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Agência de Notícias

O Tribunal da Relação da Bahia e a Revolução dos Alfaiates (Revolta dos Búzios) – Os atos preparatórios
29 de junho de 2021 às 10:46
O Tribunal da Relação da Bahia e a Revolução dos Alfaiates (Revolta dos Búzios) – Os atos preparatórios

O regime republicano francês de 1789 representava uma ameaça à Coroa Portuguesa. Os navios oriundos da França eram inspecionados nos portos brasileiros, pois poderiam trazer livros indesejáveis. A tripulação deveria ser vigiada. Nas cidades mais desenvolvidas (Salvador, Recife e Rio de Janeiro), a Maçonaria abrigava os princípios de igualdade, liberdade e fraternidade.

Engana-se quem imagina que a Inconfidência Mineira influenciou a República Bahiense. O ímpeto dos baianos foi despertado pela Revolução Francesa.

No dia 30 de novembro de 1796, no Porto de Salvador, o Desembargador José Joaquim Borges da Silva, desempenhando uma de suas atividades, inspecionou o navio espanhol Boa Viagem, que trazia o Comandante Antoine René Larcher, de nacionalidade francesa, resgatado com a família e marujos, após sua nau, Fragata La Preneuse, ter sido avariada. A embarcação espanhola ficaria fundeada na Bahia de Todos os Santos cerca de um mês, para conserto. A autorização foi concedida, entretanto aquele desembarque traria sérias consequências.

Durante a permanência de Larcher, o Governador D. Fernando José de Portugal e Castro, preocupado com a disseminação dos ideais revolucionários, determinou que ele fosse acompanhado nos deslocamentos, tendo designado, para a missão, Hermógenes Francisco de Aguillar e José Gomes da Oliveira Borges, Oficiais do Segundo Regimento.

Larcher havia lutado na Revolução Francesa e narrou sua experiência aos militares; ambos absorveram as ideias republicanas.

No dia 02 de janeiro de 1797, o navio espanhol deixou a Bahia, levando os visitantes franceses, elogiados pelo Governador, diante do bom comportamento. Ele desconhecia o estrago já causado. A semente tinha sido plantada. Larcher também não esqueceria aquela estada.

Alguns membros da elite baiana se reuniam para discutir assuntos literários.

O rico comerciante Francisco Agostinho Gomes possuía imensa biblioteca, com livros de autores iluministas. Religioso licenciado, em virtude do falecimento dos genitores, era poliglota e gostava de oferecer jantares aos estrangeiros, de passagem por Salvador, no seu palacete, localizado no Largo de Nazaré, onde hoje se situa o Colégio Salesiano.

O Professor Francisco Muniz Barreto de Aragão, de Rio de Contas, o intelectual José Borges de Barros e o proprietário de engenho Joaquim Ignácio de Siqueira Bulcão participavam dos encontros.

Na base da pirâmide social, os excluídos. Oficiais brancos comandavam um Regimento Auxiliar dos Homens Negros, que não vislumbravam a mínima possibilidade de ascensão. Muitos, paulatinamente, externariam a insatisfação, inserindo a escravidão no centro dos debates.

O elo entre mundos tão distantes seria o Tenente Hermógenes. Politizado e liberal, promovia, em sua casa, a leitura de livros e textos franceses traduzidos. Exerceu liderança sobre os colegas de farda, tendo sido acusado de aliciador. Seu irmão, Pedro Leão, comungava do mesmo idealismo.

Muito ligado ao Tenente Hermógenes, o Soldado Manuel de Santa Anna servia no Regimento dos discriminados. Por atacar a Monarquia, o Catolicismo, a legislação e o tratamento desumano dispensado aos negros, foi apenado com castigo físico (açoite) e humilhado, o que provocou sua deserção, fato rapidamente difundido entre os quartéis.

Os Soldados Lucas Dantas do Amorim Torres e Luís Gonzaga das Virgens e Veiga eram próximos e mantinham contato com o Tenente Hermógenes. Lucas Dantas, por sua vez, conhecia o alfaiate João de Deus do Nascimento, amigo de Manoel Faustino dos Santos Lira, que igualmente costurava roupas. Ex-escravo e serviçal da família proprietária do Solar do Unhão, tinha como madrinha Maria Francisca da Conceição, por quem o Professor Francisco Muniz nutria paixão, Manoel Faustino agia como mensageiro de correspondências, quando lhe eram transmitidos conhecimentos pelo docente.

O Tenente Hermógenes e Luís Gonzaga estiveram no batizado da filha de Lucas Dantas. Este e Manuel Faustino conversaram com João de Deus para aderir ao movimento.

