branco e portavam amuletos com frases corânicas em árabe. Coincidentemente, na Península de Itapagipe, milhares de soteropolitanos reverenciavam N. Sra. da Guia, na Igreja do Bonfim. As celebrações católicas se estenderiam até o domingo.

Por volta das 23h, em um sobrado fincado ao pé da Ladeira da Praça, nas proximidades da Igreja de N. Sra. de Guadalupe, não mais existente, os dois Juízes de Paz da Freguesia da Sé, José Mendes da Costa Coelho e Caetano Vicente de Almeida Galião, com as respectivas equipes, notaram a presença de negros e passaram a indagar dos vizinhos o que se passava. Quando arrombaram a porta do subsolo, locado por Manoel Calafate e Aprígio, surpreenderam-se com a fuga de dezenas de homens armados, gritando “mata soldado” e palavras de ordem em seu dialeto. Nos confrontos, já houve mortos, inclusive Vitório Sule, e feridos de ambos os lados. Segundo testemunhos, Manoel Calafate foi uma das primeiras vítimas do levante, nas imediações de sua moradia, apesar de não ter constado da relação dos falecidos.

Um grupo de insurretos subiu em direção à Praça do Palácio e tentou invadir a Cadeia do Tribunal da Relação, situada no subsolo da Câmara de Vereadores, onde se achava preso o idoso Pacífico Licutan, desde novembro de 1834, como objeto de penhor executado pelos frades carmelitas contra seu proprietário, o Médico Antônio Pinto de Mesquita Varella. O carcereiro Antônio Pereira de Almeida, que residia ali com a família, liderou a reação. Os insurgentes ficaram entre o fogo cruzado dos militares da Câmara de Vereadores e do Palácio.

Durante a madrugada do dia 25 de janeiro, conflitos sucederam no Largo do Teatro (atual Praça Castro Alves), no Quartel dos Guardas Permanentes, instalado no Mosteiro de São Bento, e nas imediações do Convento das Mercês. Do Corredor da Vitória, vieram cerca de oitenta escravizados. Soldados do Forte de São Pedro reagiram com disparos de armas de fogo, tendo morrido o Sargento Tito. Os revoltosos não se intimidaram e rumaram para o Quartel da Polícia, na Lapa, onde está, atualmente, o Colégio Central. De lá partiram para as seguintes localidades: Barroquinha, Terreiro de Jesus, Pelourinho, Baixa dos Sapateiros, Ladeira do Taboão, Comércio e Rua do Noviciado, hoje Av. Jequitaia, em frente ao Quartel da Cavalaria de Água de Meninos (nas proximidades da Igreja da Santíssima Trindade), local do maior embate, porquanto desejavam seguir em direção a Cabrito. Contudo, depararam-se com o efetivo do Chefe da Polícia, que, estando no Bonfim e avisado dos distúrbios, deslocou-se para aquela unidade militar, havendo, antes, orientado os subordinados a abrigarem as famílias no interior da Igreja, em caso de perigo. Os negros carregavam um tambor, armas brancas, pedaços de madeira e não investiram contra o quartel, pois queriam passar. Todavia, viram-se emboscados e reagiram, ferindo o Capitão Francisco Teles Carvalhal, Comandante da Cavalaria. Outros insurretos se uniram aos que ali estavam, travando intensa batalha. O Major José da Rocha Galvão assumiu o comando. Computaram-se perdas significativas no lado rebelde, cerca de 60 (sessenta), e alguns se atiraram ao mar, morrendo afogados ou atingidos por tiros disparados pela fragata Baiana, a serviço do Governo. Com o sol raiando, pequenos grupos saíram pela Cidade, e seus integrantes foram presos ou mortos.

A rebelião durou cerca de quatro horas. No meio da manhã, as ruas da Capital estavam desertas. Participaram, aproximadamente, 1.500 insurgentes, a maioria de escravizados urbanos, além de libertos, adeptos de outras religiões de matriz africana e membros de irmandades negras católicas, como a sediada na Igreja dos Quinze Mistérios, nas cercanias do Boqueirão, cabendo a liderança aos malês. Os feridos foram levados para os Hospitais da Marinha e da Santa Casa de Misericórdia.

