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O Tribunal da Relação da Bahia e as lutas pela Independência do Brasil – o assassinato da Sóror Joana Angélica
15 de agosto de 2022 às 9:03
O Tribunal da Relação da Bahia e as lutas pela Independência do Brasil – o assassinato da Sóror Joana Angélica

Ainda sob o impacto da Revolução do Porto de 1820, que transformou o regime absolutista de Portugal em monarquia constitucional, e sendo pressionado para deixar o Brasil, D. João VI, no dia 08 de julho daquele ano, concedeu autonomia à Capitania de Sergipe Del Rey, o que irritou os baianos com a perda do território, embora a Comarca continuasse sob jurisdição do Tribunal da Relação da Bahia.

Em setembro, promulgou-se a Constituição de Portugal e houve mobilização para impor ao Brasil, já Reino Unido, o retorno à condição de Colônia.

Logo em seguida, no dia 29, editou-se Decreto Provisório disciplinando o “Systema de Governo e Administração Pública nas Províncias do Brasil” (as Capitanias deixariam de existir), com a instalação de Juntas Governativas, de cinco ou sete membros, que deviam obediência a Portugal; a da Bahia teria sete. A eleição ocorreria através das paróquias, nas capitais, no prazo de dois meses, e Generais seriam Comandantes das Armas.

Em 24 de janeiro de 1821, as Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa (Parlamento) se reuniram pela primeira vez, sob a presidência do Arcebispo da Bahia, Frei Vicente da Soledade. Com a Constituição aprovada em Portugal, mas sem o juramento de D. João VI, algumas Províncias do Brasil reagiram, temendo a volta do absolutismo.

Ademais, após a Revolução Pernambucana de 1817, cujo feito judicial tramitou na Bahia, onde permaneceram presos centenas de réus, contribuindo para a delonga do julgamento, com prejuízo à defesa, Dom. João VI anulou o processo, e, no dia 06 de fevereiro de 1821, criou o Tribunal da Relação de Pernambuco, abrangendo as Comarcas da Parayba, do Rio Grande do Norte e do Ceará, desmembradas da Corte do Maranhão.

Na Bahia, em 10 de fevereiro, o “movimento vintinista” (alusão à Revolução do Porto de 1820) liderado pelo então Tenente-Coronel Manoel Pedro de Freitas Guimarães, brasileiro, com base nos princípios do constitucionalismo, se opôs aos absolutistas vinculados ao Governador da Província, Dom Francisco de Assis Mascarenhas, o Conde da Palma. Irromperam inúmeros protestos nas ruas, prontamente reprimidos pelo Coronel Felisberto Caldeira Brant Pontes de Oliveira Horta, gerando conflitos na Piedade e dezenas de mortos. Diante da instabilidade e acuado, o Governador, depois da eleição dos membros da Junta Provisória, seguiu para o Rio de Janeiro.

Os episódios chocaram as forças portuguesas estacionadas na capital baiana, inclusive o Brigadeiro Inácio Luís Madeira de Mello, que veio para o Brasil num dos cinco batalhões enviados por D. João VI em virtude da Revolução Pernambucana. Ele atuou na Bahia de 1817 a 1819, quando foi transferido para Santa Catarina, tendo retornado em 1820, com quarenta e cinco anos.

Madeira de Mello procurou se entender com a Câmara, a fim de constituir uma Junta Governativa fiel a Portugal, cuja eleição e posse se deu no mesmo dia (10 de fevereiro), com a seguinte composição: Presidente, o Chanceler do Tribunal da Relação da Bahia, DESEMBARGADOR LUIS MANUEL DE MOURA CABRAL (representando a cidade); Vice-Presidente, Paulo José de Melo Azevedo e Brito (representando a agricultura); Secretário do Governo, o DESEMBARGADOR JOSÉ CAETANO DE PAIVA PEREIRA; o Bacharel José Lino Coutinho (auxiliar do Secretário do Governo); José Fernandes da Silva Freire (representando o clero); José Antônio Rodrigues Viana e Francisco Antônio Figueiras (ambos representando o comércio); como Comandante das Armas, Manuel Pedro de Freitas Guimarães; além de Francisco de Paula de Oliveira e Francisco José Pereira (representantes dos militares).