Em sua alfaiataria, muito bem instalada na Rua Direita do Palácio (atual Rua Chile), João de Deus, empolgado com a iminente insurreição, convidou os alfaiates José do Sacramento, Ignácio da Silva Pimentel (também Soldado), Manoel do Nascimento, o escravo de ganho Vicente e o menor João (cativo), que ali trabalhavam. Foram chamados, ainda, o ferreiro Joaquim José da Veiga e o Capitão Joaquim José de Santa Anna, do Destacamento dos Homens Negros, que forneceria as armas e estava revoltado com a notícia da provável promoção de um Sargento branco para comandar a unidade militar, numa total inversão de hierarquia.

A maquinação da revolta avançava. Na casa do Tenente José Gomes de Oliveira Borges, durante um almoço, Lucas Dantas, João de Deus e o Sargento Joaquim Antônio da Silva trataram da sublevação.

A influência libertária contagiou mulheres, outros militares, além de comerciantes, religiosos, profissionais liberais, artesãos, sapateiros, trabalhadores e escravos. O ourives Luís de França Pires abriu as portas de sua oficina, no Carmo, para a preparação do levante.

Houve compartilhamento de textos franceses, como: “Ruines”, de Volney; o “Orador dos Estados Gerais”, de Jean Louis Carra; o “Discurso de Baissy D´Angla”, na Covenção Francesa, de 30/01/1795; e o poema intitulado “Igualdade e Liberdade”, de autor desconhecido.

O Coronel Ferreira e Lucena, amigo e protetor do Tenente Hermógenes, foi informado das reuniões e tratativas, transmitindo ao Governador a inquietação das tropas. A gravidade da situação não mereceu a atenção devida, resultando, tão somente, na advertência do protegido, que tramava, secretamente.

Na manhã do dia 12 de agosto de 1798, a população de Salvador acordou estupefata com onze “avisos sediciosos” (panfletos), afixados em diversos locais públicos. O sistema de comunicação era inovador.

O primeiro deles conclamava: ‘ANIMAI-VOS POVO BAHIENSE, QUE ESTÁ PARA CHEGAR O TEMPO FELIZ DA NOSSA LIBERDADE: O TEMPO EM QUE TODOS SEREMOS IRMÃOS: EM QUE TODOS SEREMOS IGUAIS”… (redação original). Informava, ainda, a adesão de seiscentos e setenta e seis pessoas, incluindo quatorze franciscanos, oito beneditinos, quatorze therezos (do Convento de Santa Thereza) e quarenta e oito clérigos.

O conjunto de avisos continha referências à França, ao sistema escravagista, ao preconceito contra os negros e pardos, ao julgo português, à liberdade do comércio, ao despotismo, à Igreja e aos baixos soldos dos Soldados.

Enquanto as autoridades tentavam descobrir a autoria dos escritos, os revoltosos adotavam as derradeiras providências, visando à deflagração da Conjuração Baiana.

Como em toda revolução, a delação se faria presente e a repressão implacável não tardaria.

Desembargador Lidivaldo Reaiche*

Fontes de pesquisa:
Burocracia e Sociedade Colonial: a Suprema Corte da Bahia e seus Juízes – Stuart Schwartz – Ed. Companhia Das Letras
Crônica do Viver Baiano Seiscentista – Obras Completas de Gregório de Matos – O Boca do Inferno – Ed. Janaína
História do Brasil – 1500-1627 – Frei Vicente do Salvador
Carta Ânua – Antônio Vieira
A Relação da Bahia – Affonso Ruy
História Geral do Brasil – Visconde de Porto Seguro
Memória da Justiça Brasileira, volume 1 – Tribunal de Justiça do Estado da Bahia
Memórias Históricas e Políticas da Província da Bahia – Anotações de Braz do Amaral – Inácio Accioli de Cerqueira Silva
Dicionário dos Desembargadores – 160-1834 – José Subtil
Tribunal de Justiça do Estado da Bahia – 410 anos fazendo história
Notícia Geral desta Capitania da Bahia – José Antônio Caldas
História da Sedição Intentada na Bahia em 1798 – Luis Henrique Dias Tavares
Da Sedição de 1798 à Revolta de 1824 na Bahia – Luís Henrique Dias Tavares
Autos das Devassas da Conspiração dos Alfaiates – Arquivo Público do Estado da Bahia

 

*O Desembargador Lidivaldo Reaiche Raimundo Britto retrata a História do Tribunal da Bahia, desde a época que funcionou como o Tribunal da Relação. Estudioso e pesquisador do tema, o Desembargador Lidivaldo é Presidente da Comissão Temporária de Igualdade, Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos Humanos (Cidis) e membro da Comissão Permanente de Memória.

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Texto publicado: Desembargador Lidivaldo Reaiche