Ao final, setenta e nove pessoas morreram, sendo setenta rebeldes. Os integrantes da revolta foram sepultados no cemitério localizado nas proximidades do Campo da Pólvora, destinado a escravos, pobres e indigentes, administrado pela Santa Casa de Misericórdia (provavelmente nos arredores da atual Pupileira).

O Presidente da Província da Bahia, no dia 26 de janeiro, determinou que os Juízes de Paz providenciassem rigorosa e célere apuração, com busca e apreensão em imóveis, através dos Inspetores de Quarteirão, que tiveram a ajuda dos vizinhos, objetivando a identificação dos “cabeças”, a fim de que fossem submetidos a julgamento na primeira sessão do júri seguinte. Curiosamente, arrecadaram objetos do Islamismo e do Candomblé. A inspeção recaiu até sobre templos católicos, em razão das irmandades.

Vários locais serviam de centros islâmicos e escolas do Corão, onde se ensinavam o árabe e os princípios do Islã (Luis Sanin era o principal mestre), tendo sido revistados muitos imóveis, incluindo os que eram ocupados por Manuel Calafate e Aprígio, Conrado, Belchior e Gaspar da Silva Cunha (não eram irmãos), Elesbão – Dandará, Lúcio, e na casa do proprietário de Pacífico Licutan, no Cruzeiro de São Francisco. Nas operações, a Polícia encontrou livros pequenos, papéis em árabe, tábuas de escrever, saquinhos de couro (amuletos, chamados de “mandingas”), rosários sem cruz (“masbahas”), vara com lenço branco e roxo (utilizada em um ritual de adesão aos propósitos de luta) e armas brancas.

Além dos objetos apreendidos mencionados, os Policiais arrecadaram “abadás” (roupas), turbantes ou barretes, na cor branca, e anéis de prata usados pelos muçulmanos. Nos dias que se seguiram, temendo represálias, sobreviventes se desfizeram dos adornos.

No Ofício de 29 de janeiro, dirigido ao Presidente da Província, o Chefe de Polícia relatou, detalhadamente, os fatos, referindo-se aos documentos escritos em “caracteres desconhecidos, que se assemelham ao árabe”, acreditando que “a insurreição estava tramada de muito tempo”, sugerindo um “prêmio” para as delatoras, e informando que alguns Soldados mataram escravos autorizados a transitar nas ruas, após o movimento.

Talvez, a rebelião tenha começado a ser cogitada na Festa do Lait al-Miraj, no mês de novembro de 1834, que coincidiu com a prisão de Pacífico Licutan. Manoel Calafate e Ahuna (chamado de “maioral”) estavam em Santo Amaro e retornaram para lutar, dias antes do início do levante, o que demonstra a conexão com o Recôncavo.

Como os conflitos se estenderam por várias áreas de Salvador, os episódios foram apurados de acordo com as circunscrições das dez Freguesias, sob a presidência dos Juízes de Paz, que, em suas residências, ouviram os suspeitos. Houve interrogatórios coletivos, tortura, colaboração (delação premiada), ameaças aos delatores, acareações, oitivas de escravos, sem a assistência de Curadores, além de fraude processual (o Juiz de Paz da Freguesia da Conceição da Praia, Inocêncio José Cardoso de Mattos, teria inserido inverdades nos termos).

Coube ao escravo haussá Albino, pertencente ao Advogado Luiz da França de Athayde Moscoso, ouvido no dia 07 de fevereiro, na residência do Juiz de Paz do 1º Distrito da Freguesia da Sé traduzir nove manuscritos.

Os cárceres ficaram lotados. Foram utilizados como unidades prisionais: a Cadeia do Tribunal da Relação, o Aljube; o Quartel da Cavalaria da Polícia de Água de Meninos; o Forte de São Pedro; o navio Presiganga; e a Fortaleza do Mar (Forte de São Marcelo).

A repressão contra os negros em Salvador recrudesceu, levando o Juiz de Paz da Freguesia de São Pedro, Vicente José Teixeira, a protestar contra as abordagens, buscas e prisões arbitrárias.

