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A transmigração da família real portuguesa para o Brasil – O Tribunal da Relação da Bahia hospeda Carlota Joaquina – A instalação da Casa de Suplicação do Brasil
7 de outubro de 2021 às 14:37
A transmigração da família real portuguesa para o Brasil – O Tribunal da Relação da Bahia hospeda Carlota Joaquina - A instalação da Casa de Suplicação do Brasil

O século XIX iniciou-se com o incremento da atividade açucareira na Bahia, diante da crise política no Haiti, colônia francesa que havia desencadeado um movimento de independência, a partir de 1791.

Por sua vez, a ambição desmedida de Napoleão Bonaparte, General/Imperador da França desde 1804, subjugando reinos europeus, obrigando-os ao rompimento com a Inglaterra e introduzindo seus parentes nas casas reais, visando à construção de alianças, impactaria, diretamente, no futuro do Brasil.

Em 1807, através do Tratado de Fontainebleau, França e Espanha haviam acordado a divisão de Portugal. Contudo, enquanto o exército espanhol invadia o território português, Napoleão, traiçoeiramente, ocupava Madri, afastando o Rei Carlos IV e colocando José Bonaparte, seu irmão, como monarca. Consequentemente, as forças espanholas retornaram para defender seu país.

A Rainha Maria I desenvolvera uma doença psiquiátrica, após o falecimento de diversos parentes, inclusive seu primogênito, D. José, o herdeiro do trono português, tendo, em 1792, sido afastada das funções, assumidas pelo segundo filho, D. João, que substituíra o irmão na linha sucessória, como Príncipe Regente.

D. João, pressionado por Napoleão e sem querer desagradar os ingleses, principais credores de Portugal, decidiu executar um plano alternativo, há muito idealizado, de transferir a Corte para o Brasil, o que foi providenciado rapidamente, com o financiamento da Inglaterra.

A população estranhou o movimento de cargas no cais do Rio Tejo, em Lisboa, até que, às 07:00 horas do dia 29 de novembro de 1807, com o exército francês já avançando, uma frota constituída por quinze embarcações, sob o comando do Vice-Almirante Manoel da Cunha Souto Maior, protegida por quatro navios ingleses (a esquadra britânica era comandada pelo Almirante Sidney Smith), conduziu a família real, a nobreza, ministros, servidores públicos, religiosos, ricos comerciantes e serviçais, para a maior Colônia do além-mar. Os portugueses abandonados, revoltados, viveriam tempos difíceis, enfrentando a fome e resistindo à invasão com o apoio da Inglaterra, no contexto da Guerra Peninsular.

A família real, para proteger a dinastia Bragança, dividiu-se nas seguintes naus: Príncipe Real – D. João, seus filhos Pedro (09 anos) , Miguel (05 anos) e a Rainha Maria I; Alfonso de Albuquerque – Carlota Joaquina e as filhas Maria Teresa (14 anos), Maria Isabel (10 anos), Maria da Assunção (02 anos) e Ana de Jesus Maria (onze meses); e na embarcação Rainha de Portugal – as infantas Maria Francisca (07 anos) e Isabel Maria (06 anos),

O comboio naval, transportando milhares de portugueses, atravessou o Atlântico em direção ao Rio de Janeiro, capital do Brasil. Três semanas depois da partida, D. João decidiu que iria visitar a Bahia. Mesmo com as calmarias e a tempestade que se abatera no mês de dezembro, as naus do Príncipe Regente e de Carlota Joaquina não se afastaram, tendo aportado em Salvador, às 11:00 horas do dia 22 de janeiro de 1808. Três navios ingleses e algumas embarcações portuguesas também atracaram. As demais seguiram para o Rio de Janeiro, inclusive a que levava as infantas Maria Francisca e Isabel Maria.

Durante muito tempo, historiadores atribuíram o desembarque, na primeira sede da América portuguesa, a um desvio de rota na navegação, porém, segundo o pesquisador inglês Kenneth Light, que analisou diários de bordo da Marinha Britânica, a 21 de dezembro de 1807, D. João comunicou ao capitão James Walker a mudança de plano. De acordo com Laurentino Gomes, autor do livro “1808”, que acolheu tal tese, o Príncipe Regente objetivava prestigiar os soteropolitanos, ainda ressentidos com a transferência da capital. Ademais, havia muitos comerciantes portugueses na cidade, além de uma elite baiana, e ele necessitaria de apoio político.

A notícia da chegada da família real gerou imensa euforia, mas a ausência do povo, no cais de Salvador, decepcionou D. João, recebido, tão somente, pelo Governador João de Saldanha da Gama Melo Torres Guedes Brito, o Conde da Ponte, que havia proibido as pessoas de se aproximarem, exigindo a primazia, tendo tal fato contrariado o Príncipe Regente. Após a visita do Arcebispo, D. José da Santa Escolástica, deliberou-se que o desembarque ocorreria na manhã do dia seguinte.