A Junta logo instalou uma Comissão de Censura, para analisar previamente as publicações, integrada por dois DESEMBARGADORES (FRANCISCO CARNEIRO DE CAMPOS e JOAQUIM IGNÁCIO SILVEIRA DA MOTA), e pelo Bacharel Diogo Soares da Silva de Bivar, o que desagradou a população.

D. João VI, tentando ganhar tempo, em 18 de fevereiro, decidiu enviar o Príncipe Pedro I para Portugal. Todavia, as Cortes exigiram a presença do Rei, que resolveu deixar o Brasil, no dia 26 de abril, nomeando seu filho como Regente e abolindo a censura prévia sobre publicações, permitindo a divulgação de ideias e críticas.

Em Salvador, o clima político era tenso e houve tentativa de desconstituição da Junta Governativa, em 03 de novembro, com a invasão do Palácio do Governo, tendo 16 participantes sido presos e deportados para Portugal.

Entretanto, a Carta Régia nomeando o português Madeira de Mello como Comandante das Armas, no dia 09 de dezembro daquele ano, traria consequências imprevisíveis.

Pressionado a retornar para Portugal, D. Pedro resolveu permanecer no Brasil, em 09 de janeiro de 1822, conhecido como o DIA DO FICO.

O mandato da Junta Governativa findou em 02 de fevereiro, tendo sido eleita nova composição: Francisco Vicente Viana (Presidente), DESEMBARGADOR FRANCISCO CARNEIRO DE CAMPOS (Secretário); DESEMBARGADOR ANTÔNIO DA SILVA TELES (Tesoureiro); Francisco Elesbão Pires de Carvalho e Albuquerque; Francisco Martins da Costa; José Cardoso Pereira de Melo; e Tenente-Coronel Manuel Ignácio da Cunha e Menezes. Para Governador das Armas, foi indicado o agora Brigadeiro Manoel Pedro de Freitas Guimarães, o que desagradou Madeira de Mello. Porém, a referida Carta Régia só chegou no dia 15 de fevereiro, através do navio Leopoldina. Não vieram comunicações para as outras autoridades. Assim que recebeu o documento, ele enviou ofícios informando a sua nomeação, contudo Freitas Guimarães, que não era reconhecido pelos Oficiais portugueses, condicionou o seu afastamento ao registro da validade da Carta na Câmara, como de praxe, criando um impasse.

Em 16 de fevereiro, a Câmara incompleta (os mandatos de alguns Vereadores haviam expirado a 31 de dezembro de 1821), presidida pelo Juiz de Fora Antônio Augusto da Silva, recusou a Carta Régia, sob a justificativa da falta de quórum e pela ausência do registro do documento na Chancelaria do Reino de Portugal. A Junta Governativa determinou que a Câmara se reunisse no dia 18, sob a presidência interina do Juiz de Fora do Crime Luiz de Paulo Araújo Bastos, substituindo o Presidente que alegou doença para não comparecer. O Tribunal da Relação, que até então não tinha enviado a lista dos novos Edis, assim o fez, com os seguintes nomes: Antônio Ferreira França, Francisco Antônio de Souza Uzel, Francisco Gomes Brandão Montezuma, e, como Procurador, Domingos José de Almeida de Lima. Havia um abaixo assinado pedindo a permanência do Comandante brasileiro e os Vereadores se mantiveram recalcitrantes e não aceitaram a Carta Régia.