Os julgamentos não tardaram e ocorreram nos seguintes espaços: Forte do Mar, Convento de Santa Teresa, Igreja dos Jesuítas (atual Catedral), Santa Casa de Misericórdia e Palácio do Governo.

De acordo com o sistema do Código de Processo Criminal de 1832, existiam dois conselhos de jurados: o júri de admissibilidade ou de acusação, constituído por 23 cidadãos eleitores, com a missão de examinar o que havia sido apurado pelos Juízes de Paz, decidindo quem poderia ser responsabilizado, com a inserção do nome no rol dos culpados; e o júri de sentença ou “júri de julgação”, integrado por 12 jurados, presidido por um Juiz de Direito, no qual aconteciam: a leitura dos fólios pelo Escrivão, o interrogatório do réu; a apresentação do libelo crime acusatório pelo Promotor Público; a atuação do Defensor; a revelação do veredito; e a prolação da sentença pelo Magistrado.

Do indiciamento do Juiz de Paz, cabia recurso para o Juiz de Direito; da decisão do Juiz de Direito, encaminhando o caso para o júri de admissibilidade, podia ser interposto Recurso de Revista, no Tribunal da Relação; e do veredito do “júri de julgação”, permitia-se o manejo de apelo, no Tribunal da Relação. Como últimas instâncias, o Supremo Tribunal de Justiça (no Rio de Janeiro) e o perdão imperial.

No entanto, quando o réu era condenado a cinco anos de degredo ou desterro, três de galés (prisão com trabalhos forçados), prisão simples ou pena de morte, podia protestar por um segundo julgamento, que seria realizado em outra comarca mais populosa e contígua. Consequentemente, novos júris sucederam em Santo Amaro e Cachoeira.

A 14 de fevereiro, no 1º Distrito da Freguesia da Sé, realizou-se o “júri de admissibilidade”, onde se reconheceu a materialidade da participação de diversos rebeldes, tendo os jurados decidido encaminhá-los ao “júri de julgação”, presidido por Francisco Gonçalves Martins, no dia 02 de março, no qual o conselho de sentença respondeu aos quesitos e condenou à “morte natural”, por meio da forca, o escravo Luís Sanin, bem como os forros Jorge da Cruz Barbosa – Ajahi (que tinha um ferimento na perna direita, provocado pelos Soldados), Belchior e Gaspar da Silva Cunha. Pacífico Licutan, escapou da pena capital, e, mesmo estando preso durante a insurreição, receberia 1000 açoites. Teresa e Agostinha, companheiras de Belchior e Gaspar da Silva Cunha, respectivamente, permaneceriam presas por 64 meses, com trabalhos forçados. Dois réus foram absolvidos. O Promotor Público João Alexandre de Andrade Silva e Freitas funcionou no julgamento, sustentando detalhado libelo crime acusatório. O pagamento das custas processuais caberia aos proprietários dos cativos.

O Presidente da Província, a 15 de fevereiro, escreveu ao Ministério da Justiça, requerendo a aprovação do plano de expulsão dos libertos, o que caracterizava verdadeira limpeza étnica. Uma normativa do Chefe de Polícia controlava o horário de permanência dos escravizados, depois das 20h, pois teriam de portar passes concedidos pelos donos. Os estrangeiros, mormente os ingleses, eram acusados de tratar os servos com leniência.

Posteriormente, seriam condenados à pena capital, os escravos: Pedro, Gonçalo, Joaquim, Carlos, Tomás, Lino, Cornélio, Ignácio e Germano, como também o liberto Aprígio. Ahuna ou Aluna aparece como revel.

Ao todo, figuraram 289 réus em diversas sessões do Tribunal do Júri.

Os Promotores Públicos Ângelo Muniz da Silva Ferraz e João Alexandre de Andrade Silva e Freitas agiram com rigor, referindo-se aos rebeldes com desdém e preconceito por serem africanos.

O Cônsul da França não compreendeu tamanha burocracia com o julgamento de escravos, alijados de qualquer direito, e o representante da Inglaterra externou o receio da população branca de Salvador.