Primeiramente, deixaram a embarcação D. João, Pedro e Miguel. A comitiva subiu a encosta em carruagens, pelas Ladeiras da Preguiça e da Gameleira, acessando a atual Praça Castro Alves, seguindo em direção ao Palácio do Governo, onde se hospedariam. No percurso, os súditos os saudavam, afinal Salvador era o primeiro local brasileiro a receber a visita da família real portuguesa. Em frente à Câmara Municipal, foram homenageados e recepcionados pelo Chanceler da Relação, Antônio Luiz Pereira da Cunha, e demais Desembargadores, andando com as autoridades até a antiga Sé (demolida em 1933), onde celebrou-se o Te Deum Laudamus, em agradecimento por terem todos sobrevivido à travessia. À noite, a cidade ficou iluminada, pois os habitantes colocaram luminárias (tochas) nos imóveis, cumprindo determinação governamental.

No dia 24, foi a vez do desembarque da Rainha Maria I, para quem foi reservado aposento no mesmo Palácio.

Na nau de Carlota Joaquina e das princesas eclodiu uma infestação de piolhos, fato que resultou no corte dos cabelos e desfazimento das perucas. Logo, só pisaram em solo brasileiro a 26 de janeiro, com panos amarrados nas cabeças, havendo quem pensasse que era moda na Europa. Elas se hospedaram no sobrado do Tribunal da Relação da Bahia, com uma bela vista, cedido para abrigá-las, situado ao lado do Palácio do Governo,

Já no dia 28, havendo sido informado, pelo Governador, sobre as dificuldades dos exportadores e importadores, em virtude da guerra na Península Ibérica, D. João assinou a Carta Régia que resultou na quebra do monopólio português sobre o comércio no Brasil, com a abertura dos portos às nações amigas, numa clara retribuição ao Império Britânico, ato importantíssimo para o desenvolvimento da Colônia, que passaria a adquirir produtos ingleses, frutos da Revolução Industrial. Na sequência, o Príncipe Regente revogaria a proibição de indústrias brasileiras e, dentre outras providências, autorizaria a criação de uma companhia de seguros, a construção de uma estrada unindo a Bahia ao Rio de Janeiro, aproveitando a ligação já existente até Minas, bem como a edificação do Teatro São João, na atual Praça Castro Alves.

Em outro ato de reconhecimento da importância de Salvador, a 22 de fevereiro, D. João, aproveitando o prédio onde funcionou, durante mais de duzentos anos, o famoso Colégio dos Jesuítas (expulsos em 1760), ali instalou a Escola de Cirurgia da Bahia, a atual Faculdade de Medicina da UFBA, o primeiro curso superior do Brasil, embora o antigo estabelecimento de ensino da Companhia de Jesus fosse considerado, por muitos, uma pequena universidade.

Nos trinta e quatro dias de permanência em Salvador, D. João concedeu honrarias. Ele e o filho Pedro conheceram diversos lugares, inclusive a Ilha de Itaparica. A criança divertiu-se, criando um elo com os baianos, o que o faria retornar como Imperador do Brasil.

As autoridades e os comerciantes insistiram para que Salvador retomasse a condição de capital, prometendo edificar um imenso Palácio, mas D. João, malgrado tenha admirado a recepção, não alterou seu projeto de manter-se no Rio de Janeiro, por questão de segurança, diante da ameaça francesa.

Durante o período de ocupação da sede da Relação da Bahia, por Carlota Joaquina e suas filhas, as sessões do Tribunal foram realizadas na Câmara Municipal, que teve de transferir, temporariamente, alguns de seus arquivos para a secretaria da Ordem Terceira de São Domingos, no Terreiro de Jesus.

A partida do Príncipe Regente e de seus familiares, no dia 26 de fevereiro, deu-se de forma comovente, com grande acompanhamento popular.

A esquadra atracou no Rio de Janeiro em 08 de março, e, ali, D. João criaria instituições que estruturariam a Colônia. No dia 10 de maio, transformou o Tribunal da Relação carioca na Casa de Suplicação do Brasil, última instância recursal, desvinculando, definitivamente, o Poder Judiciário brasileiro de Portugal.

Para a composição inicial da Suprema Corte, foram nomeados alguns Desembargadores da Relação da Bahia ou que ali haviam atuado e se encontravam exercendo outras funções: José de Oliveira Pinto Botelho e Mosqueira, José Antônio Ribeiro Freire, Bernardo Teixeira Coutinho Álvares de Carvalho, Antônio Feliciano da Silva Carneiro, José de Queiroz Botelho de Almeida Vasconcelos, Francisco Antônio Mourão, Antônio Saraiva de Sampaio Gouveia, Manuel Ignácio Pereira Cabral e Cláudio José Pereira da Costa.