A Junta Governativa, diante da negativa de Freitas Guimarães em entregar o Comando das Armas, suspendeu a sessão da Câmara e determinou que os Edis se deslocassem para o Palácio do Governo. Ali, Madeira de Mello chegou escoltado por diversos militares. Dentre outros, também participaram do encontro: os componentes da Junta; os DESEMBARGADORES JOAQUIM JOSÉ NABUCO DE ARAÚJO (Chanceler), JOSÉ GONÇALVES MARTINS, LUIZ JOSÉ DE OLIVEIRA, FRANCISCO MACHADO DE FARIA MAIA, ANTÔNIO JOZÉ DUARTE DE ARAÚJO GONDIM (OUVIDOR DA COMARCA), FRANCISCO CARNEIRO DE CAMPOS e ANTÔNIO DA SILVA TELES (estes dois últimos Secretário e Tesoureiro da Junta); os Oficiais e o Procurador da Cidade. Ao todo, cinquenta e oito pessoas assinaram a Ata da reunião, que se estendeu por mais de dez horas, adentrando a madrugada, quando se deliberou pelo reconhecimento de Madeira de Mello como Comandante das Armas, mas, também, decidiu-se pela criação de uma Junta Militar integrada por sete membros, comandada pelo lusitano, cabendo a ele e a Freitas Guimarães a indicação de dois, sendo um sétimo sorteado, até que o Rei de Portugal decidisse definitivamente. Madeira de Mello queria boicotar a Junta Militar e requereu a oitiva de todos os Oficiais, pois a maioria o apoiava. O próprio Freitas Guimarães não esteve presente no Palácio do Governo.

Consequentemente, os Regimentos de Salvador ficaram divididos. Milicianos e marujos de embarcações, ancoradas no Porto, iniciaram a balbúrdia nas ruas. Ocorreram saques e roubos.

No dia 19 de fevereiro, ouviram-se disparos nas imediações do Forte de São Pedro, cercado pelas tropas da Legião Constitucional Lusitana. Os conflitos se ampliaram para o Rosário, a Piedade, o Tororó, a Mouraria e a Palma (estas duas últimas localidades abrigavam quartéis). Madeira de Mello ocupou a Casa de Pólvora (no atual Campo da Pólvora). Os militares alcançaram as imediações do Convento de Nossa Senhora da Conceição da Lapa, das irmãs concepcionistas, fundado em 1733 e seguidor das regras de São Francisco. Soldados portugueses, naquela manhã, ultrapassaram o pátio do espaço religioso, até serem barrados, na entrada principal, pela intrépida Sóror Joana Angélica, havendo esta sido atingida por um golpe de baioneta. Ela temia abusos contra as freiras e noviças, que fugiram e se abrigaram no Convento das Mercês. Viria a falecer aos 60 anos, no dia 20, aproximadamente às 12:00 horas. No ataque covarde, feriu-se o Capelão Daniel Nunes da Silva Lisboa. A população se revoltou. A notícia da morte da Abadessa, de família importante, teve grande impacto negativo no Rio de Janeiro e em Lisboa. Madeira de Mello, agindo de modo corporativo, alegou que tiros foram disparados do Convento contra as suas tropas. A Junta Governativa determinou a instauração de uma devassa (investigação) pelo Juiz do Crime Luiz Paulo de Araújo Bastos, a fim de identificar a iniciativa dos embates. Os autos da apuração estão desaparecidos.

Ainda em 20 de fevereiro, houve uma debandada dos que ocupavam o Forte de São Pedro (muitos buscaram proteção no Recôncavo) e, com a confusão, as religiosas das Mercês se deslocaram para os Conventos do Desterro e da Soledade. No dia seguinte, Freitas Guimarães, acompanhado de outros Oficiais, abriram os portões para a entrega da Fortaleza e foram presos. Posteriormente, Madeira de Mello enviou Freitas Guimarães para Portugal, a bordo do navio “Sr. Gualter”, a fim de ser julgado por supostos crimes.