Os crimes cometidos pelos envolvidos estavam estatuídos nos arts. 113 (insurreição de escravos), 114 e 115 (liderança e apoio de libertos à insurreição) do Código Criminal de 1830, cujas sanções aplicadas abrangiam: prisão simples, prisão com trabalho (galés), açoite (de cinquenta a mil e duzentas chibatadas), deportação para a África e morte. Ainda assim, descumpriu-se a legislação ou puniu-se demasiadamente.

As teses de defesa se diversificaram. Alguns acusados aduziram que eram católicos, obedientes às leis e aos senhores; outros ressaltaram amor pelo Brasil e inimizade étnica em relação aos malês.

A 18 de março, o Ministério da Justiça deferiu o pleito da Presidência da Província e autorizou a execução dos condenados, sem o trânsito em julgado das sentenças.

Ademais, uma petição assinada por 320 pessoas reforçou a expulsão dos negros, inclusive dos forros, tidos como apoiadores de conspirações, sendo o documento aprovado, em 24 de março, pela Assembleia Provincial. Quatro dias depois, o Parlamento baiano suspendeu, por um mês, o art. 179 da Constituição de 1824, que garantia a inviolabilidade dos direitos civis e políticos, facilitando as buscas nos domicílios e a repressão aos insurgentes.

A Lei nº 09, de 13 de maio de 1835, aprovada pela Assembleia Provincial dispôs sobre as providências para a expulsão dos libertos e os que ficassem pagariam imposto, não podendo adquirir “bens de raiz”. O proprietário seria obrigado a batizar o cativo no Catolicismo, com previsão de multa por mantê-lo pagão. Forros, que se tornaram prósperos comerciantes, teriam de deixar a Bahia. Petições foram dirigidas às autoridades, nas quais os autores explicavam que não representavam qualquer perigo. Instituiu-se um tributo por cada servo residente em Salvador e pela venda fora da Província. No final daquele mês, em uma primeira lista, haveria o banimento de 154 negros para a África. O Parlamento da Bahia sugeriu à Assembleia Geral, na Corte, a deportação de todos os africanos livres do Brasil.

O Tribunal da Relação apreciou inúmeros recursos e confirmou a pena capital do liberto Jorge da Cruz BarbosaAjahi (carregador de cal), e dos escravos Pedro (pertencente ao inglês Joseph Mellors Russell), Gonçalo (de propriedade de Lourenço); e Joaquim (cujo senhor era Pedro Luís Mefre). Não integravam a liderança do movimento. A 14 de maio, seguiu o cortejo anunciado pelo Porteiro da Câmara de Vereadores, José Joaquim de Mendonça, lendo a sentença em voz alta, pelas ruas centrais de Salvador, dirigindo-se ao Campo da Pólvora, onde os réus seriam executados, sob a presidência do Juiz Caetano Vicente d´Almeida Júnior, acompanhado por membros da Santa Casa de Misericórdia e de forte aparato policial. Não há referência a religiosos. No local, também presente o Juiz do Crime Antônio Simões da Silva. Porém, não se encontrou algoz que procedesse ao enforcamento, e desde o dia anterior que se havia determinado o fuzilamento dos réus, reservado aos homens livres.

Os corpos foram sepultados naquele cemitério, mantido pela Santa Casa de Misericórdia.

Segundo Nina Rodrigues, o forro José Francisco Gonçalves também teria sido executado. Contudo, de acordo com o Prof. Dr. João José Reis, maior especialista sobre o tema, consta anotação de sua absolvição, em 04 de junho de 1835, ou seja, após os fuzilamentos.

Depois dos novos júris, realizados no Recôncavo, comutaram-se as penas de morte dos seguintes acusados: Aprígio (Santo Amaro – galés perpétuas); Tomás (Cachoeira – 800 açoites); Carlos (Cachoeira – 800 açoites); Belchior e Gaspar da Silva Cunha (Cachoeira – 600 açoites); Cornélio (Cachoeira – 800 açoites); Lino (Cachoeira – 800 açoites); e Pedro (comarca não identificada – galés perpétuas). O cumprimento se deu na Capital.

A maioria dos inconformismos teve o provimento negado pelo Tribunal da Relação, ainda que arguida a prática de tortura.

