No dia 04 de julho de 1776, as treze colônias inglesas constituíram os Estados Unidos da América. A Declaração de Filadélfia instituiu uma República Federativa, baseada no sistema de três poderes independentes e harmônicos, com eleições para o Executivo e Legislativo (Câmara dos Deputados e Senado), sendo a Suprema Corte a última instância do Judiciário. Apesar da inovação, a sociedade americana continuaria escravagista por quase um século, mas os ventos republicanos se espalhariam mundo afora.
Enquanto isso, no velho continente europeu, prevalecia o regime monárquico hereditário. Com a morte de D. José I, em 24 de fevereiro de 1777, ascendeu ao trono português sua filha, Maria I, que logo demitiu o Marquês de Pombal do governo.
No Brasil, o tráfico negreiro prosseguia com a participação de empresas e particulares, em escala ascendente. A partir de 1788, desembarcaram, no Porto de Salvador, os primeiros escravizados oriundos de Oyó, na atual Nigéria, da etnia yorubá, da nação ketu/nagô, trazendo os Orixás como suas divindades. Nesse período, três mulheres, Iyá Adeá, Iyá Kalá e Iyá Nassô, esta última a Iyalorixá, fundaram a Casa da Mãe Nassô ou o Ilê Axé Iyá Nassô Oká, dedicada a Xangô, Orixá da Justiça. O espaço localizava-se atrás da Igreja da Barroquinha, no centro da Cidade, e iria atrair a perseguição das autoridades. No futuro, seria o Terreiro da Casa Branca.
No dia 26 de novembro de 1786, o poeta, escritor e jurista Tomás Antônio Gozaga foi nomeado para o cargo de Desembargador do Tribunal da Relação da Bahia. Ele nasceu no ano de 1744, em Portugal, na Cidade do Porto, filho de portuguesa e brasileiro, que era Magistrado. Órfão de mãe, veio para o Brasil, ainda criança, acompanhando seu genitor, designado Ouvidor da Capitania de Pernambuco. Tomás estudou no Colégio dos Jesuítas de Salvador, até 1761, quando o estabelecimento escolar encerrou as atividades, com a expulsão dos religiosos da Companhia de Jesus. Ele mudou-se para Coimbra e se graduou em Direito. Posteriormente, integrou a Magistratura, havendo retornado ao Brasil, para atuar na função de Ouvidor e Provedor de Vila Rica, então Capital de Minas Gerais.
Em 18 de abril de 1788, D. Fernando José de Portugal, Desembargador Agravista da Casa de Suplicação de Lisboa, assumiu o Governo da Bahia e enfrentaria, dez anos depois, um movimento social que objetivava implantar a República Bahiense.
O mês de maio atrai revoltas. A Revolução Francesa, no ano de 1789, com os princípios de liberdade, igualdade e fraternidade, representaria uma ruptura sem igual. A proclamação da República e os ideais contidos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão abalaram a realeza europeia, que se viu ameaçada pela nova ordem, tão significativa que os historiadores a escolheram marco inicial da Idade Contemporânea.
Concomitantemente, ainda no mês de maio de 1789, uma insurreição nos trópicos, na Capitania de Minas Gerais, a mais rica da maior Colônia portuguesa, iria assustar a Metrópole.
O movimento separatista, que intencionava implementar a República Mineira, cuja bandeira seria composta por um triângulo vermelho sobre fundo branco, com a frase em latim LIBERTAS QUAE SERA TAMEN (LIBERDADE AINDA QUE TARDIA), teve como combustível a elevação dos impostos cobrados pela extração do ouro, através da estipulação de cota anual para os mineradores; na hipótese de frustração da meta, havia a previsão da derrama, taxação que alcançava todos os residentes na Capitania, fato ocorrido. A conjuração, que não previa a abolição da escravatura, reuniu membros da elite e populares, inclusive o Alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes.
Tomás Antônio Gonzaga, participante da conspiração, cedeu sua casa para alguns encontros. Nesse cenário de ebulição, o poeta já estava apaixonado por Maria Doroteia Joaquina de Seixas Brandão, jovem de 17 anos. Adepto do Arcadismo, tendência literária que exultava a natureza campestre, na figura do narrador Dirceu, dedicava versos à sua amada, a quem chamava de Marília. O amor de ambos ficaria eternizado no livro “Marília de Dirceu”. Ele adiou a posse no Tribunal da Bahia, pois estava de casamento marcado com Maria Doroteia. Entretanto, durante os preparativos do enlace, viu-se tragado pela Inconfidência Mineira.