Juristas baianos também integraram a Casa de Suplicação do Brasil, entre 1808 e 1809: Joaquim de Amorim Castro, Antônio Ramos da Silva Nogueira, Luiz José de Carvalho e Mello, Clemente Ferreira França, José da Silva Magalhães, Baltazar da Silva Lisboa e José Joaquim Nabuco de Araújo (pai do pernambucano Joaquim Nabuco).

Em 24 de maio de 1809, o Governador da Bahia faleceu. Cumprindo o Alvará de 12 de dezembro de 1770, assumiu a Junta Governativa integrada pelo Arcebispo, Chanceler do Tribunal e Marechal João Batista Vieira Godinho, que providenciou o reforço das tropas e das instalações militares.

No dia 30 de setembro de 1810, D. Marcos de Noronha e Brito, o 8º Conde dos Arcos, último Vice-Rei do Brasil, com assento no Rio de Janeiro, deixou o posto com a chegada de D. João e por este foi nomeado Governador da Bahia. Era um homem liberal e de diálogo, que não admitia a prática de maus tratos contra os escravos.

Em 13 de maio de 1811, data natalícia do Príncipe Regente, com os novos ares liberais trazidos pela família real, e por influência direta do Conde dos Arcos, fundou-se, em Salvador, a primeira Biblioteca Pública do Brasil, com o acervo da coleção que o então Chanceler da Relação da Bahia, Thomás Roby, reteve quando da expulsão dos jesuítas. Os livros ficaram guarnecidos na casa do secretário da Academia dos Renascidos, Antônio Ferrão, tendo seu filho, Pedro Gomes Ferrão, doado os exemplares, sendo acompanhado na iniciativa por Alexandre Gomes Ferrão e Francisco Agostinho Gomes, reconhecido erudito. A inauguração ocorreu no Palácio do Governo, com a presença do Governador e seus auxiliares, não havendo comparecido os Desembargadores da Relação, por terem sido preteridos pelos oficiais militares, na ordem de apresentação, em recentes cortejos públicos, motivando uma repreensão de D. João VI, através do Aviso de 12 de outubro daquele ano.

A 13 de maio de 1812, em Salvador, inaugurou-se o Teatro São João, primeira e maior casa de ópera do Brasil, à época (destruído por um incêndio, em 06 de junho de 1923).

Naquela data, o Tribunal da Relação do Maranhão teve seu Regimento aprovado, porquanto estava previsto desde 1811, todavia a Corte só viria a ser instalada em 04 de novembro de 1813, com jurisdição abrangendo o norte brasileiro.

A Bahia, terra mater do Brasil, foi escolhida por D. João como palco da assinatura do ato de abertura dos portos às nações amigas, considerado, pelos estudiosos, ponto de partida para a futura independência da Colônia.

Desembargador Lidivaldo Reaiche – Sócio do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia*

Fontes de pesquisa:

Burocracia e Sociedade Colonial: a Suprema Corte da Bahia e seus Juízes – Stuart Schwartz – Ed. Companhia Das Letras

Crônica do Viver Baiano Seiscentista – Obras Completas de Gregório de Matos – O Boca do Inferno – Ed. Janaína

História do Brasil – 1500-1627 – Frei Vicente do Salvador

Carta Ânua – Antônio Vieira

A Relação da Bahia – Affonso Ruy

História Geral do Brasil – Visconde de Porto Seguro

Memória da Justiça Brasileira, volume 1 – Tribunal de Justiça do Estado da Bahia

Memórias Históricas e Políticas da Província da Bahia – Anotações de Braz do Amaral – Inácio Accioli de Cerqueira Silva

Dicionário dos Desembargadores – 160-1834 – José Subtil

Tribunal de Justiça do Estado da Bahia – 410 anos fazendo história

Notícia Geral desta Capitania da Bahia – José Antônio Caldas

1808 – Laurentino Gomes

D. Pedro – A história não contada – Paulo Rezzeuti

Império à deriva – Patrick Wilcken

*O Desembargador Lidivaldo Reaiche Raimundo Britto retrata a História do Tribunal da Bahia, desde a época que funcionou como o Tribunal da Relação. Estudioso e pesquisador do tema, o Desembargador Lidivaldo é Presidente da Comissão Temporária de Igualdade, Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos Humanos (Cidis) e membro da Comissão Permanente de Memória.

Texto publicado: Desembargador Lidivaldo Reaiche