Em outras súplicas, o Ministério da Justiça comutou sanções de réus idosos, sem poupá-los da expulsão compulsória.

Luís Sanin, idoso, já havia participado de revoltas anteriores. Levava comida para Licutan, na prisão, pois trabalhavam juntos, enrolando fumo no Cais Dourado. Politizado, organizou um fundo com várias finalidades (aquisição de panos, auxílio financeiro a cativos e pagamento de alforrias). Seu proprietário, Pedro Ricardo da Silva, reconheceu-lhe o direito de professar a religião islâmica, e contratou o Advogado Felipe Carlos Bahiense. Após novo júri em Cachoeira, teve a sentença de morte referendada pelo Tribunal da Relação, mas, mediante recurso perante o Supremo Tribunal de Justiça, a punição foi transformada em 600 chibatadas, além do uso de ferro no pescoço por dois anos.

A 10 de março, o júri condenou à morte Ajadi Luís Daupele (forro), que se encontrava encarcerado com a mulher grávida, Felicidade, e seus três filhos pequenos (o quarto nasceu na Cadeia), impondo à esposa cinco anos de prisão. No novo julgamento, em Cachoeira, a 28 de julho, transformou-se a pena capital em oito anos de cárcere. Após o pedido de partida para a África, a Regência autorizou, no ano de 1837, a viagem da família, a qual arcou com o pagamento das despesas.

Dignos de nota os processos abrangendo o liberto Gaspar da Silva Cunha e seu escravo José. Nos novos júris, em Santo Amaro, no mês de agosto de 1835, comutaram-se as sanções para galés perpétuas e 200 chicotadas, respectivamente. Os apenados manejaram apelos, no Tribunal da Relação, porém o cativo já havia sido vendido ao Promotor de Justiça João Alexandre de Andrade Silva e Freitas, em uma transação espúria, desde maio, tendo este desistido do recurso. Todavia, o Chanceler da Relação, em acórdão emblemático, realçou que o servo possuía o direito de revisão da sentença, ao final, mantida. Gaspar ficou preso no Forte de São Marcelo e José recebeu as 200 chibatadas. Por outro lado, Belchior da Silva Cunha, foi açoitado, pena proibida para o forro.

Pedro, escravo de Robert Dundas, por uma falha processual atribuída ao Juiz Antônio Simões da Silva, que o enquadrou em lei editada após a revolta, escapou da morte, graças ao Juiz de Execução Caetano Vicente d´Almeida Júnior, que informou sobre o erro ao Presidente da Província. Este, por sua vez, quis ouvir o Chanceler do Tribunal da Relação, DESEMBARGADOR THOMÁS XAVIER GARCIA DE ALMEIDA, que respaldou o entendimento do Magistrado. No entanto, na Cadeia, com a perna amputada, por haver sido atingido na revolta, teve, posteriormente, negado o pedido de perdão, na gestão de Eusébio de Queiroz como Ministro da Justiça, sob a justificativa de que estaria isento, somente, de executar os serviços forçados.

A africana liberta Francisca da Silva, originária de Ketu, em 13 de março de 1835, requereu à Assembleia Provincial autorização para deixar o Brasil, acompanhada de seu esposo José Pedro Autran, de seus filhos Thomé José e Domingos (forros condenados a oito anos de prisão, que aguardavam novos júris), além de agregados. Diante da denegação do pedido, a genitora encaminhou o pleito de perdão imperial, quando foi atendida. Francisca é apontada como uma das fundadoras do centenário Terreiro de Candomblé Iya Omi Axé Airá Intilê, atual Casa Branca (em atividade desde 1788, originariamente na Barroquinha e hoje na Av. Vasco da Gama), figurando como sua Ialorixá, com o título de Iya Nassô. Provavelmente, os rapazes, delatados por vizinhos da Rua do Passo, participavam de uma cerimônia de Candomblé e viram-se confundidos com os revoltosos de 1835, pois vestiam roupas brancas com detalhes em vermelho, as cores do Orixá Xangô. As autoridades assinaram os passaportes em 10 de outubro de 1837. Não há notícias do retorno do núcleo familiar de Francisca, porém Marcelina da Silva, sua ex-escrava, filha de santo e sucessora, conseguiu voltar para o Brasil (o que era difícil depois da Revolta dos Malês), grávida, e trazendo suas duas crianças, Maria Theodoria e Ângela. A terceira filha, Claudiana, nascida em Salvador, seria a genitora de Maria Bibiana do Espírito Santo, futura Ialorixá do Terreiro Opô Afonjá, conhecida como Mãe Senhora.