Um dos inconfidentes, Joaquim Silvério dos Reis, que devia tributos, delatou a mobilização, em troca de perdão fiscal. A repressão rápida e eficiente resultou na prisão dos revoltosos. Tiradentes, que se encontrava no Rio de Janeiro, arregimentando correligionários, foi detido no dia 10 de maio e levado para a Fortaleza da Ilha das Cobras, na Capital da Colônia, onde também permaneceu recolhido Tomás Antônio Gonzaga.
Apesar de Minas Gerais não ter, à época, uma Corte de Justiça, os Magistrados mineiros queriam conduzir a apuração do episódio e o julgamento dos réus, provocando um conflito de competência com o Tribunal do Rio de Janeiro.
Consequentemente, a Rainha Maria I, sentindo-se traída pelos colonos brasileiros e alguns súditos portugueses, que apoiaram a rebelião, por intermédio da Carta Régia, de 17 de julho de 1790, criou uma Alçada Especial, na Relação do Rio de Janeiro, designando três Desembargadores da Casa de Suplicação de Lisboa, para cuidarem do caso: Sebastião Xavier de Vasconcelos Coutinho (desembarcou como Chanceler do Tribunal carioca), Antônio Gomes Ribeiro (havia sido membro do Sodalício baiano) e Antônio Diniz da Cruz e Silva (substituiria o Chanceler).
A devassa (investigação) e o julgamento do processo se arrastaram até 1792. Ao final, onze réus foram condenados à morte. Cláudio Manoel da Costa, membro correspondente da efêmera Academia Brasílica dos Renascidos, sediada na Bahia, suicidou-se no cárcere (perdura a suspeita de assassinato por envenenamento). A Rainha Maria I, “a piedosa”, aceitou o pedido de clemência e converteu nove penas capitais em outras sanções. Somente Tiradentes, o único que confessara o delito de lesa- majestade, teve a forca confirmada pela Monarca, que desejava dar o exemplo. A leitura da extensa sentença durou cerca de dezoito horas. O enforcamento do Alferes, o mais pobre dos rebeldes, ocorreu no dia 21 de abril daquele ano, no Rio de Janeiro; ato contínuo, seu corpo foi esquartejado e a cabeça ficou exposta na praça principal de Vila Rica.
O idealista Desembargador Tomás Antônio Gonzaga, o Dirceu, que, em razão do matrimônio, adiou a assunção no Tribunal da Relação da Bahia, ao ser preso, jamais voltou a ver sua noiva. Apenado com o degredo perpétuo, em Moçambique, ali constituiu família e se integrou à sociedade local. Faleceria em 1810. Maria Doroteia, a Marília, musa inspiradora, nunca casou e morreria no ano de 1815. Poderiam ter vivido felizes em Salvador. Como nos poemas, o amor foi colhido pelo trágico destino.
Desembargador Lidivaldo Reaiche*
Fontes de pesquisa:
Burocracia e Sociedade Colonial: a Suprema Corte da Bahia e seus Juízes – Stuart Schwartz – Ed. Companhia Das Letras
Crônica do Viver Baiano Seiscentista – Obras Completas de Gregório de Matos – O Boca do Inferno – Ed. Janaína
História do Brasil – 1500-1627 – Frei Vicente do Salvador
Carta Ânua – Antônio Vieira
A Relação da Bahia – Affonso Ruy
História Geral do Brasil – Visconde de Porto Seguro
Memória da Justiça Brasileira, volume 1 – Tribunal de Justiça do Estado da Bahia
Memórias Históricas e Políticas da Província da Bahia – Anotações de Braz do Amaral – Inácio Accioli de Cerqueira Silva
Dicionário dos Desembargadores – 160-1834 – José Subtil
Tribunal de Justiça do Estado da Bahia – 410 anos fazendo história
Notícia Geral desta Capitania da Bahia – José Antônio Caldas
Tomás Antônio Gonzaga – Dilva Frazão
A sentença condenatória de Tiradentes e a construção do mito – Andrea Vanessa da Costa Val – Memória do Judiciário Mineiro
A história dos últimos dias de Tiradentes – Robson Pereira
*O Desembargador Lidivaldo Reaiche Raimundo Britto retrata a História do Tribunal da Bahia, desde a época que funcionou como o Tribunal da Relação. Estudioso e pesquisador do tema, o Desembargador Lidivaldo é Presidente da Comissão Temporária de Igualdade, Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos Humanos (Cidis) e membro da Comissão Permanente de Memória.