A Carta Régia foi reapresentada, por mera formalidade, contudo o Vereador Montezuma, novamente, contestou o documento, tendo Madeira de Mello, em 02 de março, solicitado prestar juramento. Por fim, dias depois, o Presidente interino da Câmara, o Juiz de Fora dos Órfãos Francisco Jozé Pacheco, permitiu.

Madeira de Mello passou a se reportar diretamente a D. João VI, informando sobre a situação na Bahia, inclusive pedindo reforço das tropas terrestres e navais. Ele, também, determinou a apuração dos fatos ocorridos, através do Conselho de Investigação. Vários subalternos foram ouvidos, no entanto os depoimentos se resumiram aos conflitos e à ocupação do Forte de São Pedro, inexistindo qualquer referência à morte da Madre Joana Angélica. As peças do apuratório encontram-se no Arquivo Histórico Militar de Lisboa. Na correspondência enviada a Portugal, nunca admitiu a responsabilidade dos seus comandados.

A Câmara encaminhou uma Representação para D. João VI, a 16 de março de 1822, noticiando os acontecimentos de 19 de fevereiro, e requereu a retirada da Legião Constitucionalista Lusitana, mesmo porque os gastos com a sua manutenção recaíam sobre os soteropolitanos.

Na Procissão de São José, em 22 de março, Soldados daquela Legião foram apedrejados e, quatro dias depois, a Junta Governativa aprovou o desembarque de novas tropas portuguesas, que tinham deixado o Rio de Janeiro rumo a Lisboa, por ordem de D. Pedro. Em razão disso, iniciou-se o êxodo dos moradores da capital baiana.

A recolonização do Brasil não seria admitida. Todavia, a divisão iria imperar no Tribunal da Relação da Bahia, entre o apoio a D. João VI, com a manutenção do Reino Unido, e a seu filho, o Príncipe Regente D. Pedro, que já vislumbrava um novo império.

A Abadessa Joana Angélica foi a primeira mártir de uma guerra que iria ser travada pela Independência do Brasil.

Desembargador Lidivaldo Reaiche Raimundo Britto
Sócio do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia

 

Bibliografia

Memórias Histórias e Políticas da Bahia – Inácio Accioli – Braz do Amaral – Vol, III – Imprensa Oficial da Bahia – 1931

A Independência do Brasil na Bahia – Luís Henrique Dias Tavares – Ed. Civilização Brasileira – 1982

Dicionário dos Desembargadores (1640-1834) – José Subtil – Universidade Autônoma de Lisboa – 2009

Independência ou Morte em Salvador – O cotidiano da capital da Bahia no contexto do processo de independência brasileiro (1821-1823) – Marcelo Renato Siquara – Mestrado – UFBA – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – Departamento de História – Programa de Pós-graduação em História Social – 2012

Caridade, Política e Saúde: o Hospital São João de Deus e a Santa Casa de Misericórdia de Cachoeira, Bahia (1756-1872) – João Batista de Cerqueira – Doutorado – UFBA/UEFS – Programa de Pós-graduação em Ensino, Filosofia e História das Ciências – 2015

História da Câmara Municipal da Cidade de Salvador – Affonso Ruy – Câmara Municipal de Salvador – 2017

Desembargadores da Justiça no Rio de Janeiro – Colônia e Império – Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro – 2018

410 anos fazendo história – Tribunal de Justiça do Estado da Bahia – 2019

Estratégias Políticas na Independência – Brasil, Portugal, Bahia e Cachoeira nos Oitocentos – Franklin Oliveira – Empresa Gráfica da Bahia – 2019

Tribunal de Justiça de Pernambuco – 200 anos de história – Vol. I – Tribunal da Relação (1821-1892) – 2021

O primeiro atentado à liberdade de imprensa no Brasil – Jorge Ramos – Tribuna da Bahia – 21/07/2022

Um estátua para o Corneteiro Lopes – Jorge Ramos – Tribuna da Bahia – 06 e 07/08/2022

Texto publicado: Desembargador Lidivaldo Reaiche