Pacífico Licutan, ao ser ouvido, disse que sofria no cativeiro e, realmente, seu senhor não lhe providenciou defesa. Os rebeldes prometeram que o libertariam, ao fim do Ramadã, após a insurreição. A execução de sua pena (1.000 acoites) prolongou-se de 10 de abril a 12 de junho, tendo ele sido examinado pelo Médico Prudêncio José de Sousa Britto Cotegipe, em 26 de maio, que suspendeu as chicotadas durante três dias, por estar debilitado. Quando liberado da prisão, em 1836, usou grilhão nos pés.

Apesar de haver figurado no rol dos culpados, Elesbão-Dandará, comerciante do mercado de Santa Bárbara, no pé da Ladeira da Montanha, não aparece no libelo, tampouco na lista dos sentenciados. Coincidentemente, em outubro de 1835, um indivíduo, com nome idêntico, solicitou passaporte para viajar à África. À companheira Emereciana, que fornecia os anéis dos malês e preparava alimentos para as festas religiosas, foram infligidas 400 chibatadas.

Os açoites (cinquenta por dia), que atraíam a curiosidade popular, eram aplicados no Campo da Pólvora, no Campo Grande e em Água de Meninos, onde havia quartéis nas proximidades, sob a fiscalização do Oficial de Justiça, do Escrivão João Pinto Barreto e de quatro Policiais, com despesas custeadas pelos proprietários dos cativos. O Médico, no dia 19 de setembro de 1835, alertou, em relatório, para o perigo de morte de Carlos, Belchior, Cornélio, Joaquim, Thomás, Lino e Luís Sanin, recolhidos à Cadeia do Tribunal da Relação, diante das chicotadas recebidas, tendo o último sido levado para o Hospital da Santa Casa de Misericórdia, onde permaneceu por dois meses; entretanto, não escapou da complementação, depois da alta hospitalar. Alguns escravos não resistiram ao suplício. Narciso, durante a execução de sua pena, correspondente a 1.200 chibatadas, iniciada a 09 de setembro de 1835, morreu naquele nosocômio, em 27 de maio de 1836, após internação de quatro meses. Nesse ínterim, Pedro, escravo de José Bahia, recebeu o mesmo número de açoites, cujo controle está inserido nos autos. Findo o cumprimento, expedia-se o alvará de soltura, com a obrigação do apenado usar armação de ferro, em forma de cruz, no pescoço, ou corrente entre os pés. Aos proprietários, caberia a aquisição dos cruéis instrumentos.

Os julgamentos ocorreram até o ano de 1836 e os condenados às galés, forçosamente, trabalhavam nos prédios públicos.

Os poucos absolvidos, por ausência de provas, foram expulsos. Libertos, residentes na capital baiana, passaram a ser perseguidos e resolveram viajar para a África, tendo sido registrados cerca de 700 passaportes, configurando verdadeira assepsia social.

Na tentativa de controlar as atividades dos escravos de ganho, aqueles que trabalhavam nos “cantos” das ruas, com a autorização dos donos, a Assembleia Provincial editou a Lei nº 14, de 02 de junho de 1835, instituindo capatazias, substituindo os capitães de canto por capatazes, remunerados com parte dos rendimentos obtidos pelos cativos. Ainda seriam regulamentadas as capatazias do mar, para os que laboravam no cais. Prevaleceu a insatisfação, resultando na burla ao diploma legal.

Em novembro daquele ano, o navio Maria Damiana partiu de Salvador em direção ao Porto de Uidá, no Reino de Daomé, onde desembarcaram 200 africanos deportados.

Maria da Conceição, uma das que cozinhavam alimentos para as reuniões dos muçulmanos, embora absolvida, esteve presa cerca de dez anos, esquecida. O insurreto João Clegg, escravo da empresa inglesa Clegg e Jones, que se encontrava recolhido no Arsenal da Marinha, foi resgatado durante a Sabinada, em 1837; recapturado, ficou encarcerado até 1868, quando obteve o perdão imperial. Aprígio somente seria liberado no ano de 1876, tendo usado correntes nos pés por mais de trinta anos, segundo sua própria petição dirigida ao Imperador. Outros rebeldes permaneceram detidos até a morte.

A partir da Revolta dos Malês, os escravos, oriundos da Bahia, eram considerados perigosos nas demais Províncias.

As pequenas Mesquitas e as escolas do Corão foram cerceadas nas práticas religiosas às sextas-feiras e nas festas do calendário litúrgico, inclusive no Ramadan, até o advento da República. Nina Rodrigues conheceu os últimos africanos muçulmanos, residentes em Salvador, e frequentou um de seus templos na Rua da Alegria, nº 03, nos Barris. Referiam-se ao episódio como a “Guerra dos Malês”. Queixavam-se de seus filhos biológicos nascidos no Brasil, os “crioulos”, por não nutrirem interesse nos postulados do Islã, preferindo o culto dos Orixás ou o Catolicismo.

Submetidos à analise de pesquisadores, os escritos em árabe, até hoje, despertam a curiosidade. O próprio Nina Rodrigues enviou peças ao Padre Pierre Andourard, libanês da Igreja Maronita, radicado na capital francesa, objetivando o entendimento. No ano de 1907, o Padre Etienne Ignace publicou suas conclusões, após solicitar que comerciantes maronitas, oriundos do Líbano, estabelecidos em Salvador, interpretassem a redação. Por sua vez, o Prof. Rolf Reicheter, no ano de 1970, classificou os documentos em três séries: textos corânicos, orações islâmicas e amuletos. A 09 de dezembro de 1835, no “júri de julgação” do cativo Torquato, o Advogado Domingos Mondim Pestana, contratado pelo proprietário José Pinto Novaes, alegou que os papéis, encontrados em poder do réu, foram considerados subversivos pela incompreensão do árabe e diante da suspensão dos direitos constitucionais dos baianos. Condenado, impuseram-lhe 250 açoites.

Em 1839, João Antônio de Sampaio Viana, sócio correspondente do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, situado no Rio de Janeiro, atendendo à campanha desencadeada para a constituição do acervo do IHGB, efetuou doações importantes, incluindo um desenho, com letras arábicas, e um pequeno manuscrito religioso, denominado “Livrinho Malê”, encadernado em couro. O doador seria, posteriormente, Juiz de Direito de Caravelas e de Salvador.

Vários escravizados e libertos foram punidos com açoites pela posse de objetos das religiões de matriz africana ou por se vestirem com as roupas próprias dos yorubanos, muçulmanos ou não. O forro Luís Vieira, inocentado pelo Juiz de Paz, viu-se condenado a oito anos de prisão, após insistência do Promotor Público, por vestir-se com a indumentária branca e saber costurá-la de encomenda.

Apesar de citada pelo filho Luiz Gama, como integrante de insurreições, banida do Brasil, inexiste menção a Luíza Mahim, nos termos processuais, malgrado uma mulher de nome Luíza tenha viajado para a África, nesse período.

A Revolta dos Malês teve grande repercussão na imprensa brasileira, ganhando a atenção no exterior, por meio dos Consulados em Salvador, que se utilizaram das notícias publicadas nos jornais “Gazeta do Comércio”, Gazeta da Bahia” e “Diário da Bahia”.

Verificou-se, durante os apuratórios, que havia escravos pertencentes a religiosos, e libertos proprietários de cativos.

As autoridades baianas encontraram dificuldades para cumprir o banimento, pois o fluxo de embarcações entre o Brasil e a África havia sido reduzido, com o término oficial do tráfico negreiro; deportados tentaram retornar, contudo tiveram os pedidos negados.

O Arquivo Público do Estado da Bahia, em seu acervo, detém 234 processos judiciais dos insurgentes, sendo 14 de mulheres.

A cabeça de um dos rebeldes, que morreu no Hospício Jerusalém (casa franciscana, localizada no Centro de Salvador, na atual Rua Democrata), depois de atingido por golpe de mosquete, foi exumada do cemitério do Campo da Pólvora, pelo Advogado americano Gideon T. Snow, residente na capital baiana, e enviada, em 1836, a seu amigo J. C. Howard, membro da Sociedade para o Aperfeiçoamento Médico de Boston (segundo o remetente, o morto era um dos líderes da Revolta dos Malês). Howard, no ano de 1847, vendeu o acervo particular ao Prof. John Collins Warren, da Universidade de Harvard. Recentemente, o jornal estudantil da Instituição, The Harvard Crimson, relatou a descoberta da Comissão designada para analisar centenas de crânios de indígenas americanos, africanos, bem como de escravos do Caribe e do Brasil, guardados no Museu Peabody, daquela Universidade, catalogados por raça e nação, prática do racismo científico. Atualmente, a comunidade islâmica de Salvador postula a repatriação do crânio, para o devido sepultamento.

A perseguição das autoridades contra os rebeldes malês se estendeu à religiosidade e aos costumes africanos, o que perdurou até o século XX, com a invasão de Terreiros de Candomblé, destruição e apreensão de objetos sagrados, além da prisão de sacerdotes.

 

Desembargador Lidivaldo Reaiche Raimundo Britto
Sócio do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia – IGHB

 

BIBLIOGRAFIA

Autos da Revolta dos Malês – Arquivo Público do Estado da Bahia

A Revolta dos Malês – 24 para 25 de janeiro – Padre Etienne Ignace – Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia – Ano XIV, nº 33 -1907

Memórias Históricas e Políticas da Bahia – Inácio Accioli – Braz do Amaral – vol IV – Imprensa Oficial da Bahia – 1931

Os Africanos no Brasil – Raimundo Nina Rodrigues – Madras – São Paulo – 1932

Os Documentos Árabes do Arquivo Público do Estado da Bahia – Rolf Reichert – Centro de Estudos Afro-Orientais – Salvador – 1970

Movimentos proféticos prepolíticos e contraculturais dos negros islamizados na Bahia do século XIX – A Revolta dos Malês – Vânia Maria Corrêa Alvim – Dissertação de Mestrado em Ciências Humanas – UFBA – 1975

Espaços Negros – “cantos” e lojas em Salvador, no séc. XIX – Ana de Lourdes Ribeiro da Costa – Caderno CRH – Suplemento p. 18-34 – 1991

Rebelião Escrava no Brasil – A História do Levante dos Malês em 1835 – João José Reis – Companhia das Letras – 2003

A formação do Candomblé – História e ritual da nação jeje na Bahia – Luis Nicolau Parés – Editora Unicamp – Campínas – 2007

Marcelina da Silva e seu mundo, novos dados para uma historiografia do candomblé ketu – Lisa Earl Castilho e Luís Nicolau Parés – Revista Afro-Ásia, nº 36 – 2007

A proteção legal dos Terreiros de Candomblé – da repressão policial ao reconhecimento como patrimônio histórico-cultural – Lidivaldo Reaiche Reaiche Raimundo Britto – 2016

Legislação escravocrata, usos do espaço urbano e conflitos sociais na Salvador do séc. XIX – site Passa palavra – 08/01/2018

Bantos, Malês e Identidade Negra – Nei Lopes – Ed. Autêntica – 2022

Descendentes na Bahia buscam ‘repatriar’ crânio de escravo da Revolta dos Malês – Bahia Noticias – 22/09/2022

Mobilização tenta trazer ao Brasil crânio de escravo que está em Harvard – GZH Ciência e Tecnologia – 25/09/2022

O crânio de um malê em Harvard e a medicina que espalhou racismo pelo mundo – Memo – Monitor do Oriente Médio” – 15/10/2022

188 anos da Revolta dos escravos Malês – Joaci Goes – Tribuna da Bahia – 26/01/2023

Texto publicado: Desembargador Lidivaldo Reaiche Raimundo Britto